Narrado por Maísa Viana
Voltei para casa como quem retorna do front. Não havia sangue nem sirenes, mas dentro de mim tudo era ruído, um furacão contido que me atravessava em silêncio. Cada passo soava distante, como se eu caminhasse dentro de uma redoma invisível. Os meus pés tocavam o chão, mas era como se o corpo estivesse suspenso, leve demais para pertencer a mim.
O trajeto entre o restaurante e minha sala se apagou da memória. Eu poderia jurar que fechei os olhos e, quando abri, já estava girando a chave da porta. Tranquei com força, como se aquele trinco fosse capaz de impedir a entrada de Hero Green. A verdade, porém, me queimava por dentro: não existe fechadura que afaste alguém que já tomou posse das chaves da sua vida.
A bolsa caiu sobre o sofá. Sentei, tentando recuperar o fôlego que me faltava. O silêncio da casa parecia vivo, espesso, quase sufocante. Apenas o relógio na parede quebrava a quietude.
Tick. Tack. Tick. Tack.
O som repetitivo zombava de mim, lembrando que o tempo não esperaria pela minha hesitação.
Amanhã, eu deixaria de ser apenas Maísa Viana. Amanhã, um novo sobrenome seria imposto. Amanhã, eu pertenceria oficialmente a outro dono.
Meus olhos pousaram na mesinha de canto, onde o pendrive da ultrassonografia me esperava como um lembrete silencioso da única vida que realmente importava agora. Peguei-o com cuidado, como se fosse feito de vidro, conectei ao notebook e pressionei o play.
A sala foi tomada pelo som ritmado do coração do bebê.
Tum-tum. Tum-tum. Tum-tum.
Fechei os olhos, permitindo que aquele compasso preenchesse cada espaço vazio em mim. Uma lágrima desceu antes que eu conseguisse contê-la.
— Me perdoa, meu amor... — sussurrei, a voz quebrada. — Eu queria tanto te proteger. Queria ser um abrigo, mas nem a mim mesma consigo salvar.
Permaneci imóvel, presa ao som que se repetia, como se pudesse congelar o tempo e adiar o inevitável.
Até que a realidade bateu de volta. Literalmente.
Três batidas secas ecoaram na porta. Não eram hesitantes. Não eram agressivas. Eram exatas, medidas, calculadas. E idênticas às da noite anterior. Um arrepio percorreu minha espinha, gelado como lâmina.
Levantei com passos curtos, o coração acelerando em descompasso. Cada célula do meu corpo gritava que abrir aquela porta era uma armadilha. Mas a mão obedeceu antes da mente.
Abri.Não era ele.
Três homens de preto. Roupas impecáveis, expressão inalterada. Um segurava uma caixa branca com detalhes dourados, outro carregava uma sacola de boutique cara demais para eu sequer ter coragem de entrar. O terceiro falou, sem emoção, como quem lê um script:
— Entrega para a senhorita Maísa Viana.
Assenti, incapaz de formular palavras. Eles entraram, deixaram os pacotes no sofá e saíram sem despedida, sem olhar para trás. Apenas sombras que cumpriam ordens.
Fechei a porta e, quase por instinto, travei novamente. Em vão.
Me virei devagar, encarando os embrulhos como se fossem explosivos prestes a detonar. Eu sabia exatamente o que havia ali. Não precisava abrir. Mas abri.
A sacola primeiro.
Os sapatos. Brancos. Salto médio. Discretos, elegantes, clássicos. Eram delicados demais para mim, distantes do que eu escolheria. Não vulgares, não chamativos, apenas… submissos. Um detalhe que gritava em silêncio o que esperavam de mim.
Depois, a caixa.E ali, o ar me escapou.O vestido.
Off-white. Seda pura. Mangas longas de renda fina. Costas abertas. Cada detalhe planejado para moldar quem eu deveria me tornar aos olhos de Hero Green: bonita, dócil, frágil, domada.
Passei a mão pelo tecido. Ele escorregava como se tivesse vida própria, gelado contra minha pele quente.
Como ele sabia minhas medidas? Talvez não soubesse. Talvez tivesse simplesmente mandado fazer sob encomenda. E, como tudo que ele comandava, o resultado era perfeito. Frio. Calculado. Intimidador.
Caminhei até o espelho, dizendo a mim mesma que era apenas para olhar. Mas quando percebi, meus dedos já desfaziam os botões da blusa. Num piscar de olhos, o vestido estava em mim.
E ele… se ajustava como se fosse uma extensão do meu corpo.
Fiquei diante do reflexo em silêncio, paralisada. Eu parecia uma noiva. Linda, mas assustada. Uma mulher fingindo que tudo não passava de ensaio. Mas era real.
Arranquei o vestido com urgência, quase em desespero. O tecido parecia ter garras que se prendiam à minha pele. Joguei-o sobre a cama e me sentei no chão, abraçando os joelhos.
— Eu não posso... — sussurrei. — Eu não posso me casar com ele. Não posso entregar minha vida a Hero Green.
A cabeça latejava, as ideias se atropelavam. Fugir parecia uma possibilidade, ainda que improvável.
Pensei no passaporte escondido na cômoda. Ainda estava lá, intacto, minha última carta na manga. Se eu pegasse um ônibus qualquer, desaparecesse numa cidade pequena, talvez ganhasse tempo. Talvez respirasse.
Mas então pensei no bebê. No olhar de Hero quando falou de inimigos. Nas palavras que não disse, mas que ecoavam: Se você correr, eles vão te pegar. Se tocarem em você, eu mato. Mas já será tarde.
A verdade pesou no estômago como uma pedra: fugir não significava liberdade. Fugir significava risco. E o risco não seria apenas meu.
Toquei a barriga ainda invisível, mas viva. E prometi em silêncio: Você vai nascer. Nem que eu precise vender minha alma.
Levantei. Lavei o rosto. Toquei o espelho, olhando minha própria imagem.
— Se eu tiver que passar por isso, será de olhos abertos. Se ele acha que vai me engolir, que engasgue comigo.
Voltei ao quarto. Dobrei o vestido com cuidado, guardei os sapatos e amarrei novamente a fita da caixa. Abri a gaveta da cômoda.
O envelope estava lá.A certidão de casamento.
O campo “esposa” esperava pela minha assinatura. O dele já estava. Letra firme, traço imponente, como quem sela uma posse.
Naquela madrugada, um som me despertou.
Um carro parado do outro lado da rua. Vidros escuros. Motor desligado. Nenhum movimento. Mas eu sabia. Era ele. Ou, no mínimo, era a prova de que ele nunca estava longe.
Fechei a cortina devagar. Deitei de lado. Abracei o ventre com as duas mãos.
Amanhã eu teria um novo nome. Uma nova vida.
Mas a Maísa de antes ainda respirava em mim.
E se Hero Green acreditava que já tinha conquistado tudo… estava subestimando a mulher que carregava dentro de si o que ele mais queria.