14º Capítulo – Funeral

2707 Words
O dia amanhecera cinzento, condizente com a tristeza no coração dos moradores do palácio. Havia-me cruzado com Eliot ao pequeno-almoço, mas não tínhamos trocado uma única palavra durante esse breve momento. Holly, de olhos baços, falava-lhe rapidamente dos preparativos dos funerais, seguindo para o jardim onde já se encontravam várias pessoas a circundar os corpos dos seus entes queridos, estes rodeados de imensas flores para que parecessem estar apenas num sono encantado. Laila encontrava-se sentada a um canto, sozinha, perdida nos seus pensamentos, não reparando na minha presença durante vários minutos após me estabelecer ao seu lado. - Emily… Desculpa, estava noutro sítio. - Eu reparei – confirmei. – O que se passa? - Considerava visitar a Ebony, mas não sei porquê. Tudo o que ela disse parece-me inacreditável, porém… - A Aurora fez o mesmo por mim – finalizei. Agarrei-lhe na mão com ternura, fazendo-a olhar para mim. – Queres que a história dela seja verdade. - Seria muito mais fácil se soubesse que sim – desabafou, visivelmente ansiosa. – Saber que ela sempre se preocupou comigo significaria muito para mim. - Então porque não o fazes? Vai visitá-la. - Não me parece ser justo puder vir a ter alegria, pelo menos não hoje. É uma afronta há memória da Eileen, não o posso fazer. - Se existiu uma pessoa que queria que todos fossemos o mais felizes possível foi a Eileen. Ela deliciar-se-ia com o facto de teres uma mãe protectora e preocupada como a Ebony afirma ser. - E se não for? Sou a única filha que lhe resta, será que o que ela diz é real? E se eu tiver esperança e tudo for mentira? Ou alguma armadilha? – Vendo que eu não conseguiria responder, Laila finalizou: - Se eu optar por ir vens comigo? Preciso de apoio nisto. - Claro que sim, sabes que podes contar comigo para o que precisares. Os corredores começavam a ficar mais iluminados à medida que as janelas iam deixando entrever a bela cor azul do céu, deixando a sua travessia um pouco menos dolorosa. Após uma pequena paragem no quarto de Melody, onde se podia ver a petiza a brincar alegremente com Cole, de quem tinha ficado amiga num piscar de olhos, dirigimo-nos para os aposentos de Ebony, encontrando um guarda à porta seguindo as instruções de Laila. Assim que dispensou o guarda a minha prima suspirou e bateu na porta, aguardando por uma resposta. - Entre – ouviu-se, embora um pouco baixo. Ebony estava debilitada, como seria de esperar, mas os seus olhos brilhavam ao ver Laila caminhar em direcção à cama onde repousava. Corri o quarto com os olhos, verificando que estava totalmente intocado, como se não estivesse ninguém presente. Laila perguntava cordialmente à sua progenitora como se sentia, enquanto ela a olhava com afecto como se nunca esperasse estar viva para a conhecer. - Creio que não fomos apresentadas – ouvi, por fim voltando ao presente momento. - Emily, rainha de Cyon – retorqui rapidamente. – Prima em segundo grau da Laila. - Muito prazer. Obrigado por tomares conta da minha filha. - Na verdade ela é que toma, ou tomava, conta de mim – respondi um pouco a rir, lembrando-me de quando tinha vindo para Cyon, deixando Ebony intrigada. - É verdade – acrescentou Laila. – E não eras nada fácil de aturar – acrescentou com um sorriso, esquecendo-se momentaneamente de onde, e com quem, estava. - É claro, deves ser mais velha Laila. É óbvio que a princesa mais velha tome conta da mais nova, não importando quem sobe ao trono. - Na verdade eu só soube que era princesa muito depois de conhecer a Emily… As horas foram passando enquanto Laila e eu contávamos tudo aquilo pelo qual passáramos, perante a incredulidade de Ebony. As lágrimas começaram a aparecer nos olhos da suposta vilã quando descobriu que a filha tinha crescido sem saber quem eram os seus pais, que era uma princesa e o que tinha sofrido toda a vida por uma total ausência parental. Não podia ser mais perceptível que Ebony era de confiança, tal era a dor que demonstrava e as vezes que se desculpava por tudo o que Laila vivera. Assim que conseguiu parar de chorar, após a minha prima lhe ter dado a mão, também ela comovida, começou a responder a algumas questões nossas, o que não nos fez ficar mais descansadas com a derradeira pergunta: - Quão fortes eram os gémeos? – Embora um pouco abalada pela morte dos filhos Ebony sofrera muito mais às mãos deles do que às do marido, tornando-a até um pouco grata pelo seu martírio ter acabado. - Não sei. Demasiado, é certo. Cada um deles tinha pelo menos mais do dobro do poder do pai, juntos aumentavam ainda mais esse poder. Se o que dizem é verdade e esse tal Dylan absorveu boa parte do seu poder não sei como poderão derrota-lo. – Após uma pausa, em que nenhuma de nós conseguiu emitir um som, Ebony pediu: - posso conhecer a rainha Aurora? Quero agradecer-lhe por tudo o que fez para te manter segura. - Emily? – A minha prima pedia-me mais um conselho que uma autorização, pelo que acedi com algum receio. - Tenho de ver primeiro se ela já se encontra bem, e se concorda. – Através do pensamento perguntei a Laila se ela queria ficar um pouco a sós com Ebony, saindo de imediato para ir ver a minha mãe. O sol brilhava alto no céu quando consegui encontrar Aurora, numa pequena sala de estar perto da cozinha, chorando. Corri até aos seus braços, confortando-a, enquanto lhe falava baixinho do quanto eu própria sentia falta de Eileen. Após algum tempo consegui acalmá-la, mas não pude deixar de notar o quão estranha estava, com o olhar distante e a tremer um pouco. Pensei melhor sobre o pedido de Ebony, embora a minha decisão estivesse tomada, e perguntei-lhe o que queria fazer. Apanhada de surpresa, aceitou imediatamente conhecer aquela que tinha sido uma das suas maiores inimigas, mudando radicalmente de expressão. Rapidamente comuniquei a Laila para onde se devia dirigir com a progenitora, pois a pedido da mesma não queria encontrar-se com a antiga rainha deitada numa cama. - Estás pronta? - Para ver a Laila feliz com a mãe ao lado? Nunca pensei que tal pudesse acontecer! Claro que estou pronta! A Eileen vai ficar felicíssima por ela! - Mãe, a Eileen… - Antes que pudesse salientar o óbvio Aurora adentrou pela biblioteca, deixando-me estagnada à porta. Ebony estava sentada num cadeirão, visivelmente fraca pela caminhada que, embora curta, a esgotara ainda mais. As emoções de Laila eram um enigma que eu não sabia se queria desvendar. Por um lado Ebony parecia-me totalmente sincera, mas por outro tinha muito medo que as esperanças de Laila sobre ter uma família fossem completamente destruídas, levando-a a desistir de ser feliz. A conversa entre todas as mulheres presentes corria bem, porém as obrigações levaram-me a ter de abandonar a sala, juntamente com Laila, demasiado cedo. As pessoas começavam a chegar para o funeral e cabia-nos a nós dar-lhes as condolências, visto que Eliot também estava a passar por uma grande perda. A minha mãe juntou-se a nós pouco tempo antes de as cerimónias começarem, alternando o seu estado de espirito entre o triste e o feliz vezes sem conta. Eu nunca tinha testemunhado nenhum funeral em Cyon mas sabia como funcionavam, porém não estava preparada para a beleza que aquele momento tão triste podia trazer. Em pé, perto de cada corpo, estava o familiar mais próximo, ou designado, para proferir um feitiço que transformava lentamente os corpos sem vida em lindas borboletas, nas suas mais variadíssimas cores. Rezava a lenda que as borboletas observavam e zelavam pela segurança e felicidade daqueles que amavam em vida, e eu acreditava nisso depois de ver centenas delas a voar pelo jardim, colorindo-o ainda mais. Durante toda a cerimónia estive perto de Eliot, embora ele me ignorasse, sentindo que apesar de tudo ele ficaria bem. Aurora chorava copiosamente enquanto abraçava o meu marido, que já não tinha mais lágrimas para chorar. Laila, Jennifer e Holly rodeavam-me, estando todas comovidas, assim como eu própria que tentava não me focar no quanto sentia falta da Eileen, mas sim em todas as coisas boas que partilhara com ela. A certa altura Melody apareceu com Cole, com quem estivera a brincar no jardim, que se encantara com as borboletas. - Mamã, porque é que o papá está triste? – Como explicar a uma criança de dois anos que a avó tinha falecido não era algo que eu estivesse preparada para fazer e, vendo a minha mãe a aproximar-se, deixei-a tratar do assunto, arrependendo-me de imediato. - Ela morreu Mel – começou com um sorriso. – A avó Eileen. Ela desapareceu para sempre! – As pernas tremiam-lhe, enquanto uma gargalhada se ouvia. – O teu pai está chateado porque acha que foi a tua mãe a culpada, mas não foi! – Eu estava petrificada com tal discurso, assim como as minhas amigas que estavam em choque. – Foi um homem mau que matou a Eileen e eu fui a culpada! Arrebatei a minha filha dos braços da avó enquanto a pequena, assustada com a menção de um homem mau, o mesmo que a atormentava em sonhos, tentava desesperadamente fugir. Li-lhe a mente e o pavor fez com que partilhasse sem querer os meus pensamentos com Laila, que gritou como nunca tinha ouvido. Eliot aproximou-se a correr, tal era a confusão que se instaurara no jardim: pessoas olhavam para todos os lados com receio de um ataque, outros abraçavam-se murmurando algo imperceptível e ainda havia alguns que tentavam perceber o que se passava. - O que se passa com a Melody? - Leva-a daqui Eliot – atalhei. – Já! Com os ressentimentos postos de parte, o meu marido pegou na nossa filha ao colo e pegou na mão de Cole, que chorava, conduzindo-os de volta ao interior do palácio. Aurora ria, sentada no chão, ao mesmo tempo que lágrimas corriam em fio pelas suas faces. Laila parecia ter visto um fantasma, fazendo com que Jennifer e Holly tivessem de a arrastar do jardim para que se acalmasse. Pedi a alguns guardas que me ajudassem a levar a minha mãe para o seu quarto, pois esse estava a ser um trabalho hercúleo, porque ela debatia-se imenso. Assim que consegui que se sentasse na cama apressei-me a chamar o médico. Os minutos pareciam horas enquanto Robert fazia todos os exames possíveis. Após algum tempo recorreu ao mesmo feitiço que eu já utilizara para fazer Aurora adormecer e pediu-me que esperasse dois dias para saber os resultados. Um pouco mais calma, dirigi-me para os aposentos de Melody, que adormecera. Cole tinha sido levado por Mia para o seu próprio quarto e Eliot esperava-me na varanda. - O que se passou? A Mel estava em pânico! - Lembras-te de a Melody ter um pesadelo com um homem mau a persegui-la? - Sim… - Acho que pode não ter sido só um pesadelo… - Uma visão? – Olhando para o jardim o meu marido tremia. - Talvez. Ou um pressentimento de que alguém lhe quer m*l, embora… - Faltavam-me as palavras. Sabia que assim que as proferisse não existiria maneira de as fazer desaparecer, mas nunca me perdoaria se não contasse a Eliot o que achava. - Emily? - Quem ela viu no sonho era definitivamente o Dylan. – Preparando-se para barafustar, Eliot virou-se para mim. – Pensei que fosse só uma coincidência, embora não haver maneira de a Melody alguma vez o ter visto. - Mais alguém sabe? - A Laila – confessei. – Descontrolei-me quando li a mente à Mel no jardim e a Laila viu, por isso gritou. - Alguma vez pensaste em dizer-me? – O olhar de desprezo que me dava deixava-me triste, porém não tinha como o evitar. – Agora escondes-me coisas Emily? - Não escondi nada Eliot – afirmei baixando a voz. – Quando ocorreu saíste às pressas e não consegui falar contigo. Com tudo o que aconteceu eu simplesmente esqueci-me de mencionar o facto. – Olhei para o interior do cómodo, verificando se a minha filha ainda dormia. – A verdade é que naquela hora não achei que importasse, contando que mantivéssemos a Mel protegida. - Mas importa – gritou Eliot exasperado. – É da segurança da nossa filha que estamos a falar! Não é normal ela sonhar com alguém que está a ameaçar a sua família! - Claro que não, assim como também não é tudo o que ela nos mostrou desde que despertei! – Começava a enfurecer-me com as acusações a que era sujeita. – Nada do que a rodeia é normal! Um pequeno bocejar alertou-nos para que parássemos de discutir. Eliot dirigiu-se à porta sem sequer olhar para trás, deixando-me a embalar Melody, que depressa regressou ao mundo dos sonhos, e a ser atormentada pelos meus pensamentos. A noite passou lentamente sem que tentasse dormir por um único segundo, preferindo observar o sono tranquilo da minha filha. Ao amanhecer encaminhei-me para as cavalariças com esperança que ninguém me visse, o que consegui com relativo sucesso. Apesar de cavalgar não ser uma das minhas actividades favoritas, era das poucas que não exigia companhia e que me dava alguma sensação de liberdade de uma vida completamente determinada. Olhando para o passado, via agora com clareza que tudo ocorria como era pretendido pela minha mãe: tinha aprendido a ser uma princesa, casado, assumido o trono, derrotado os gémeos, embora por um desígnio do destino não fossem eles os meus verdadeiros inimigos, e tido uma herdeira. Se não fosse o Dylan estaria livre para viver a minha vida como quisesse, mas até isso me tinha sido retirado. Eliot, que eu tanto amava, culpava-me da morte da sua mãe, Aurora não estava bem e Laila podia ter um desgosto com Ebony a qualquer momento. Por um segundo ocorreu-me que a minha única alegria era Melody, embora tivesse perdido a minha própria gravidez, o seu nascimento e os primeiros dois anos de vida dela. Desmontei quando cheguei ao riacho, deixando o cavalo à sombra de uma árvore e retirando os sapatos para poder mergulhar os pés na água fresca. Toda aquela paz fez-me chorar, como há muito não o fazia. Estava sobrecarregada de informações e de emoções. O meu peito estava apertado, deixando-me com dificuldades em respirar e até em pensar. Caí na água e deixei-me levar pelos meus sentimentos. Podiam ter passado apenas alguns segundos, mas eu juraria que chorara por horas quando voltei ao palácio bastante mais leve. O sol quente fazia-me suar, as minhas roupas estavam completamente sujas e mesmo assim, pela primeira vez em anos, senti-me eu mesma. Não me apressei a arranjar-me nem me preocupei com os meus deveres, apenas me dediquei a passar o resto do dia com a minha filha, brincando. Já Melody adormecera há algum tempo quando me dirigi ao meu quarto, sendo que pouco depois fui interrompida. Sem pressa, guardei o livro que estava a ler na estante e sentei-me no sofá, que estava virado para a varanda do cómodo, onde o vento fresco da noite de verão chegava. Eliot encarava-me, sem expressão. - Podemos conversar? – Acenei afirmativamente, enquanto ele se dirigia à janela. O silêncio que se fazia ouvir deixava-me ansiosa. Esperava que Eliot começasse a gritar a qualquer momento, culpando-me por tudo o que se passava nas nossas vidas, porém algo não batia certo. Eliot ignorava-me totalmente, olhando pela janela para os jardins floridos, deixando-me alerta para outro problema: o meu marido não era de esconder o que sentia, pelo que naquele momento deveria estar a lutar contra os seus próprios sentimentos. - Nunca devias ter-me escondido o que se passou com a Mel – disse calmamente. - Eu sei. - Não consigo te perdoar Emily – desabafou, olhando na minha direcção, - contudo a Melody é nossa filha, e é por isso mesmo que quero que não nos deixemos de falar. Neste momento não consigo estar contigo, mas a Melody não tem culpa. Preciso que me digas tudo o que sabes. - Nada – respondi com um tremor na voz. – Esse é o problema, não sei nada.
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