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4795 Words
O telefone tocando, estridente, a acordou. Abriu os olhos inchados para uma manhã tempestuosa. Algo dentro de si revirou intensamente quando se viu deitada no chão da cozinha, estirada como um cadáver. A boca seca. Estava com frio, e algo dentro da alma doía. Não sonhou com nada além de escuridão. Anne sentou no chão, ouvindo o som do aparelho tocando sem parar e ela enfiou os dedos nos cabelos, tentando arrumá-los. Era como se a qualquer momento Charles fosse aparecer pela porta, perguntando o que estava fazendo ali. Mas sabia que aquilo não ia acontecer e odiava o fato de não poder fazer nada para mudar. “Eu não quero que você exista mais tempo do que viva”             Fechou os olhos, colando as coxas no peito e escondendo o rosto entre os joelhos, ela ficou parada até o telefone parar de tocar. Não queria levantar daquele chão. Não queria atender ninguém. Não queria dar nenhuma entrevista. Tinha sede, mas não tinha vontade de beber. Não sentia fome. Não sentia nada.             Nada além de saudade.             Como podia estar daquele jeito? Só faziam dez noites. Dez noites desde que botara os olhos em Charles pela primeira vez e agora era como se simplesmente não fosse mais capaz de viver sem ele.             Sentiu vontade de mandar os cães embora. Se isolar naquela casa. Cortar a linha de telefone, a eletricidade, se enfiar embaixo das cobertas e nunca mais sair. Desejou que aquele piso de madeira se tornasse um buraco e que caísse para algum lugar onde pudesse... vê-lo. Senti-lo. Ouvir sua voz, sua respiração, inspirar sua essência de lavanda que parecia ainda habitar cada pedacinho daquela casa.             A chuva caindo lá fora não abafou o telefone tocando de novo, e Anne se apoiou no balcão para puxar o próprio corpo sem ânimo para cima. Espreguiçou-se, andando molemente até a biblioteca. A música ainda tocava baixa e os olhos caíram para tapete queimado, as velas apagadas. Nas duas xícaras de café frio que jaziam intactas desde a noite passada. Os olhos se estreitaram, ardendo, e ela puxou o ar, respirando profundamente antes de desligar a música e pegar o telefone, atendendo-o.             ― Sim?             ― Srta. Walch! Então está em casa?             ― O que? Quem fala?             ― Peter Donavan. Havíamos combinado uma entrevista para hoje.             ― Não vai poder vir?             ― Na verdade, estou tentando falar com você desde que fui aí mais cedo. ― Peter respondeu do outro lado da linha. Seu tom estava sério.             ― Mais cedo?             ― Sim, no horário combinado.             ― O que?             ― Srta. Walch, você está bem? O horário que combinados já passou há três horas.             ― Mas... ― A visão de Anne caiu para o relógio e ela arregalou os olhos, vendo que eram cinco e quinze da tarde. ― Como... eu...             ― Nós ainda estamos na cidade, por causa da chuva. Se quiser, podemos passar aí.             ― Tudo bem. Desculpe-me, Sr. Donavan.             ― Tem certeza que está bem? ― Ele indagou e mesmo ainda um pouco sonolenta, Anne arqueou as sobrancelhas com o tom de voz que o repórter cujo nem conhecia havia usado.             ― Eu acabei dormindo demais. ― Foi o que disse depois de um tempo.             ― Então estaremos aí daqui a pouco.             ― Certo... até. ― E desligou sem esperar por qualquer outra palavra. Ela jogou o telefone em cima da mesa e suspirou. Queria se livrar logo daquela entrevista para finalmente poder se jogar nas cobertas da cama no sótão e ficar lá até a noite.             Nos minutos seguintes, Anne tratou de tirar todas as velas que tinha espalhado pela casa e guardá-las numa gaveta qualquer na cozinha para voltar correndo para a biblioteca e tirar o tapete queimado dali.             Anne jogou o tapete no lixo, e se arrastou para cima. Precisava lavar o rosto, e escovar os dentes. Tomar banho não ia dar tempo se eles já estavam indo para lá. Ela lavou o rosto e escovou os dentes brancos rapidamente, passou desodorante e jogou o vestido e todo o resto que ainda vestia no cesto de roupa suja. Correu para o quarto e vestiu novas peças íntimas, mais simples, cobrindo-as com uma calça jeans e uma blusa de botões preta. Calçou nos pés um par de botas de couro pretas e olhando-se no espelho, um novo suspiro escapou pelos lábios. Ela amarrou o cabelo de qualquer jeito e saiu do quarto, descendo as escadas e pegando um balde de ração na despensa, caminhou até chegar no cabideiro ao lado da porta. Anne vestiu a capa de chuva e abriu a porta, saindo na varanda e descendo os primeiros degraus, assobiou aos cães que corriam na chuva. Se apressou em colocar a ração em seus respectivos potes e ligar os aquecedores do canil, já que a chuva tinha deixado os cachorros encharcados. Ela os prendeu e depois de dez trabalhosos minutos estava voltando de novo para dentro de casa, os sapatos molhados prestes a alcançarem à porta quando a buzina soou atrás de si. Virou-se para constatar a van que estava completamente cheia de lama.  Entrou dentro de casa, tirou e pendurou a capa de chuva. Anne abriu o portão, voltando para a entrada em tempo de ver o carro adentrar o quintal e estacionar ao lado do seu. Ficou observando pelos dois minutos desde que estacionaram até que uma das portas se abrisse e um homem alto de cabelos castanhos e olhos da mesma cor saltasse para fora do automóvel escondendo-se embaixo de um jornal para correr até a parte coberta onde Anne esperava. Peter tirou o jornal encharcado de cima da cabeça e se chacoalhou como um cachorro para tirar os pingos que escorriam pelos ombros do paletó preto. Passou os dedos pelos cabelos um pouco rebeldes antes de estender a mão direita em direção a Anne. Ela o olhou e um arrepio percorreu a espinha masculina. ― Olá, Srta. Walch. ― A voz era firme, e séria. Mas por dentro Peter estava inquieto. Embora já tivesse lido muito sobre ela, era a primeira vez que via os orbes azuis ao vivo. Ele sorriu um pouco agitado quando os braços femininos se descruzaram e a mão dela apertou a sua com uma estranha e delicada frieza. ― Desculpe-me o transtorno, Sr. Donavan. ― Esqueça isso. ― Gentil, o pedido foi singelo. ― É um prazer finalmente poder conhecê-la. Anne apenas sorriu. Um sorriso fraco e ameno que secretamente o deixou incomodado. Certamente, uma mulher maravilhosa, misteriosa, que despertou sua curiosidade mesmo antes de conhecê-la cara a cara, e agora que estava ali, sentindo o aperto firme e frio de sua mão, ele teve certeza que a presença dela surtia um efeito diferente dentro de si. Quando deu por si, Anne o encarava com um semblante estranho, pragmático, quase como se dissesse “não vai largar minha mão? ” E ele o fez, rapidamente, quebrando aquele contato visual para voltar-se a dupla de mulheres que vinham correndo do carro até a entrada. ― Essas são Lucia a maquiadora e essa é a Mary, fotografa. ― Adiantou-se, assim que as duas garotas pisaram na madeira seca. ― Oi. ― Elas disseram em uníssono, cada uma segurando uma maleta preta; os respingos nos cabelos e ombros. ― Eu sei o que está pensando. ― Peter tentou descontrair e Anne voltou a expressão curiosa para o homem. ― Elas são gêmeas. ― Eu não estava pensando nisso. ― Foi breve. Na verdade, estava pensando que as duas mulheres tinham quase a mesma tonalidade de cabelo que Charles. A diferença é que elas compravam a tintura na farmácia. ― É um prazer, meninas. ― Acenou para ambas que sorriram de volta. ― O motorista vai ficar no carro? ― Sim, ele espera por lá. ― Mary respondeu. ― Então vamos entrando... ― Anne guiou todos para dentro da casa, num silêncio sepulcral que perdurou enquanto fechava a porta. Podia ver, em seus breves olhares, o quanto os três forasteiros estranharam a aparência da casa. Os pares de olhos verificando cada pedacinho do lugar, minuciosamente, conforme andavam em silêncio até a biblioteca. Queria Charles ali, abraçando sua mão e andando ao seu lado enquanto guiava aquele repórter, a maquiadora e a fotografa pela casa. ― Isso vai render ótimas fotos. ― Foi o que Mary disse, contemplando a biblioteca que parecia ter sido tirada de um filme antigo. ― Conseguem sentir o cheiro de livros também? Anne sorriu. Aquela mulher parecia espontânea, bem-humorada. ― Eu adoro esse cheiro. ― Respondeu. ― Fique à vontade. ― Você realmente tem... muitos livros. ― Peter analisou as estantes empanturradas de livros em sua maioria de aparência muito antiga. Outros ainda embalados à vácuo. Quando deu por si, seus olhos não estavam mais nas prateleiras e sim na figura de Anne de costas para ele, falando com Mary. Ele se pegou medindo cada centímetro da silhueta feminina, os cabelos presos, os ombros delicados, a cintura fina e quadris avantajados que ficavam absolutamente acentuados naquela calça jeans. Peter engoliu em seco. Mas que raio era isso? Era um galinha nato, o dito “homem de uma noite só”, e era natural se interessar por mulheres, mas... ― Querem algo pra beber? ― A ouviu dizer, entretanto, nenhuma resposta saiu pela boca. Ele estava um pouco paralisado ali. ― Chá. ― Lucia disse com um sorriso. ― Podemos te ajudar? ― Sim é uma ótima ideia. Daí podemos discutir onde vai querer as fotos. ― Mary apontou. ― Exato, e como vai querer a maquiagem. ― Tudo bem, vamos lá. ― Anne não estava acreditando naquilo. Tinha amaldiçoado aquela entrevista, e agora... estranhamente... parecia estar fazendo exatamente o que Charles pedira: aproveitar o momento. Em meio minuto estavam na cozinha, conversando naturalmente sobre o local das fotos, e como Anne era o tópico de destaque da edição, seria também a capa. ― Quando o chefe disse que era você, quase morri. ― Ela riu daquela confissão descompromissada. ― Para com isso... ― O pedido veio entre uma risada e outra, com bochechas coradas e um olhar encabulado. ― Estou falando sério! Eu sempre disse para Lucia que queria fazer fotos suas no estilo Olhos Fechados, sabe? Com aquele vestido branco que Joan usa no capitulo doze. Anne parou de mexer o café, olhando Mary com as sobrancelhas arqueadas. Ela tinha acabado de citar um de seus livros, e mais, a cena, o capitulo, até mesmo o vestido que a personagem usava. Seu coração ficou quente. ― Você sabe mesmo. ― Foi só o que conseguiu dizer. Nenhuma das três tinha percebido, de fato, que tinham deixado Peter para trás. A chuva caía torrencialmente lá fora, e os trovoes e raios começavam a ficar cada vez mais frequentes, mas ele estava ali parado, ainda dentro da biblioteca. Estancado desde que elas saíram, Peter olhava para a mesa. Mais precisamente, ele observava as duas xícaras de café que jaziam sobre a mesa, frias. Pareciam intocadas, e aquilo atiçou seus instintos que o tinham tornado o jornalista que era atualmente. Anne não estava sozinha ali? Ele ficou pelo menos cinco minutos matutando silenciosamente, andando pela sala e tentando achar alguma coisa que se destacava, mas era estranho. Eram tantos detalhes. Folhas de livros destacadas, coladas nas paredes, e outras espalhadas pela mesa, essas escritas à mão. A iluminação amarelada diante da cor velha das paredes dava um ar assombrado àquela casa e havia notado isso mesmo antes de entrar. O lugar em si era absurdamente estranho para uma mulher viver sozinha. ― Então pode ser na escada... ― A voz de Anne irrompeu no cômodo e Peter se virou, tentando disfarçar o quanto estava agitado. ― Vai ficar lindo, você pode soltar o cabelo. ― Ainda não acredito que você trouxe o vestido. ― Ele engoliu em seco, ouvindo-a. Mary e Lucia a acompanhavam em uma conversa completamente natural e logo estavam de novo na biblioteca, parando de falar devido ao peso do olhar masculino sobre as três. ― Peter, trouxemos café pra você. ― Lucia lhe entregou a xícara e ele acenou num manear leve de cabeça. A maquiadora arqueou as sobrancelhas. ― Tudo bem? ― Tudo. Eu ainda estou maravilhado com os livros aqui... ― Desconversou rápido, ignorando a própria fadiga para sorver um gole do café forte e quente enquanto a outra dava de ombros, voltando para a conversa que continuava animada entre Mary e Anne. De repente, se sentiu deslocado. Um verdadeiro intruso. Peter viu os minutos passarem enquanto era completamente ignorado. Ele ficou em silêncio, aguardando Anne que fora vestir o vestido branco que a cobria do pescoço aos pés. Observou ela ser maquiada por Lucia e depois rumarem para a escada, ouvindo Mary murmurar que aquela luz natural era perfeita. Apenas duas fotos iriam para a revista, mas Mary tirou pelo menos trinta por puro bel-prazer, aproveitando-se da simpatia de Anne e obrigando-a a fazer algumas poses. As fotos ficariam elegantes e maravilhosas, dignas da beleza da escritora e do talento de Mary para tirar ótimas fotos. Os olhos azuis daquela mulher eram intensos. Vibrantes. Peter cogitava apagar as luzes da casa apenas para ter certeza de que eles não brilhariam no escuro também. Anne foi ao quarto para tirar o vestido e voltar às roupas de antes e logo todos estavam na biblioteca para a segunda foto e se viu ali, parado no meio do cômodo, observando a mulher entrelaçar os dedos das mãos embaixo do queixo e apoiar a face. ― Abaixe um pouco o rosto. ― Mary sugeriu, segurando firmemente a câmera. ― Isso. Agora olhe aqui. Faça aquele olhar. Peter ficou arrepiado quando Anne abaixou um pouco mais a face, olhando para a câmera como uma pantera. Ela tinha um rosto forte, mas tão doce ao mesmo tempo, que lembrava uma pintura. ― Perfeito. ― A fotografa bateu a foto e bateu pelo menos mais quatro outras seguidamente, para pegar aquele olhar que ela também tinha visualizado através das lentes. ― Pronto! Temos tudo que precisamos! Obrigada, Anne! ― Eu é que agradeço. ― Ela não se levantou da poltrona. Cruzou as pernas e sorriu. ― Meninas, fiquem à vontade, podem ir na cozinha se sentirem fome. ― Pode deixar. ― Lucia disse. As duas mulheres se jogaram no sofá, já habituadas e totalmente simpatizadas com Anne. ― Podemos começar? ― Os olhos azuis se cravaram nos castanhos. ― Claro. ― Peter se adiantou em sentar na cadeira, nervosamente, suando como um porco. Mas que m***a é essa? Foi seu exato pensamento enquanto enfiava a mão direita no bolso do paletó e pegava o gravador. Tinha trinta e quatro anos de idade, doze de profissão, e nem o Papa tinha deixado ele tão nervoso. Colocou o aparelho na mesa e olhou para Anne Walch, de vinte e oito anos de idade, dez de carreira como escritora. Ele respirou profundamente, abrindo um sorriso que fez as sobrancelhas femininas se arquearam conforme apertava o botão para gravar. ― Bem, primeiramente, muito obrigado pela entrevista Srta. Walch. ― Imagina, é um prazer falar. ― Foi breve. Não dava aquele tipo de entrevista há pelo menos um ano, e dessa vez, quem precisou respirar fundo foi Anne. ― Bem, em segundo lugar, prometi para alguns fãs seus que esta seria uma de minhas primeiras perguntas. ― Pode mandar. ― Walch o incentivou nervosamente. ― A senhorita por acaso é uma vampira? Ou descobriu a fonte da juventude? A verdadeira pergunta é: o que a torna tão bonita? ― Bem, na verdade sou uma vampira... ― Riu, querendo acreditar que a intenção de Peter era começar de uma maneira engraçada e descontraída. Depois de uma risada cínica, ela disse: ― Brincadeira... não é nada disso... ― Ah, que bom... ― Na verdade eu uso o método Elizabeth Bathory para me manter jovem. ― A escritora falou com espontaneidade enquanto as risadas de Lucia e Mary explodiam na biblioteca. Peter teve que rir também, olhando Anne e seu sorriso irônico cada vez mais presente. ― Isso é uma informação exclusiva? ― Ele fez piada e todos riram por pelo menos mais alguns segundos antes de se recomporem. ― Mas falando sério... ― Sim, sobre o livro. ― Educadamente, e como uma lâmina bem afiada, Anne cortou aquele suposto flerte de uma maneira tão fria e sólida que Peter recuou na cadeira. ― Onde você estava quando teve a ideia para fazer A Caixa? ― Tentou se focar no assunto e Anne notou, suspirando e alcançando a própria xícara de café para sorver o líquido forte. ― Eu estava dentro de um metrô em Londres... estava lendo, com os fones de ouvido tocando algo que nem lembro. Eu sei que quando levantei a cabeça para olhar a próxima estação..., havia esse casal. ― Peter engoliu em seco. A voz dela estava ficando diferente. ― E eu não precisei de um segundo para notar que ela era cega. ― Tão nostálgica que ele era totalmente capaz de imaginar aquela cena. ― Não haviam lugares disponíveis e eu levantei para ela sentar. O homem que estava com ela... Ele sorriu, agradeceu, ele enxergava. Peter começou a prestar atenção naquela história. ― E eu fiquei ali, vendo o quanto ele tinha cuidado, o quanto ele parecia preocupado em deixá-la segura, confortável, feliz e o quanto isso o deixava feliz, seguro e confortável também. Eu me peguei desligando a música para escutar a conversa deles. Ela tinha longos cabelos negros e ele era loiro, alto, com uma expressão forte que me chamou a atenção porque quando os enquadrava juntos, eu via dois opostos. Ela era doce. Delicada. Uma pétala. E ele, apesar de amá-la, parecia ser o espinho. Mary e Lucia também estavam em silêncio, escutando aquela pequena porem instigante memória. ― Eles tinham uma aliança dourada no anelar esquerdo. Eram casados. Eu fiquei pensando na rotina deles, naquelas três estações em que ficaram dentro do vagão. Parei para pensar em como faziam o almoço, a janta, em como limpavam a casa, ou dançavam. Como iam a uma festa, seus assuntos da madrugada, seus momentos íntimos... como era o verdadeiro amor que eles pareciam nutrir. Então eu guardei esse momento... E comecei um livro com isso. ― Isso foi incrível... ― Escutou Mary sussurrar e riu com o gesto de silêncio de Peter. ― Isso foi incrível. ― Ele repetiu diante da risada contida de Anne. ― E por que fez aquele final? ― Por que vivemos na vida real. Não é um conto de fadas. Todos sabem que eu não faço finais descabidos... ― Não sentiu pena dos seus leitores? ― Por que eu sentiria? Por mais que seja uma história triste, não deixa de ser uma história. Você pode escolher entre aprender com ela ou odiá-la. ― Anne deu de ombros. ― Você deve receber muitas cartas e e-mails... Muitos de ódio? ― Eu recebo ameaças de morte o tempo todo. ― Confessou e Peter teve que rir. ― Todo tipo de ameaça, você não imagina a criatividade dessas pessoas. ― Ela riu também. ― Mas eu não ligo, faço mesmo assim. ― Algum relato chocante? ― Sobre fãs malucos? ― Eles riram de novo. ― Sim. ― Bem, quando eu matei Baltazar em Dois Tempos, recebi um pacote sem nome ou endereço. Eu ainda morava em Nova York e fiquei morrendo de medo de abrir. ― E você abriu? ― Se fosse uma bomba talvez eu estivesse morta, porque abri. E... Era um pássaro morto! Os grunhidos de nojo foram gerais. ― Sim. ― Ela concordou, suspirando. ― Pobre pássaro. Havia uma carta dizendo “Você matou Baltazar! Se m***r o irmão dele, vai pro mesmo lugar que esse pássaro! ”. Que tipo de pessoa faz isso? ― Você deve compartilhar um fã com D. Goda, que recebeu um rato morto. ― Oh céus! ― Agora, saindo dos pássaros mortos para os vivos, em sua última entrevista você mencionou que ia fazer um romance com final feliz. Isso confere? Anne apertou os lábios. ― Sim. ― Não sabia se ia se arrepender. ― Ou não. ― Achou melhor dizer e Peter sorriu para a expressão da mulher. ― Ainda não sei... Só o tempo vai dizer. ― Pode nos dar uma pista de seu próximo livro? ― Ele estava sendo ousado, mas a conversa corria bem e queria mais do que uma exclusiva, queria uma enxurrada delas. ― Não vou falar nada de significante... mas pense num lugar muito, muito longe... Inalcançável... E você sabe que é impossível chegar..., mas mesmo assim continua tentando, porque a vontade de conseguir é mais forte do que a de desistir. ― Posso imaginar um milhão de situações dentro disso. ― Ele foi franco. ― Eu disse que não ia ser nada significante. A conversa continuou, mais uma porção de perguntas, risadas, assuntos sérios, e logo eram nove e meia da noite. Peter pausou a gravação e colocou o aparelho no bolso. Ainda não tinha parado de chover e todos se levantaram quando a entrevista acabou. ― Muito obrigado por nos receber até essa hora. ― Imagina, a culpa foi toda minha. ― Anne abriu a porta e ligou as luzes do lado de fora. ― Alguém da edição pode te ligar atrás de alguns detalhes extras, certo? ― Ok. ― Consentiu, apertando a mão de Peter. ― Boa noite Sr. Donavan. ― Boa noite Srta. Walch. Anne abraçou Mary e Lucia e trocaram e-mails e telefones antes do trio correr na chuva até a van que demorou um pouco para ligar os faróis. O motorista deveria estar dormindo. A morena ficou na varanda enquanto o portão abria e o carro manobrava em frente à casa para sair do terreno, desaparecendo na chuva. Fechou o portão eletrônico e entrou na casa, trancando a porta. Estava cansada, precisava de um banho, não pensou duas vezes antes de subir as escadas, arrancar a roupa e entrar debaixo da água quente no chuveiro. Logo seria madrugada. Logo Charles estaria de volta. Estava ansiosa, absurdamente ansiosa. Queria vê-lo, sentia tanta saudade! Passou quinze minutos no chuveiro pensando no homem de madeixas ruivas que em breve estaria ali. Fechou o registro e abriu o box, puxando a toalha e se enrolando nela no segundo em que o interfone tocava lá embaixo. Anne arqueou as sobrancelhas. Será que tinham esquecido algo? Ela correu pelo quarto e vestiu uma calcinha de algodão branca com uma calça de moletom e uma blusa de lã de gola alta da mesma cor. Os pés descalços desceram pela escadaria até chegar lá embaixo. Puxou o interfone do gancho sendo imediatamente capaz de ouvir a chuva torrencial que caía lá fora e era captada pelo microfone. ― Quem é? ― Sou eu! Peter! Anne ficou parada por um instante. ― Peter? ― Isso! ― Você... está na chuva? Não conseguia ver nenhum carro lá fora, olhando pela janela. ― Nosso carro atolou à um quilometro daqui! ― O que? ― Nosso carro- ― Tudo bem, eu já entendi! ― Ela bateu o interfone e pegou o controle, abrindo o portão automático. Viu o homem surgir diante da iluminação da casa, conforme se dirigia para abrir a porta. Anne observou Peter andando em sua direção naquela chuva. Ela não entendia porque a encarava daquela maneira. Como se quisesse adivinhar tudo passando pela mente. ― Acho melhor você se secar. ― Os celulares não pegam aqui? ― Foi a primeira pergunta do homem. ― Não nessa tempestade. Seu melhor sinal vai estar na cidade. ― Anne deu passagem para que ele entrasse na casa, fazendo imediatamente uma poça de água. A chuva estava fria e Anne seria deselegante se não oferecesse ajuda. ― Podemos ligar para o guincho local, minha linha telefônica chegou recentemente. ― Tentou. ― E posso arranjar uma toalha enquanto isso. ― Eu vou aceitar. ― Ele passou as mãos pelos cabelos, tentando se livrar os pingos que escorriam pelo rosto. A mulher subiu a escada de volta ao segundo andar rapidamente, alcançando a prateleiras de toalhas dobradas e pegando duas, voltou ao hall de entrada da casa. ― Aqui. ― Entregou-lhe as duas peças com um semblante constrangido. ― Obrigado. ― Peter pegou as toalhas, começou a se secar vendo Anne entrar na biblioteca e desaparecer de seu campo de visão. Então olhou para cima, e seu coração disparou. Que raio era aquilo? Pareciam... ― Aqui, achei o telefone. ― A mulher voltou com o telefone e uma lista telefônica. ― O que são essas manchas? ― Não conseguiu evitar, apontando a marca no topo da escadaria; arredondada, parecia ter sido provocado por um impacto forte. Em volta, alguns respingos marrons e opacos. ― Ah... é uma obra de arte. ― Ela deu de ombros, escondendo perfeitamente o calafrio que dominou sua espinha. ― Uma amiga que fez. ― Parece sangue velho. ― É sangue. ― Anne afirmou. ― Não de gente, claro. Ela é aquela artista maluca que a família não gosta de apresentar pros amigos. De qualquer maneira... ― O coração feminino corria disparado. ― Aqui o telefone, está chamando. Peter pegou o telefone, aceitando aquela possibilidade, e o colocou contra a orelha, voltando a pensar na van que tinha atolado na estrada. ― Guinchos do Joe, boa noite. ― Boa noite! Amigo, nossa van atolou aqui na- ― Estamos sem carro para reboque. ― O homem do outro lado da linha foi direto. ― Um ônibus caiu em um desbarrancamento ali na 0149 e foi todo mundo para lá. ― Não tem ninguém que possa nos ajudar? ― Peter olhou para Anne que já podia imaginar a conversa apenas pela expressão do homem. ― Não... tem o velho Phill, mas ele não vai querer sair de casa à essa hora, a esposa é doente. ― Nós pagamos. ― Suspirou. ― Eu sou repórter da Times, preciso voltar para- ― As coisas não funcionam assim Sr. Repórter da Times. Onde quer que esteja, está seguro. Amanhã de manhã vamos desatolar seu carro. Pode ser? ― Amanhã de manhã? ― Peter estava quase chorando. ― Se quiser pode ligar pro seu seguro, que vai chegar algum tempo depois que já tivermos ajudado você, amanhã. ― Pôde ouvir ele mastigar algo que lembrava salgadinho e suspirou de novo. ― Certo... certo, então pode vir na 879, perto da casa branca, por favor? ― A casa branca da Sra. Walch? ― Essa mesmo. ― Então já conheciam Anne na cidade. ― Obrigado... Boa noite. Quando Peter desligou o telefone, viu-se sozinho no hall de entrada. ― Srta. Walch? ― Ele passou a toalha no rosto mais uma vez, sentindo um maldito frio arrebatá-lo quando Anne surgiu novamente, vinda da cozinha. ― Vamos. ― O que é isso? ― Ele apontou para o que já era evidente. ― Uma corrente. ― A escritora piscou entediada, vestindo a capa de chuva que ainda pingava no cabideiro e calçando coturnos. ― Eu tenho uma caminhonete. Vou tentar puxar vocês. ― Tem certeza? ― Por acaso pareço estar em dúvida? ― Ela arqueou as sobrancelhas, pegando a chaves do carro na travessa de cristal e saindo da casa, o encarou novamente, dessa vez do lado de fora. Peter não pôde evitar o sentimento estranho que lhe apossou. Talvez, ela fosse há primeira mulher que agisse tão naturalmente diante de uma situação como àquela. Afinal havia um temporal, e ele tinha certeza que Anne sabia que ia se molhar e enlamear. ― Tudo bem, vamos. Deu-se por vencido e só então saiu da casa para que Anne a trancasse e ambos despontaram correndo na chuva até a caminhonete vermelha quatro por quatro que estava parada em frente ao sobrado. A morena jogou a corrente na carroceria e abriu a porta do automóvel, saltando para dentro. ― Não sabia que você tinha esse lado... ― Peter precisou dizer, um pouco surpreso quando ela ligou o carro e engatou ré firmemente. ― Que lado? ― Você não sabe de lado nenhum foi o pensamento de Anne enquanto manobrava a caminhonete. ― Esse lado... destemido.             Os faróis bateram na estrada e a morena o encarou por um breve segundo.             ― Isso se chama viver, Sr. Donavan. ― Os olhos azuis cintilaram com o pedido de Charles ecoando em sua mente. Era isso que estava fazendo? Anne sorriu para si mesma e pisou no acelerador, as rodas deslizaram na lama e o carro fez um rápido ziguezague.             Peter arregalou os olhos, virando o rosto para encarar a estrada, um pouco perplexo. Até ele que assumia estar com um pouco de medo naquela situação teve que correr um quilometro no escuro porque o motorista era gordo demais e as outras duas pessoas eram mulheres que simplesmente o chutaram para fora da van no meio da tempestade.
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