06

3589 Words
Anne m*l dormiu. Ela já estava acordada, colocando comida para os cães quando amanheceu. O dia veio frio, nublado. Talvez uma chuva desabasse à tarde. Tomou banho, escovou os dentes se olhando no espelho e notando o quanto estava um caco, vestiu-se, encobriu o roxo no pescoço com um lenço e maquiou o rosto inchado, pegando a chave do carro e ligando-o assim que o sol banhou os jardins.             Enquanto a caminhonete cereja ultrapassava a entrada enlameada, Anne pensava em apenas uma coisa: Respostas. O xerife que havia atendido a ocorrência em sua casa, Cage. Era dele que iria atrás. Se tinha falado com Charles e ainda encoberto tudo aquilo, provavelmente sabia de muito mais do que ela, atualmente. Em meia hora, estava na pequena cidadela, e o barulho do motor não se destacava em um trânsito de tratores e caminhonetes ainda maiores que a dela. Anne não viu dificuldades para achar o posto policial, e parou o automóvel em frente a ele. Não saiu do carro. Seus olhos caíram para o volante. O gosto de ferrugem tinha desaparecido dos beijos de Charles com o passar dos dias. Com o passar dos sonhos, e das conversas e de toda a acanhada memória que eles tinham criado até aquele momento. Quatro dias e Charles dominava sua mente. Como isso é possível? Como... como esse maldito foi capaz de fazer isso tão rápido...             Ela não percebeu, mas já tinha começado a esganar o volante, com uma careta agoniada enquanto o rádio ao fundo tocava uma balada sem ritmo. Anne bateu a testa no volante, se arrependendo logo em seguida pela dor que ainda sentia no rosto.             Que inferno estava acontecendo na vida? Há cinco dias não acreditava em fantasmas, tampouco em Deus. Agora estava prestes a juntar as mãos, fechar os olhos, e rezar para que obtivesse boas respostas, em vez das terríveis que Charles havia feito parecer.             Ainda sentia aquele calor... Da boca dele, comprimindo a sua... E como o simples resvalar da língua masculina fazia seus joelhos cederem. Anne tinha ficado dormente com aquele beijo, como se a saliva de Charles tivesse uma substancia esmagadora e forte o suficiente para derrubá-la.             Era um sentimento bom. Um sentimento que gostava de sentir, acima do medo, do f**o e do sombrio... havia aquele escondido, e quase inexistente sopro de vontade. Era como se nas entrelinhas de Charles..., ele pedisse ajuda. Um demônio procurando redenção, ou qualquer coisa parecida que a mente inventiva de Anne pudesse assemelhar.             Ela olhou para o painel. O coração tinha começado a bater descompassado quando pensou naquilo. Se estava disposta a aceitar o fato de estar gostando de um fantasma... precisava aceitar os fatos imutáveis que o passado desse mesmo fantasma possuía. E se Charles não falasse... ela cumpriria sua palavra e descobriria sozinha.             E assim, pegou a bolsa e abriu a porta do carro, saltando para fora e pisando no asfalto esburacado, caminhou até a calçada. O cabelo preso em um r**o de cavalo, a regata branca e a calça jeans escura lhe caíam perfeitamente. Os coturnos se esfregaram contra o tapete de bem-vindo da delegacia, logo avistando três ou quatro oficiais, e uma mulher sentada em frente a uma mesa nos fundos, ao telefone. Ela engoliu em seco, caminhando até o balcão e logo sendo o alvo principal da maioria dos olhos dentro daquele local. Aquilo lhe fez hesitar um pouco, mas continuou o passo e colocou os braços sobre o balcão de mármore.             ― Bom dia.             ― Bom dia. ― O homem respondeu. ― Posso ajudá-la?             ― Eu gostaria de falar com o xerife Cage. ― Quando Anne disse aquilo, um dos outros que estavam ali lhe encarou diretamente, começando a caminhar em sua direção.             ― Bom dia, Srta.             ― Anne Walch. ― As expressões mudaram. Anne evitou franzir o cenho para a aparente reação geral. ― Eu gostaria de falar com o senhor. Podemos?             ― Cla... Claro. ― Ele deu a volta no balcão e saíram da delegacia, começando a andar pela calçada.             O silêncio os rodeou por um momento. Anne sabia exatamente como começar, só não sabia se de fato devia.             ― Em que posso ajudá-la, Srta. Walch? ― Como um milagre, o xerife começou a conversa.             ― O que sabe sobre Charles, Sr. Cage? ― E Anne foi direta.             O velho cessou o passo. De alguma forma sabia que aquela pergunta viria. Pelo olhar mantido firmemente nos orbes azuis, soube que Walch já tinha experimentado algum terror proporcionado pelo fantasma.             ― Você deveria ir embora. ― Foi há resposta, depois de um tempo. Anne permanecia parada em frente ao homem mais velho. Os cabelos dele eram grisalhos e ele tinha uma porção de rugas que denunciavam todo o estresse.             ― Como disse? ― De repente, parecia mais frio. E um calafrio percorreu a espinha de maneira brutal.             ― Você deveria sair daquela casa, Srta. Walch.             Anne sentiu o coração falhar uma batida, e ela comprimiu os lábios nervosamente.             ― Pode me dar alguma prova de que-             ― Todos que moraram lá, morreram. Ou ficaram malucos, Srta. Walch. Eu não arriscaria. ― Ele voltou a andar e Anne precisou de um segundo para acompanhá-lo.             ― Espere um segundo... morreram? Como assim? Me... Me conte... Sr. Cage. ― A morena segurou o braço do xerife, os olhos fincados nos cansados do homem. ― É melhor me contar tudo.             ― A pessoa que te vendeu a casa, é o filho mais velho de uma família de quatro pessoas. Ele foi morar com a tia, levou o irmão mais novo junto.             ― O que aconteceu com os pais? ― Anne sentia o ar faltar. Havia aquela precipitação, aquela vontade de escutar o que Cage diria e ao mesmo tempo, o esmagador desejo de correr daquela conversa.             ― Morreram.             ― Co... Como...?             ― Nós começamos a receber queixas de invasão. O marido dizia que tinha certeza ter visto alguém lá... eu já sabia quem era, mas tentei tirar aquilo da cabeça dele... ― Cage olhou para Anne, que tinha arregalado os olhos e fincado os orbes nos dele como se, de repente, mergulhasse dentro daquela cena. ― Mas ele começou a ficar acordado até o dia em que Charles decidiu se mostrar... O casal viu ele e ficou aterrorizado, saíram correndo, ela caiu da escada, quebrou o pescoço... O marido se deu um tiro na boca logo depois... Eu agradeci a Deus porque os filhos deles não tinham visto nada...             ― Ma-mas..., mas... eles... eles se assustaram...             ― Antes deles, um velho teve um infarto, uma outra mulher se jogou do telhado, e o resto, ele tratou de expulsar, fez todos se tornarem pessoas... Diferentes... Diferentes do que eram antes. ― A expressão de Cage dizia que ele se lembrava, naquele exato momento, de coisas terríveis. ― Completamente diferentes. Entende isso, Srta. Walch? Precisaram tirar um homem de lá e ele estava completamente louco... E eu nem sei se o miserável ainda está vivo... essa casa... tem sido vendida sem aviso. Dono após dono, não importa o quanto eu tente... eu... não...             ― Você não vai mexer com Charles, não é mesmo Sr. Cage? ― Ela tinha as sobrancelhas franzidas para baixo em um nítido esboço irritadiço. ― Vocês todos só sabem julgar o livro pela capa. Vocês veem um monstro, mas ele me salvou, e salvou Eliza, e você sabe disso. ― Anne se virou e começou a andar de volta para o carro conforme o homem a seguia com o olhar.             ― É a primeira vez que ele salva alguém. Charles nunca salva ninguém, Srta. Walch! Não se iluda! Talvez esteja apenas querendo te m***r lentamente... O melhor que pode fazer é ir embora!             Anne parou de andar, olhando o chão. Ela sentia as mãos tremerem.             ― Obrigada pela conversa, Sr. Cage. E com isso, destravou e entrou na caminhonete, que logo possuía um motor rugindo. Anne deu uma última olhada para o policial que a encarava fixamente antes de dar seta e sair dali.             Dirigiu de volta para casa. Esperou o portão recém-instalado abrir e adentrou a frente da casa, estacionando e pulando para fora sem nem puxar o freio de mão. Destrancou a porta e entrou, colocando a senha para desativar o sistema de segurança, ela correu pelo hall de entrada até a biblioteca. A luz do sol adentrava a casa apesar do dia estar nublado, e ela se apressou em rasgar uma folha do primeiro caderno que viu e puxando uma caneta, debruçou-se sobre a mesa para escrever palavras ásperas, ovais e grandes: “Eu sei de tudo. ” Ela encarou o rabisco e correu até o sótão, jogando a folha em cima da cama e descendo até o térreo de novo. Anne nem pensou em pegar uma peça de roupa. Ela ativou o sistema de segurança mais uma vez e trancou a casa, pulando os dois degraus da entrada e pisando com as botas de couro no cascalho, entrou no carro, ligando-o. O som do motor soou barulhento, e Anne girou o volante enquanto dava ré, manobrando a caminhonete e saindo de vez da casa. Quando viu, estava longe da cidade, era fim de tarde, e a gasolina, acabando. A música tocando no rádio conhecia bem, e de repente estava cantarolando os versos de “Paint” de The Piper Kites, com os dedos abraçados ao volante e os olhos ardentes presos na estrada. Quatro dias era pouco o bastante para ir e nunca mais voltar? Quatro dias e quatro noites sabendo da existência de um verdadeiro fantasma e já estava daquele jeito. Jogada às traças. Dirigindo sem rumo pelas avenidas. Longe, pelo menos uns cem quilômetros de casa e simplesmente não queria voltar. Até onde conseguiria ir? Antes que Charles lhe fizesse pisar no freio e dar meia volta. Anne parou no próximo posto que avistou e esfregou o rosto antes de pular para fora do carro, abasteceu e rumou para a loja no fundo. Precisava de bebida, de cigarros, de algo que confortasse aquele vazio. Que a preenchesse... Os dedos empurraram a porta e ela encarou o garoto atrás do balcão, andando em passos lentos para o fundo da loja e pegando algo para beber, voltou até o caixa, pedindo um maço de cigarros com um isqueiro e pagando tudo, inclusive a gasolina, Anne saiu dali, enfiando-se na caminhonete e aumentando um pouco o som. Tudo parecia ser diferente, realmente, como Cage dissera. Parecia estar em outro mundo, de repente. Como se aquela casa inteira ficasse numa dimensão fora da verdadeira, da que costumava viver até se mudar para lá. Tudo tinha mudado... tudo tinha mudado completamente, e aquilo assustou Anne como nunca pensou que assustaria. Será que estava mesmo acontecendo? Será que tinha sofrido um acidente vascular e todas as memórias não passavam de ilusões montadas por si mesma...   Enquanto jazia numa cama de um hospital silencioso. A música que tocava não ajudava a clarear a mente. Os acordes e a melodia daquele som só a faziam mergulhar e mergulhar cada vez mais profundamente na imensidão de perguntas, de memórias, sentimentos, sensações, palavras... Momentos. Que por mais curtos... Anne apertou o volante, barrando aquele pensamento. Foram os melhores da minha vida. Os melhores da sua vida, Anne... assuma. Ela mordeu os lábios, iniciando uma batalha que só era capaz de travar contra si mesma. Perturbada. Entorpecida. Cega pelos postes alaranjados que faziam grandes e desfocados pontos de luz começarem a dançar na visão embaçada. Anne piscou, e as lágrimas transbordaram e escorreram pelas bochechas avermelhadas. Tinha se apaixonado por um fantasma louco, assassino, como diziam as más línguas. Tinha caído em seu feitiço em tão pouco tempo que chegava a ser patético. ― Patética... ― Murmurou, os olhos na estrada, mas os pensamentos jogavam-na em uma situação perigosa. A noite tinha se deitado nos Estados Unidos e transformado a estrada em uma linha infinita que simplesmente percorria, sem um rumo em particular. O lugar que Anne queria chegar estava fora de seu alcance, completamente fora de seu alcance. Esse pensamento lhe fez apertar os olhos, dirigindo às cegas por enormes cinco segundos antes de voltar a fitar a estrada. Os orbes caíram para o relógio no painel: meia noite e dois; e seu coração estava doendo. Havia uma saudade sorrateira começando a abocanhá-la como uma cobra, lentamente, engolindo-a e sabia que em pouco tempo estaria sendo digerida por aquele suco gástrico terrível chamado arrependimento. Não devia ter deixado aquele bilhete. Não devia ter sequer voltado naquela casa antes de clarear a mente. E então... Era isso que estava fazendo, dirigindo sem rumo como fez quando a mãe morreu? Quando se sentiu tão desprezível e miserável que a verdadeira vontade era de atirar o carro de um desfiladeiro e se explodir junto com ele. Mas não tinha feito isso, no fim, e agora estava ali, numa situação completamente diferente, deixando lágrimas escorrerem pelo rosto retorcido numa irritação que ela nem sabia por que nutria, já que o sentimento gritante em sua alma era o de total confusão. Como se alguém tivesse ido lá e dado um tiro em sua bússola interna. Perdida, com as mãos tremendo no volante e a música soando no rádio, Anne tentou espantar aquilo para longe. O marcador dizia que tinha percorrido quase duzentos quilômetros. Duzentos quilômetros de pensamentos compulsivos, como se de repente sua vida tivesse se tornado um quebra cabeça completamente impossível de ser resolvido. Anne pisou no acelerador, mudando a marcha do carro e empenhando uma velocidade maior, ela abriu os vidros da caminhonete, removendo o lacre do maço de cigarros e abrindo a caixa, tirou um dos tubos de lá de dentro e o acendeu, segurando o volante com apenas uma mão para aumentar o som. Os cabelos estavam esvoaçando, a noite engolia cada hipótese que colocava na mesa e ela continuava dirigindo esperando pelo momento em que, como quase sempre, seu cérebro conseguiria entender... E solucionar. Fumou o cigarro e bebeu, sem parar para descansar, e logo eram quase quatro da manhã. Tudo que Anne se perguntava era... O que ele estaria fazendo, depois de ter procurado por toda a casa, depois de ter achado o bilhete... O que ele estaria... pensando...? Será que estava pensando nela? Será que sentia o mesmo sentimento que remoía agora dentro daquele maldito carro que mais parecia uma capsula de pressão? Será que Charles... Era realmente bom... ou tudo era uma farsa? Ele tinha manipulado só os sonhos... ou os sentimentos também? Anne pensou naquele beijo, talvez pela milionésima vez naquele fatídico dia. Ela pensou no gosto, na sensação, em como seu coração bateu e o estômago se embrulhou como se estivesse em uma montanha-russa. Lembrou-se de como seus pelos se arrepiaram, do formigamento corporal, da quentura que quase a fez transbordar... de como o toque dos dedos dele escorregando por seu couro cabeludo fizeram com que desejasse que o tempo simplesmente parasse. O coração falhou, novamente, cruelmente, e a quase cem por hora, pisou no freio.  Os pneus cantaram até que o carro parasse. Não podia ser mentira. Não podia ser uma máscara, não podia ser manipulação, nem nenhum tipo de qualquer coisa ruim... Porque aquele beijo não era capaz de mentir... aquele beijo não era sequer capaz de controlar o que dizia... Ele fora abrupto, sedento, desesperado, e lembrar-se dele foi como despertar algo, concertar algo, entender. Loucura. Era loucura. O carro ficou parado na estrada enquanto ouvia algumas buzinas. Poucos automóveis passavam nas vias laterais dando farol. Anne engatou a primeira marcha e girou o volante, atravessando o canteiro e passando para a faixa contraria, acelerou, de volta para casa. Que fosse loucura... Que fosse o que fosse... Era algo que... ela não podia descrever... tão pouco refrear.   (...)   Já era noite quando chegou a casa novamente. Estava morrendo de vontade de ir ao banheiro e os cachorros latiam com fome. Mas ela ignorou aqueles dois fatos para girar a chave no miolo, abrir a porta, desativar o sistema de segurança, e subir as escadas até o sótão. Estava ofegante quando chegou lá em cima, e se surpreendeu ao encontrar tudo absolutamente igual. Até mesmo o bilhete, parecia estar no exato lugar em que o pusera antes. Um sentimento de estranheza invadiu Anne e ela girou o corpo, voltando a sentir aquela sensação de atordoamento. Onde ele estava? Nenhum sinal, nenhuma resposta, nenhuma palavra rabiscada ou uma caneca de café. Não tinha pregado os olhos a quase dois dias. Tinha passado um dia e meio com os olhos na estrada como se nada além disso importasse. Mas tudo que importava era o que jazia longe daquela estrada e talvez tenha demorado um pouco perceber isso. Charles tinha dito que não adentraria mais seus sonhos. Tinha dito que não mais interferiria... Era isso que queria dizer? Então... aquele beijo se reduzia a isso? À um ponto final? Anne sentou na cama, observando o bilhete sobre o edredom. Exatamente igual. Um suspiro lhe escapou. Havia uma vontade de chorar começando a se esgueirar por seu interior e a mulher se pôs de pé, decidida a ir alimentar os cães, depois tomar um banho e fazer o xixi que tinha prendido nas últimas doze horas. Tinha dirigido um total de quinhentos quilômetros. Uma ida perdida, uma volta angustiada, e agora estava ali, descendo os nove degraus de madeira e rumando para o próprio quarto com o coração batendo errado. Tomou banho, escovou os dentes, comeu o que restava na geladeira. Rastejou até o canil, alimentou os cães e os soltou no terreno. Depois voltou para dentro e se arrastou de novo até o sótão. Estava exausta, mas se recusava a dormir. Jogou-se na cama, encarando o teto, completamente absorta em pensamentos. Logo chegaria a hora. Logo o ponteiro anunciaria a vinda de Charles e o início de uma conversa que decidiria seus dias a partir dali. Não podia simplesmente esquecer. Não podia se mudar e fingir que nunca o conheceu, fingir que ele não passou de um estranho em seus sonhos... um estranho que rondara sua vida... Não conseguia mais ver Charles como um estranho. Nunca conseguiu. Desde o começo. Porque naqueles quinhentos quilômetros ele tinha crescido dentro dela muito mais do que nos dias naquela casa. As meras lembranças que lhe proporcionara acabaram por fazer Anne decidir que ele tinha direito a uma segunda chance. Uma chance de explicar, uma chance de mostrar que não era o monstro que faziam ele parecer... secretamente, queria que Charles lhe dissesse que tudo era mentira... que ele nunca tinha ferido ninguém inocente, que nunca tinha levado ninguém a loucura. Que nunca tinha feito nada para destruir a vida de pessoas boas, como ela... que só estavam vivendo. E foi com todos aqueles pensamentos em mente que os olhos se fecharam, e ela caiu dentro de um breu que pareceu durar uma eternidade inteira. Anne não sonhou naquele cochilo. Ela ficou presa dentro de uma escuridão que fedia a fumaça de cigarro por tanto tempo que por um momento, no subconsciente que ainda oscilava, avisou o cérebro que talvez não acordasse, e estatelou os olhos, com uma sensação de queda fazendo seus músculos se enrijecerem. Ela se viu no sótão e buscou o criado-mudo onde o relógio repousava. Três e cinquenta e seis. Anne pulou da cama, mas antes que pudesse dar o primeiro passo ela o viu. Na verdade, não entendia como não o tinha visto antes. Seu coração parou de bater, absolutamente incapaz de respirar. O corpo inteiro vibrou. Charles jazia sentado no chão, logo ao lado de onde firmava as pernas agora. O silêncio os abocanhou como um animal feroz e Anne sentiu que ia desmaiar. Aquela maldita vontade de chorar tinha se apossado de si novamente e teve que ranger os dentes em busca de algum controle sobre os sentimentos que jaziam a flor da pele. Por um minuto inteiro, eles ficaram em silêncio. Charles olhava para o chão onde os pés femininos pisavam, e ela fitava fixamente os cabelos vermelhos que insistiam em impedi-la de ver a expressão que ele fazia de tudo para esconder. De repente, bem devagar, o braço forte e longo circundou as pernas femininas. O corpo masculino se endireitou, e ele ficou de joelhos, envolvendo os braços ao redor das pernas e quadril de Anne. Charles escondeu o rosto na cintura feminina, e ela sentiu a respiração dele ultrapassar o pijama que vestia e esquentar sua pele. Tentava impedir aquela tremedeira de assolá-la, mas parecia impossível. Dentro do silêncio, dentro daquele abraço que parecia tão... desesperado... suas palavras desapareceram, e tudo que queria era abraçá-lo de volta. Não queria assumir, mas a simples hipótese de se afastar daquela criatura... lhe trazia para ainda mais perto dele. Deixou que os joelhos se dobrassem, e ela se abaixou, completamente encaixada nos braços fortes, a mulher circundou o pescoço masculino. ― Por favor, não me deixe louca... eu não quero sair daqui... eu não quero... Esquecer você... ― Para um fantasma, o coração batia e parava de forma absolutamente real. Os olhos negros, arregalados, arderam em meio aos fios de cabelo de Anne, e de repente, num piscar de olhos... Já não estava mais ali. De novo, a morena o viu evaporar e o aperto de seus braços desaparecer. Ali, no chão, ao lado da cama, olhando o piso de madeira. Aquele mesmo vazio que sentira no telhado tornando o menor dos movimentos uma missão impossível. Deixou-se cair no piso, deitando a cabeça na madeira polida. Sozinha... Mais uma vez... com os pensamentos que nunca, ...  Nunca paravam de gritar.          
Free reading for new users
Scan code to download app
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Writer
  • chap_listContents
  • likeADD