01

2615 Words
  Capítulo Um.  O sol banhava os jardins e florestas ao redor da casa quando amanheceu. Haviam pássaros pavimentando a linha de arame que rodeava seu terreno e o orvalho provindo da noite fria agora se transformava em um manto de vapor levitando a poucos centímetros do solo. Mas Anne Walch não pregara o olho depois daquele sonho. Estava sonhando. Ou delirando? Que maldito sonho fora aquele? Ainda sentia a boca latejar como se aquele beijo realmente tivesse acontecido. Violento, abrupto. E aquela voz... de quem era? Quem ele era? Por que... por que a chamara de invasora? Os orbes encararam novamente a tela do computador, e tudo que tinha sido capaz de escrever fora um prólogo curto sobre sua recente quimera. Estava atônita, apreensiva, curiosa, um pouco amedrontada. Era como se a luz do sol diminuísse um pouco o medo súbito que sentiu após acordar. Naquele dia a mulher almoçou no horário, preparou para si alguma comida rápida com batatas e um suculento bife e devorou tudo por pura questão de sobrevivência. Não sabia bem se cuidar sozinha, mas sentia-se um pouco fraca naquela manhã. Talvez fosse a falta de sono. Talvez fosse o sonho. Era como se sua pele ainda ardesse nos locais em que havia sido tocada. Como se sua cintura e seu rosto ainda pegassem fogo e latejassem mesmo depois de tantas horas. Não conseguia parar de pensar naquilo. E assim ela passou o resto do dia inteiro sozinha, no mais puro e completo silêncio, olhando para a tela do laptop e relendo as últimas palavras do prólogo sem parar. “O gosto de ferrugem” eram elas. E era como se esse mesmo gosto ainda estivesse presente, não importava o que comesse e cada vez que lembrava, um choque elétrico invadia os músculos e lhe obrigava a ficar de pé, em genuína fadiga. As horas se arrastaram até que a noite chegasse e Anne se entupiu de sucrilhos e leite antes de arrancar a roupa e se enfiar debaixo do chuveiro, tomando um merecido longo banho quente para então se jogar na mesma cama que parecia ter lhe proporcionado aquele sonho. Dessa vez, apagou as luzes, e o som do vento lá fora era como um tranquilizante para embarcá-la para outra realidade. Estava prestes a dormir quando um estrondo a fez pular, assustada. Os orbes azulados correram para o teto, de onde o som tinha vindo. Ficou sem se mover por pelo menos cinco segundos, um pouco alarmada, pronta para o próximo estampido. Como se temesse uma súbita invasão, os olhos recaíram para a porta entreaberta e o coração pulou dentro do peito. Aos tropeços e trancando um gemido de dor pelo topetão, a escritora correu até lá, trancando a folha de madeira num baque s***o seguido de um estalar baixo. A chave girou duas vezes na fechadura antes de Anne voltar até o pé da cama, onde a caixa de papelão repousava. Futricando ali, a mão pequena e levemente trêmula puxou a pistola trinta e oito que repousava dentro do coldre. Se Eliza estava achando que os dezoito cães eram suas únicas companhias estava redondamente enganada e se aquele barulho fosse um maldito guaxinim, ele estaria morto em alguns minutos! Walch destravou a arma, checou as balas e transpirando coragem, ela se levantou. Se queria morar sozinha tinha que enfrentar tudo, e isso ia de um maluco no sótão a um guaxinim invasor. Ambos seriam baleados, então ela enfiou o dedo no gatilho e andou pelo quarto até a porta, destrancando-a e abrindo-a num supetão. As luzes estavam acesas, os cães estavam quietos. Quando pulou para o corredor, o peito batia um pouco desenfreado, e precisou dizer para si mesma sobre a velha história de ser uma mulher corajosa para dar o próximo passo e todos os outros depois do primeiro. A escada para o sótão era alta e um pouco longa, e acendeu todas as luzes dali antes de pisar no degrau inicial. Ao fim de todos eles, uma porta de madeira antiga e pesada, e ela se deu conta que nunca tinha entrado ali antes, a única coisa que sabia daquele sótão era o que as fotos lhe diziam: espaçoso e iluminado. A audição aguçada foi capaz de escutar o som que vinha de lá de dentro quando atingiu o quarto degrau. Ela estancou. A saliva desceu pela garganta seca e notou o quanto a pistola tremia presa na mão direita. Anne olhou para as próprias pantufas pretas, perguntando-se se o melhor a fazer não seria soltar os cães na casa e deixar que eles fizessem o trabalho, mas aquele pensamento foi completamente apagado ao passo que o som ficou mais forte. Mais forte que a chuva que caía torrencialmente no telhado. Seu peito arfou. Coragem, Anne. Era o pensamento ao deixar que os pés calçados pelas pantufas subissem os cinco degraus seguintes até que sua mão esquerda estivesse abraçada na maçaneta e o coração prestes a escapar pela boca. Por que o som não parava? Parecia algo vibrando, mas os estrondos eram tão altos que faziam calafrios percorrerem seu corpo inteiro. Os dedos giraram a maçaneta e Anne empurrou a porta, batendo a mão no interruptor e acendendo a luz, ela apontou a arma com a ajuda da outra mão para obter algum sucesso em parar de tremer, mas... ao vislumbrar o local, um sentimento de súbita tranquilidade lhe apoderou. Ninguém. Nenhum doido se esgueirando por ali... A única coisa que tinha naquele enorme salão com piso de madeira e janelas amplas era um frasco e bastou localizá-lo no chão de madeira, bem no meio do cômodo, para que o objeto começasse a vibrar. E ele tremia, abalando a madeira como se pesasse mil vezes mais do que seu real peso. Naquele momento, Anne Walch congelou, e seus punhos firmaram a arma em direção ao pequeno e delicado objeto que parecia ter vida própria. Ela não acreditava naquilo. ― Que... Que merda... é essa... ― O coração galopava como um cavalo selvagem quando o barulho começou a irromper o cômodo por completo, sobressaindo totalmente ao barulho da tempestade lá fora. O que p***a está acontecendo aqui? Gritava em seu âmago. Não podia sequer crer no que os olhos viam. O objeto vibrava tanto que fazia oscilar o chão sobre o qual pisava, e ela sentia aquela trepidação começar a subir por suas pernas à cada milésimo de segundo que passava ali. Anne não acreditava nessas coisas. Ela não acreditava em nada. Mas quando viu aquilo, uma confusão lhe apoderou. Era um sonho? Era real? As mãos seguraram a arma e a morena mirou na direção do frasco que começava a causar um som ensurdecedor. Apertou o gatilho e a bala acertou o frasco na primeira tentativa, estilhaçando-o e imediatamente cessando aquela espécie de evento paranormal. Ofegante, segurou a pistola e correu para fora do sótão tão rápido que estava de novo no quarto em um piscar de olhos. Trancou a porta e certificou-se de tê-lo feito corretamente. Estava assustada. Aterrorizada. O coração disparado; havia um medo genuíno correndo em suas veias. Era um fantasma? Um maldito demônio? O que era aquilo... aquele frasco... Deixou que a arma caísse na cama ao lado do coldre e logo revirava a caixa em busca do pequeno vidrinho de calmantes que sempre carregava consigo. Tinha insônia, às vezes precisava disso e naquele momento, sentia que três pílulas não seriam suficientes para acalmá-la. Os olhos bateram no relógio, uma da manhã. Quando achou o pequeno pote amarelo os dedos abriram a tampa com algum desespero e ela jogou quatro comprimidos na mão rapidamente, mandando-os para dentro a seco. Anne viu-se de joelhos ao lado da cama, desejando intensamente a companhia de qualquer ser humano naquele momento. Ela desejou até mesmo o maldito guaxinim. Levantou-se, andando até o banheiro. Bebeu a água da torneira e jogou um pouco no rosto, procurando alguma calma. Quando se olhou no espelho, soube que quatro pílulas tinham sido mais do que suficientes e o relaxamento nítido de seus músculos a fez voltar para o quarto, vislumbrando a cama conforme a respiração tornava-se calma de novo. O corpo feminino caiu sobre o colchão, seu coração batia normalmente, e as pálpebras pesadas enquanto a sensação de ter dado fim ao que a atormentava lhe ajudava a embarcar em um sono bom e calmo, brutalmente incentivando por calmantes. Anne adormeceu, como se nada de errado tivesse acabado de acontecer. Como se o buraco que a bala tinha feito no sótão acima de seu quarto não tivesse perfurado o solo e se cravado ao chão ao lado da cama. A sensação foi de que apenas um segundo tinha passado, quando o som do despertador invadiu seus tímpanos e lhe arrancou do sono como se voltasse a vida. Os olhos azuis se estatelaram. Tudo que viu foi o teto, e a luz ainda acesa. O barulho da chuva soando. O braço feminino se esticou e quando ela se curvou para parar o despertador, havia uma pessoa ali. Um homem. Em frente a sua cama. O ar desapareceu de seus pulmões e os orbes se arregalaram conforme cada músculo do corpo enrijecia numa descarga de pânico. Anne pulou da cama gritando em desespero. O som do despertador rasgando o cômodo quando pisou no chão. Ele tinha olhos negros como o breu e cabelos ruivos como o fogo. Era alto e ela pôde ver a mão masculina se levantar poucamente. O segundo seguinte quase à fez desmaiar. Viu o lençol que se espalhava pela cama criar vida própria e circundar seu corpo, amarrando-a por completo. ― Não! Não! Não! ― Esperneava, levitando. ― Não, por favor, não! Era um sonho, só podia ser. Não era possível. E quando pensou nisso, parou imediatamente de mover as pernas. Um sonho. Era isso, exatamente isso. Um suspiro de alívio escapou pela garganta. Devia estar dormindo tranquilamente agora. Tudo isso era uma ilusão, um pesadelo. Anne respirou profundamente e então se permitiu olhar diretamente dentro daqueles olhos que pareciam não ter fim, nem brilho. Eles eram tingidos de um n***o tão profundo que lhe arrancava um calafrio lúgubre. Parecia a própria morte dentro de um par de íris. ― Você. A voz quase gutural soou e congelada, Walch engoliu em seco, levitando a poucos centímetros do chão. O coração voltava a bater descompassado. Um sonho. Era um sonho. Não passava de um sonho. ― E... E... Eu? ― A voz m*l saía. Aquele homem tinha uma voz grossa, séria e fria. Como a do sonho anterior. Era como um demônio, um verdadeiro demônio, ela pensou. ― Por que quebrou meu frasco? ― Havia um semblante fragmentado na face daquele homem. Era uma mistura de fúria errante e alguma coisa que parecia ser completamente o contrário. ― Essa casa é minha, você está invadindo. Naquele momento ela soube: Não era um sonho. ― O que? ― Balbuciou, chocada. ― Você atirou no meu frasco. ― Ele afirmou e os olhos de Anne ficaram ainda mais arregalados, o medo voltando a crescer em suas entranhas. ― Você o reduziu a milhões de pedaços. ― Como... Como assim ‘seu frasco’? ― Tem alguma ideia... do que fez? ― Os dentes masculinos trincados, os orbes negros cravados nos azuis como estacas e Anne sentia aquela intensidade esmagar sua alma segundo após segundo. ― Quem é você...? ― Ousou indagar. ― O que faz na minha casa? ― O som do despertador era quase capaz de abafar a voz feminina, mas não a dele, a voz do homem era alta, forte e imponente. ― Essa é minha casa! ― Ele respondeu, o tom elevado, agressivo. ― E das três às quatro da madrugada, ela é mais minha ainda. E então o despertador parou, e Anne olhou para o relógio para contatar que eram três e cinco da madrugada. Ela engoliu em seco. ― Você é um fantasma? ― Agora que você destruiu meu frasco, sim. ― O que... O que quer dizer com isso? ― A verdade é que estava conversando com um fantasma, estando presa à um lençol que tinha vida própria e levitando no meio do quarto. Ela só ainda não tinha entendido completamente aquele fato. Estava assustada e chocada demais para agir com algo além de naturalidade. Afinal ele não era um monstro e por mais que os orbes negros lhe tirassem a paz, Anne simplesmente não podia fugir. Escapatórias simplesmente não existiam. ― Aquela era minha morada. Você a destruiu. ― E... Por quê? ― Como assim por quê? ― Seu tom foi ríspido, andando até ela com o mesmo semblante que era capaz de aterrorizá-la. ― Se eu colocar fogo nessa casa, você vai entender? ― O grito fez as vidraças tremerem, os pássaros voarem, os cães começarem a latir. ― Você está invadindo! ― Ele gritou, e os ombros femininos se encolheram em pleno pavor. ― Por favor, não faça isso... ― Foi só o que pôde dizer quando ele chegou tão perto e mesmo levitando daquela maneira, a figura masculina ainda continuava mais alta. ― Se pretende ficar nessa casa é bom saber de algumas coisas... eu vivo aqui... eu sou o verdadeiro dono desse lugar. E eu vou- ― Qual é seu nome? ― Ele a encarou em uma nítida expressão de agastamento. Não gostava de ser interrompido. ― Se me interromper de novo vou pintar a casa com seu sangue, desgraçada... ― Certo. ― Anne não piscou. Não podia. Ela sequer respirava. ― E seu nome? ― E exatamente isso pareceu constranger o fantasma. Ele se afastou, nitidamente sem jeito. ― Charles. ― Bem, desculpe, Charles... eu fiquei com medo do seu frasco, estava vibrando e fazendo um barulho muito alto. Ali o homem tirou seus olhos dos dela. ― E por isso atirou nele. ― O que esperava que eu fizesse? ― Eu não sei... talvez sair da minha casa e nunca mais voltar? ― O novo grito trouxe um susto ainda maior. ― Essa resposta é muito vaga, tente se pôr no meu lugar. ― Ela suspirou, tentando abraçar a calma de que tanto se gabava possuir. ― Estou conversando com um fantasma. Ainda acho que isso- ― Isso não é um sonho. Ela prendeu a respiração quando os orbes negros voltaram a encará-la com firmeza. ― E eu não sou uma alucinação. ― Charles tinha uma áurea sombria e ainda que seguramente longe, parecia perigosamente perto. ― Meu nome é Anne... ― Sussurrou, um pouco paralisada. ― Eu não queria irritar você, Charles. ― Quem, em sã consciência, atira num frasco no meio de um sótão? Apenas vá embora da minha casa...! ― Desculpe. Eu estava com medo... eu... ainda estou com medo. Você precisa entender que isso não acontece na vi- ― Não tente me explicar o que acontece ou não na vida das pessoas. ― Novamente, aquele homem tirava as palavras de sua boca. ― Você não passa de uma humana medíocre, não sabe nada sobre nada. ― Desculpe. ― Pare de pedir desculpas. ― Irritado. Nitidamente irritado. Deu-lhe as costas e começou a andar para fora do quarto conforme o tecido que rodeava o corpo feminino se afrouxava e ela readquiria peso, pousando intacta no chão ao mesmo tempo em que o lençol caía em volta dos pés descalços. Quando voltou olhos para a porta, não havia mais ninguém ali. Walch tirou coragem do âmago para correr até o corredor, lembrando-se que tinha trancando aquela porta antes de dormir. Vislumbrou o completo vazio. Não havia nada e ninguém ali, mesmo que ele tivesse acabado de sair pela porta. Ainda tinha uma pergunta. O que acontecia agora que ele não tinha mais sua morada?          
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