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4765 Words
O som de coisas caindo soava dentro da casa desde a madrugada e já passavam das dez da manhã. Estava irritada, bufando e quebrando coisas. Eram tantas caixas que o simples pensamento de que poderia não encontrar o que estava procurando a enfurecia. Anne só parou quando precisou calar a boca do próprio estômago.             Desde a noite passada, a sensação de estar sendo constantemente observada a perseguia. Era como se o tempo todo estivesse prestes a dar de cara com ele de novo.             ― Charles. ― Ela falou em voz alta, sozinha, pela simples vontade de escutar a sonoridade do nome.              O dono daquele nome também era dono de olhos negros feito a noite e cabelos tão vermelhos que lembravam a lava de um vulcão em erupção escorrendo pelas madeixas masculinas. Anne mordeu a maçã com uma expressão irritada, o cenho franzido em impaciência enquanto mastigava, tentando lembrar onde raios tinha colocado a caixa.             Já tinha soltado e alimentado os cães, já tinha revirado a casa inteira e tentou de todo jeito pensar em outro assunto, mas não conseguia. As coisas giravam na cabeça como um tornado em fúria. Tudo que sempre acreditou, ou melhor, desacreditou, estava sendo posto à prova. Todo o ceticismo que a fazia ter alguma coragem tinha ido por água abaixo no exato momento em que viu aquele homem prostrado ao pé de sua cama, olhando-a com os orbes negros que pareciam abrigar uma galáxia inteira dentro deles, quando um lençol criou vida própria e lhe prendeu a centímetros do chão. Estava irritada, impaciente, cansada de procurar. Já tinha buscado na maioria das outras caixas, e aquela em especial, justo a que mais queria agora, era a única que não encontrava. Passei tudo para ela e joguei no... Mas ela nem precisou completar aquele pensamento para, de repente, se lembrar perfeitamente da atual localização do objeto que tinha procurado enlouquecidamente durante toda a manhã. Foi súbito e rápido como uma injeção de febre amarela. A maçã mastigada era engolida às pressas conforme andava em passos firmes para fora da cozinha, pegando a chave do automóvel que jazia há dois dias parado em frente ao sobrado, e abrindo a porta, Anne saiu da casa vestindo pijamas, descalça. Os cabelos soltos e levemente emaranhados pelo simples e único motivo de que não os tinha penteado ao acordar. Desativou o alarme da caminhonete 4x4. Um sedã não chegaria nem na metade do caminho até aquele lugar e até que tinha gostado dela, era quase como um trator cor de cereja que precisava de um degrau para subir. Ela abriu a porta de trás e seus olhos brilharam, avistando a caixa e puxando-a para fora com um sorriso vitorioso preso nos lábios.             ― Aqui! ― Pegou a pequena caixinha de madeira de dentro da de papelão e a abraçou, fechando a porta do carro e voltando para casa a tempo de ver os cães passarem correndo pelo quintal. Os pés descalços estavam apressados, andando pelos cascalhos até atravessar o batente e pisar na madeira polida e brilhante da sala. Os longos cabelos castanhos esvoaçavam conforme o corpo feminino, nutrido por uma enérgica sensação de felicidade saltava os degraus até chegar ao segundo andar. Anne deslizou pelo piso, na curva fechada em direção ao sótão completamente silencioso.             ― Charles? ― Não conseguiu conter a empolgação, ainda no quinto degrau. Não conseguia acreditar que estava falando com uma assombração. Uma entidade. Mas se tudo aquilo não fosse uma armação de sua mente solitária, ela simplesmente não queria sentir medo. A caixa de madeira era apertada contra o peito enquanto a mão fina abria a porta pesada e a empurrava. ― Charles...             Perguntava-se onde estaria o homem-fantasma. Se ele era capaz de fazer algo além de observar durante o resto das horas. O que ele fazia de dia? No entardecer e nas horas antes das três e depois das quatro da madrugada? No fundo, Anne havia encarado aquilo de uma maneira inusitada. Sentiu medo, claro, mas depois do susto, todo aquele pavor tinha se transformado numa curiosidade que beirava a infantil. Seria ele, desde o início, fazendo-a sentir aquelas sensações? Como se a casa fosse mágica. Observou o sótão, perfeitamente iluminado pelos raios solares matinais que invadiam o cômodo através das grandes janelas e vendo-as daquela forma, fechadas, Anne colocou a caixinha de madeira no chão e andou até a primeira de três vidraças antigas, puxando o trinco enferrujado e abrindo-a num solavanco. Uma fina camada de poeira se desprendeu, espalhando no ar partículas brilhantes que irritaram o nariz. Depois de abrir todas as janelas e ter uma crise de espirro, ela se viu em silêncio novamente. Foi então que, talvez pela primeira vez desde que chegara ali, parou para escutar o som que vinha de lá de fora. Era como uma sinfonia, uma orquestra de pássaros e eram tantos cantos diferentes que se pegou imaginando quais seriam suas cores, o formato de seus b***s e o tamanho de suas asas. A vida no campo era linda, cheia de prazeres secretos que aos poucos ia descobrindo. Precisava de funcionários porque o lugar era enorme, mas pensaria nisso depois. Ainda estava cedo para colocar gente ali dentro já que tudo que procurava era estar sozinha. Anne se desencostou da janela e andou até a caixa, sentando-se ao lado dela.             ― Você escuta o barulho dos pássaros lá fora? ― Apesar do tom baixo, sua voz pareceu ecoar por todo o sótão. Estava pensando no quanto era amplo e iluminado, além de arejado e ter uma vista privilegiada dos jardins da casa, quando se deu conta: Estava vazio. Mesmo que levemente, seus olhos ficaram um pouco mais abertos que o habitual. Ela não queria um fantasma bravo em casa. Contanto que seguisse as regras nada de r**m aconteceria, certo? Talvez fosse dali que as próximas páginas de seu mistério se escrevessem. Levantou-se, subitamente obstinada. Era como funcionava o cérebro de Anne Walch. Uma vez tomada à decisão, voltar atrás nunca seria uma possibilidade. Desceu as escadas e logo estava no quarto de visitas, onde uma cama de casal montada pelo pessoal da mudança jazia intacta. Um sorriso se desabrochou nos lábios femininos quando ela começou a tirar a roupa de cama dobrada sobre o colchão, colocando-a na cadeira. É claro que já havia feito isso antes, mas... fazia tempo. Respirou profundamente pela quinquagésima vez naquele dia.             ― Vamos lá, Anne. ― Precisou dizer em voz alta, para si mesma, uma espécie de ordem. E uma hora depois, os cabelos castanhos estavam presos num r**o de cavalo frouxo e o suor escorria do couro cabeludo. Havia algumas ferramentas espalhadas pelo chão do quarto de hospedes e do sótão e desmontar uma cama tinha sido o menor de seus problemas. A cama de madeira, mesmo dividida em laterais, cabeceira e pés, era absurdamente pesada, e a “maldita escada”, como ela tinha começado a se referir na última meia hora, não ajudava em nada. O que importava é que agora só faltava o estrado e o colchão que era grosso e pesado e ainda não tinha descoberto como ia subi-lo.             O peito arfou quando chegou ao cômodo mais alto da casa. Ela precisou parar para respirar, ainda segurando o estrado de madeira. Agora só falta o colchão.  Não era um pensamento positivo, era mais como um passo mais perto de atingir sua meta. Ela deitou o estrado no chão ao lado das outras peças. A pequena caixa de madeira pousada em um canto seguro. Era tarde, já se passavam das três horas e dali a pouco o sol se deitaria. Anne preferiu se apressar em descer os degraus e novamente voltar à suíte de visitas para encarar o pesado colchão como se ele fosse um monstro prestes a vencer a batalha. Segurou as bordas almofadadas e o colocou de pé, começando a arrastá-lo entre as ferramentas pelo chão. Quando chegou à escada, a conclusão óbvia era de que precisava puxá-lo para cima em vez de empurrar. Deu a volta e subiu o primeiro degrau, erguendo o colchão e começando a puxá-lo escada acima com toda a força muscular que ainda existia.             ― Maldito... Peso! ― Praguejou após os quase sete minutos de esforço incessante. Quando chegou lá em cima, largou o colchão de casal que caiu pesadamente no chão e jogou-se em cima dele, ofegante. Os orbes azuis encararam todas aquelas peças de madeiras e parafusos, suspirando exausta. As janelas abertas traziam um vento fresco quase capaz de revigorá-la por completo, conforme passava o antebraço pela testa e tirava o suor que começava a escorrer novamente. Os três primeiros botões do pijama precisaram ser abertos, não estava tão quente lá fora, mas todo aquele esforço transformava a casa em um forno. Ou talvez fosse só Anne a cozinhar ali. As mãos cansadas começaram a montar a cama, com algum empenho engenhoso que surgia quando precisava fazer coisas como aquela, apesar de já estar praguejando os piores palavrões que seu vocabulário conhecia, em voz alta. Meia-hora, e a cama estava montada. O sol ainda transformava o cômodo em uma tela que se espargia em tons quentes e de certa forma, confortantes, já que a temperatura começava a cair. Quando jogou o colchão sobre o estrado, ela usou o que lhe restava de energia para buscar um criado-mudo, um tapete, travesseiros e roupas de cama. Montou tudo e guardou as ferramentas, observando que ao fim de todo o trabalho, o resultado tinha sido gratificante. Voltou para baixo e comeu algo, bebeu um suco de goiaba que jazia na geladeira vazia desde que chegara ali, e percebeu que precisava de um banho ao quase desmaiar quando levantou os braços para se alongar: Estava fétida como um trabalhador de carvoaria depois de dezesseis horas abastecendo fornos e ela levou o copo de suco consigo até o banheiro. Ligou o chuveiro; a água aquecida por caldeira saiu fervendo embaçando o box e o espelho quase imediatamente. Deu mais um gole no suco antes de começar a desabotoar os botões do pijama de flanela. Escondido embaixo daquele tecido, um corpo repleto de curvas se revelou. Os braços de Anne Walch eram finos e longos com ombros delicados e clavículas acentuadas de um jeito elegante. Os s***s redondos e fartos faziam conjunto com as costelas delicadas e cintura fina que se movia conforme ela andava pelo banheiro. Soltou os cabelos que caíram pelas costas brancas, chegando até o lombar em ondas de um castanho intenso num completo contraste com a pele pálida. Desatou o laço que segurava a calça de moletom e a peça caiu até o chão. As pernas femininas eram longas e delineadas, os músculos não eram torneados, então a aparência delicada e juvenil permanecia. Sorveu mais um gole do suco, observando o vapor tomar todo o banheiro. Estava cansada, precisava daquele banho para livrar-se do cheiro r**m e da dor que tinha se apoderado de suas costas. Suspirou um suspiro de exaustão conforme tirava a calcinha de renda branca e entrava no chuveiro. Deixou que a água quente batesse na pele alva até deixá-la vermelha, relaxando os músculos. Lavou os cabelos e o corpo, tomando algum tempo para acalentar cada centímetro dolorido e deixar-se ser levada pelos devaneios que mesmo sem admitir, haviam lhe motivado o dia todo.             Pouco tempo depois, a escritora concentrava-se em pentear os cabelos embaraçados, andando pelo corredor em direção ao sótão. O fim da tarde se aproximava quando chegou lá em cima e viu como a luz batia na cama colocada exatamente aonde o frasco repousava antes. Um sentimento caloroso lhe apossou. A escova de cabelo deslizava pelos fios conforme os pés descalços caminhavam até a cama. Sentou-se nela, deixando a escova de lado para pegar a caixa sobre o criado-mudo. Anne a abriu, revelando um antigo frasco de perfume. Havia sido da avó e depois da mãe, agora dela. Perguntava-se por que o guardava afinal. Se dissesse que era pelo lindo e delicado formato estaria mentindo. Perguntava-se por que sua mãe o havia feito também, por tantos anos, e no fim dado justo a ela, e não para Eliza. A verdade é que aquele pequeno frasco vinha sendo uma memória sólida desde que a ente morreu e assim devia ter sido com Judith, mãe de sua mãe, quando a avó de Anne morreu. Ela deitou na cama, pensando na ante, que tinha morrido vítima de um aneurisma há cinco anos. Judith Walch tinha dado à luz a três meninas e um menino. Primeiro veio Jordan, depois Samantha, Anne, e então Elize. Anne não falava com Jordan há quase um ano, desde o lançamento do último livro. Samantha gostava mais de trocar e-mails do que telefonar ainda que não mantivessem contato íntimo. E havia Eliza, a única que ainda parecia ligar para alguma coisa que saía de sua boca. Os olhos azuis se fecharam, lentamente, e ela estava pensando sobre o verdadeiro por que de ter comprado aquela casa quando adormeceu. Com o barulho do vento, Anne abriu os olhos de novo, ainda estava bem ali, no mesmo lugar que tinha pegado no sono. Hesitante, no começo, o cérebro se acostumava com a ideia de aquela era a realidade. Nos primeiros dez segundos de inércia total, onde apenas os orbes jaziam abertos em meio ao quarto escuro, sendo iluminado pela luz noturna, o pensamento de que o tempo tinha passado rápido ecoou velozmente por sua cabeça antes de desaparecer e dar lugar à sensação de irrealidade. A respiração arfou quando sentou na cama, olhando em volta, observando as janelas abertas e o vento frio que entrava por elas. Restava ainda uma centelha de dúvida, apenas pelo silêncio. Tinha certeza que os cães estavam soltos e de noite, não poderiam estar quietos. Lentamente, preparava-se para levantar quando escutou, longe, o ranger da madeira. Os olhos azuis correram em direção à porta sentindo o coração entrar em um descompasso terrível. Havia um medo estranho se esgueirando dentro dela quando o som soou de novo, dessa vez mais forte, e Anne se levantou no exato instante em que a sombra se revelava, adentrando o sótão. Era uma pantera. Completamente n***a. Seu coração saltou, com um calafrio enorme percorrendo a espinha feminina, ela sentiu os pés cimentarem no chão e o âmago congelar. Diante da luz da lua, Anne percebeu. O que via? Via olhos negros. Amedrontada, seu corpo tremeu quando aquele pensamento lhe atingiu. A enorme pantera mostrou os dentes, iniciando uma série de passos lentos em direção à cama. Sua pelagem reluzia a iluminação noturna, movendo-se friamente; em dois segundos, o animal parava em frente ao corpo feminino. Inevitavelmente, sequer era capaz de respirar. Anne estava petrificada. Sentia as pernas baterem contra a lateral da cama quando de repente, o animal saltou, e suas pesadas patas bateram no peito feminino, derrubando o corpo sobre a cama, mas antes que pudesse sentir o almofadado, ela sentiu a terra e quando piscou, o animal que saltara sobre si tinha simplesmente desaparecido. Totalmente aterrorizada, se pôs de pé, ofegante, pensando como diabos aquilo poderia ser uma realidade. Começando a perceber o que estava acontecendo ali, os orbes azuis dançaram por toda a extensão que era capaz de enxergar, constatando que estava sozinha. Escutava o som do vento, transpassando a folhagem da copa das árvores altas. O chão úmido e o frio atravessando seu pijama de flanela facilmente. Então, escutou. Galhos quebrando. Virou-se. O peito arfando. Havia algo de errado. Por que o medo insistia em permanecer? Por que aquela sensação de que era uma presa... Prestes a ser abatida? No instante seguinte, duas mãos circundavam as laterais de seu corpo. Walch sentiu que ia desmaiar, tamanho o pavor, enquanto os dedos longos percorreriam toda a extensão de seu quadril até o pescoço em um arrastar forte de pele muito rápido. Como se quisesse rasgá-la. Se aqueles dedos possuíssem garras, certamente seria retalhada, mas em vez disso, um corpo forte colou contra as costas e ela m*l conseguia se mover diante da respiração densa que subitamente começou a bater e invadir seus fios de cabelo até chegar na nuca. O som do vento irrompeu o quebrar de galhos que seu único passo fez, antes que ele a segurasse mais forte. Lôbrego, um murmúrio inaudível escapou pela boca quando ela foi tampada. Uma paralisia mental acometia a escritora conforme a outra mão, invasora, deslizava por seu ombro. Experimentando a rispidez de uma barba ferindo a pele alva quando, de repente, um puxão súbito estourou os botões do pijama de flanela que usava. Certeiro como uma flechada, e intenso como um furacão, sentiu as mãos fortes deslizarem por sua pele que, naquele momento, independente do vento frio, parecia cozinhar de dentro para fora. Havia uma vibração crescente lhe invadindo, tomando-lhe cada centímetro de músculo e fazendo-a mais parecer uma boneca diante da sombra que a abraçava. Certamente, secretamente, queria ver seu rosto. Queria saber se o que pensava estava correto, mas sempre que tentava se virar, ele a segurava mais forte. Forte o bastante para pará-la e não era como se Anne pudesse fazer alguma coisa para lutar contra aquela falta de controle que estava tomando conta de suas ações, fazendo-a, discretamente, aproveitar aquele momento. De todas as coisas que sentira na vida, aquela era a mais intensa, e m*l podia acreditar que era apenas um sonho. A visão embaçada fechou-se de vez e de repente, tudo desapareceu, as mãos, o toque quente, o peito do homem comprimido em suas costas, os braços fortes abraçando-lhe como um escudo. A floresta, o vento. Nada restou, e Anne se viu caindo em uma queda livre direto para a realidade. Quando abriu os olhos, estava deitada na cama que tinha passado o dia inteiro montando. A respiração ofegante cortou o som do vento que vinha das janelas abertas. Anne sentou na cama, ainda se sentindo tão nervosa quanto dentro daquele sonho. Seu corpo ainda tremia, as fibras ainda vibravam e ela precisou alongar o pescoço e fechar os olhos, respirando profundamente para conseguir se levantar. Fechou as janelas. Era noite. Não tinha prendido os cães, podia ouvi-los latir ao longe. Tentou se acalmar, precisou controlar a respiração para poder andar com alguma normalidade. O estômago revirava. O maldito sonho tinha tirado sua paz por completo. Anne desceu as escadas acendendo todas as luzes conforme percorria a casa, e ligou as luzes do lado de fora também, engolindo em seco. Voltou para a cozinha só para encarar o relógio e constatar que eram duas e quarenta da manhã. Seu coração disparou conforme a voz de Charles ecoava em sua cabeça. “...das três às quatro da madrugada, ela é mais minha ainda. ” Cada pelo de seu corpo se arrepiou e a morena se chacoalhou como um cachorro molhado. Tomou coragem para andar até a porta de saída e quando chegou lá fora, Anne colocou os dedos na boca e soltou um assovio alto. O imediato latido dos cachorros ficou evidente e cada vez mais próximo e ela sorriu quando os viu correndo em direção à entrada. ― Brincaram muito hoje, né? Agora vamos pra dentro! As mãos femininas afagaram os cães bem treinados e começou a caminhar em direção ao canil, sendo seguida pela grande e organizada matilha. Anne não era burra, tinha os adotado quatro meses antes de se mudar para lá, quando começou a negociar para adquirir o imóvel. Ela providenciou o treinamento dos cães e ia visitá-los quase toda semana até se mudar de vez para lá e levar todos junto. As mais variadas raças perambulavam passando pelas suas pernas quando ela apertou o botão e os portões eletrônicos se abriram. Cada cachorro entrou instintivamente em sua espaçosa casa e ela apertou novamente o botão para observar o mecanismo fechar o canil facilmente. ― Boa noite, criançada... Apagou as luzes do canil e rumou para o caminho de cascalhos que levava até a entrada da casa branca de três andares. Anne passou pela porta aberta e a trancou assim que entrou na casa, iniciando sua caminhada para a cozinha, onde tomou um copo grande de água e olhou o relógio: duas e cinquenta e sete. Foi como levar um chute nas costas. O ar subitamente desapareceu. Não podia pensar muito. Se pensasse ia acabar num manicômio. Ele era um fantasma, era um fato, não uma alucinação. Sentia os músculos se enrijecerem novamente, subindo os degraus para o segundo andar. Era aquilo que chamavam se assombração? Charles estava a assombrando. Manipulando. Aqueles sonhos...? O homem sem rosto. O homem que nunca permitia ser visto. Nunca permitiu que visse seus olhos... Mas ela sabia que aquele era o mesmo homem... que esperava agora. Um calafrio percorreu sua espinha, terrivelmente forte, quando o som do despertador irrompeu o quarto, transpassando a distância e chegando aos seus ouvidos. Anne estancou no corredor em direção ao sótão conforme o som estridente assolava a casa. Seu coração agora batendo num descompasso mórbido. Era medo? Nada aconteceu. Ele não veio como pensou que viria, surgindo no ar como uma miragem, uma alucinação. Talvez fosse isso. Talvez estivesse enlouquecendo. Ela engoliu em seco, dando passos lentos pelo corredor até chegar a escadaria silenciosa do sótão. O som do relógio soando longe, e nada além dele podia ser escutado pela audição aguçada da mulher que botou o pé esquerdo sobre o primeiro degrau sem saber se teria coragem para dar o passo seguinte. A madeira rangeu e ela se lembrou do sonho que tivera há pouco naquele mesmo cômodo ao qual se dirigia agora. O segundo degrau foi vencido e preferiu pular o terceiro e saltar do quarto para o sexto num sopro súbito de coragem. Não podia ter medo... precisava entender... precisava se desculpar.                                                “Pare de pedir desculpas. ” Sorriu, levemente tomada por um sentimento de tranquilidade, para empurrar a porta encostada. O vento que sentiu bater nos cabelos foi capaz de arrepiar a pele no instante em que pisou no sótão. Um cheiro de lavanda pairava no ar e teve certeza que tal cheiro não estava ali antes. O cômodo estava mais frio, e Anne entrou olhando para a cama vazia. Mas não demorou nem meio segundo para que notasse, ao lado da última janela, o corpo alto que olhava para fora, e bastou notá-lo para que Charles a encarasse de volta. Os olhos negros brilhavam a luz da lua que passava pelas vidraças e os pelos femininos se arrepiaram conforme tentava silenciosamente conter a vontade de falar alguma coisa. Atônita, amedrontada, mas ao mesmo tempo, absurdamente entusiasmada. ― O que você fez com meu quarto... é imperdoável. Anne Walch congelou. A voz de Charles estava estranha, diferente de antes, assim como seus olhos. Parecia desprovido de qualquer vida. Sem qualquer sombra de sentimento. Aquilo fez uma fisgada tomar o estômago feminino. Com os orbes arregalados e assustada com o timbre, decidiu tentar se explicar. ― Eu... achei que ia gostar de ter uma cama... ― Eu só tenho uma hora nesse mundo, acha que vou ficar dormindo? Enlouqueceu...? Frio como o pior inverno inglês. Anne apertou os lábios transformando-os em uma linha reta de desapontamento. ― Desculpe... ― Foi só o que pôde dizer, mas no momento seguinte, antes que pudesse sequer respirar, Charles se materializava tão próximo que precisou dar um passo para trás, completamente pega pela surpresa e pelo frio que ele trazia. Seu coração galopava intensamente. Ela não queria se dar por vencida, não queria demonstrar o medo tomando conta de cada músculo de seu corpo.             ― Eu já mandei parar de pedir desculpas. ― O tom de Charles era mais do que ameaçador. Anne m*l podia raciocinar. Estava, de repente, morrendo de frio.             ― Pelo menos poderia demonstrar alguma gratidão... ― Deixou escapar, aborrecida.             ― Gratidão por ter colocado um monte de moveis aqui como se de fato eu fosse um ser humanozinho desgraçado! ― Como se de fato você morasse aqui. Sim. ― Os orbes azuis cintilaram em direção aos negros e eles ficaram naquela batalha de olhares por um minuto inteiro até que os dentes da mulher começassem a bater sem controle. A sensação era de estar nua dentro de um freezer, contando os segundos até que fosse transformada em um cubo de gelo. Anne engoliu em seco diante do silêncio fúnebre e decidiu começar aquela conversa de novo.             ― Eu estou tentando conciliar nossa vida dentro da mesma casa, o que já é uma completa loucura, e você não facilita em nada... ― Confessou, deixando as palavras que o receio vinha impedindo-a de falar saírem de vez. Estava com frio e agora irritada também. ― Se continuar desse jeito, acredite, eu vou chamar um padre ou que for necessário para exorcizar você e te mandar pra bem longe da MINHA casa!  ― A exclamação vinha nutrida de uma coragem existente apenas porque odiava receber ordens e naquele momento Charles lhe encarava como se fosse dono não só da casa, mas como de Anne também. Entretanto, depois de dois segundos diante daquele mesmo olhar ela viu sua própria coragem começar a desaparecer. Prendeu o ar nos pulmões enquanto o silêncio absoluto estimulava seus medos e cada uma das sensações que pareciam aflorar na restrita presença dele. Por um milésimo de segundo, o desprezo por si mesma assolou a alma feminina. Era corajosa, mas até que ponto? Até onde era seguro ser destemida? Anne tinha a nítida impressão de que Charles não gostava dela, e que além disso, ele não nutria uma parcela de bondade superior à de maldade. Sua respiração se tornava vapor, mas a dele não. Porque Charles é frio por dentro também, foi o pensamento que lhe passou a mente.             ― Meu queixo está tremendo.  ― Sussurrou, tendo os movimentos paralisados pela atmosfera gelada.             ― Isso é porque está perto de mim. ― Os lábios masculinos se moveram com absoluta imparcialidade. Charles observava como os pelos dos braços femininos se arrepiavam quando se deu conta do que estava fazendo. Ele voltou os orbes negros para cravá-los novamente nos azuis de Anne, e de repente, era como se fosse exatamente aquela atitude que lhe deixava entorpecido.             Reprimiu uma vontade avassaladora de pregar-lhe peças e deixá-la aterrorizada, assim como havia feito com todos os moradores antes de Anne.             ― É você que está perto de mim. ― Foi há resposta nervosa. Anne deu um passo para trás sem conseguir tirar os olhos dos do homem a sua frente. ― Você é quem está invadindo minha casa... E me ameaçando! ― Ela bateu um dos pés no chão, subitamente compenetrada em fazer Charles compreender com exatidão quem é que mandava ali. ― Tudo que fiz foi um pedido de desculpas por ter quebrado sua morada. ― Estava se esforçando para manter a calma no timbre, mas não podia evitar, quando viu, os lábios estavam tremendo e não era mais por frio. ― Eu passei o dia inteiro desmontando uma cama e carregando as malditas peças para cá. Passei o dia pensamento que aquele deveria ser o jeito perfeito de me dar bem com o fantasma filho da p**a que vive na minha casa, mas não! ― Anne apontou seu olhar mais magoado para o homem surpreso. Mas aquele não era um olhar proposital. Não era um olhar carregado de manipulações ou sentimentos mentirosos. ― Você, em vez de me agradecer, me diz que o que eu fiz foi imperdoável. ― O cenho feminino se franziu naquela última palavra que aos ouvidos de Anne, era tão descabida que parecia ser outra língua. ― Você jogou todas as pedras sem cogitar olhar dentro da caixa no criado-mudo.             E com isso, ela se virou e saiu do sótão, fechando a porta e descendo as escadas com pressa, Anne tratou de se trancar no próprio quarto. Quando se viu sozinha dentro do silêncio, notou que o frio tinha desaparecido juntamente com o cheiro de lavanda. Um suspiro escapou. Um daqueles suspiros lentos e controlados que parece nos enervar mais ainda. Ela olhou para cima: o teto claro refletia a iluminação da suíte, só isso. Não ouvia um único barulho que fosse. Nada sendo arrastado, nada de passos sinistros nem estrondos macabros. Será que tinha conseguido afastar Charles? Ou ele agora estava apenas planejando e esperando para atacá-la em uma situação oportuna?             A feição masculina lhe veio em mente, como uma ferroada, e obrigou-se a fechar os orbes. O maxilar acentuado, queixo forte e a boca naturalmente tingida numa coloração mais pálida. Seu nariz perfilado e os olhos negros que eram moldados pelas grossas sobrancelhas vermelhas. Ali, enquanto a última expressão que Charles lhe mostrara rondava sua cabeça, a morena parou.    
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