PRÓLOGO

1958 Words
Tudo silencioso. Irrompendo o cômodo, um som, lôbrego. A madeira rangeu, O vento chicoteava os galhos na janela; Quando o despertador tocou, abriram-se os orbes negros.       Southward River.   Prólogo.              ― Estou dizendo, há uma cidadela aqui perto.             ― Eu acredito em você. ― A voz feminina retrucou ironicamente do outro lado da linha. O celular não funcionava muito bem por aquelas bandas, e ela preferiu beber um pouco do chá vermelho que repousava ainda quente na xícara de porcelana, abafando um suspiro entediado.             ― E não fica com medo de ficar aí sozinha?             ― Medo de quê? Tenho dezoito cães aqui, Eliza.             ― Ainda me pergunto de onde você tirou esse tanto de cachorro...             ― Eu adotei. Acha que ia me mudar pra um lugar enorme desses sem companhia?             ― Companhia humana, Anne, ainda lembra o que é isso?             ― Claro que me lembro. ― A resposta veio sustentando a nítida sensação de que já se cansara daquela conversa. A irmã sabia ser insistente às vezes. ― Devia me visitar, ia ver como o lugar é bom.             ― Você diz isso porque está há três dias aí. Quero ver se vai pensar do mesmo jeito daqui uma semana.             ― É claro que eu vou. Estou amando esse lugar. Quando ligo o som, a música ecoa pela casa inteira, Eliza... ― A mais velha comentou empolgada, sem conseguir conter um sorriso orgulhoso enquanto contemplava sua biblioteca recém-montada. Claro que ainda haviam muitas caixas espalhadas pela casa, fazia só três dias desde que colocara os pés ali, mas, de todos os outros cômodos, fora o único lugar que fez questão de montar primeiro. Seu mundo particular, cheio de livros, uma mesa e cadeira deliciosamente confortável, além de um sofá e um frigobar ao alcance das mãos. ― E minha criatividade...             ― Você pelo menos tem dormido? ― Eliza bocejou do outro lado; tarde da noite, madrugada, mas era quando conseguia falar com a irmã, já que trabalhava o tempo todo.             ― Ainda não dormi no quarto... Acontece que... Eu gosto de dormir na biblioteca, El... Esse lugar, eu não sei... Parece... Não. Ele é mágico.             ― Mágico, mas se você não dormir e se alimentar vai acabar ficando doente.             ― Eu como e durmo muito bem aqui... E pretendo começar a escrever essa semana.             ― Ainda não começou?             ― Eu já fiz muitas páginas... Mas elas não são as certas...             Enquanto Anne divagava sobre a frase que tinha acabado de dizer para a irmã, Eliza ria baixo do outro lado da linha.             ― Vou ver se consigo uma folga semana que vem, quero ver toda essa magia...             ― Faça isso! Podemos mexer na terra e deitar na grama e-             ― Mexer na terra? Anne, estou indo pra fazer almoço, conversar com você, não brincar de ser criança. ― A mais nova que até parecia a mais velha comentou com uma centelha de impaciência.             ― Sem graça... ― Havia um bico nos lábios de Anne quando ela pousou a xícara até a boca para sorver um pouco mais do líquido preferido.             ― Eu preciso desligar agora. ― O riso foi quase imediato quando escutou o som das crianças do outro lado da linha. ― Acabei de chegar em casa e descobri que Logan não colocou as crianças para dormir.             ― Já parou para pensar que talvez estivessem esperando pela mãe que só sabe trabalhar?             ― Faço isso para pagar as contas dessa casa. Minha eterna inveja é só sua, que ficou rica escrevendo suas maluquices.             ― Não são maluquices, e vá ficar com seus filhos sua workahollic. Diga que a titia aqui os ama.             ― Boa noite Anne, e trate de se cuidar.             ― Boa noite El, se cuide também, e me avise se puder vir, certo?             ― Certo!             Ambas desligaram e Anne jogou o celular sobre a mesa, encarando o laptop aberto. O Word ainda estava em branco. Ela suspirou de novo, conforme o vento se intensificava lá fora, assim como a chuva.             Uma tranquilidade incomum pairava naquele lugar. Como estar na hora certa e no lugar certo prestes a inventar a coisa certa, que era começar a tentar fazer algo que não fosse escrever as porcarias que andava escrevendo. Dos vinte e oito anos de idade, vinha vivendo naquela estranha pressão por pelo menos dez. Dez anos desde que publicara o primeiro livro, e era quase um por ano, num ritmo incessante, como se aquelas cargas de criatividade fossem infinitas. E é claro que todos aqueles livros tinham lhe rendido um bom dinheiro.             O som do trovão irrompeu na casa como se tivesse brotado dali de dentro e por um segundo, Anne pulou de susto, sendo arrancada de seus devaneios por aquele grito da natureza. Os olhos azuis buscaram o relógio na parede e constatou duas e quarenta da madrugada. O suspirou veio para espantar a arritmia. Precisava fechar os olhos um pouco, precisava dormir, Anne sabia disso. Ela só não queria aceitar. A morena esticou as pernas e se levantando, decidiu subir, pela primeira vez, para a suíte.             Anne Walch era uma mulher sólida, de bom humor e que apreciava a própria companhia mais do que quase qualquer outra. Uma antissocial nata, cética e às vezes, um pouco ranzinza quando se tratava de ir para a cidade. Ela se limitava em comprar as coisas que precisava e voltar para casa. Não queria uma nova amizade, tampouco se comunicar com alguém sobre assuntos banais. Anne não queria sair por aí viajando, conhecendo pessoas e o mundo, não. Queria um lugar tranquilo, silencioso, o lugar perfeito para fazer a única coisa cujo amava fazer: Escrever.             Ela subiu as escadas tentando ignorar as caixas prostradas no chão do corredor que se aproximava no andar de cima. Ainda não havia desempacotado quase nada além da biblioteca, e tinha mentido para a irmã quando disse estar se alimentando bem. Se batatas fritas e refrigerantes fossem uma boa alimentação talvez não tivesse dito uma mentira, afinal. Quando chegou ao quarto, a luz estava apagada e o som da chuva parecia muito mais intenso do que lá embaixo. A caneta prendendo os cabelos foi arrancada descompromissadamente, soltando o coque improvisado conforme a mão livre batia de leve no interruptor. Quente e alaranjada, a lâmpada iluminou o quarto, criando sombras nos cantos mais escuros. Havia uma cama lá. Ela a encarou com orbes pragmáticos. Era enorme. Cabiam cinco ou seis Anne’s ali, e ainda assim, a cama era só sua. Arrancou os sapatos, colocou a caneta usada para prender as madeixas sobre o criado-mudo de mogno logo ao lado e se jogou no colchão absurdamente confortável, cujo lhe trouxe o imediato pensamento de que, de fato, deveria ter ido dormir ali antes. Ela olhou a caixa ao lado do leito, meio aberta. Poucas coisas, mas significantes, eram as que ficavam em sua cabeceira. A mão feminina alcançou o relógio despertador redondo, prateado, e o colocou sobre o criado-mudo, pegando também o livro que andava lendo: “O Vento que Me Acompanha”, foi cuidadosamente colocado sobre o móvel, logo ao lado do despertador. Os orbes percorreram o quarto; as sombras que o lustre fazia no teto e nas paredes; os galhos batiam na janela, assim como as gotas da chuva de vento que desabava lá fora. Os cachorros estavam no canil e ainda assim pensou neles, estava trovejando demais. Nos últimos dias... Andava cansada. Às vezes sentia que pensava tanto e nada acabava saindo. Um novo suspiro escapou quando rolou pela cama. Tinha passado o dia de pijama, não sentia vontade de sequer tomar um banho. A cabeça cheia de perguntas, de dúvidas, o futuro ali, como seria o dia de amanhã, se Eliza teria razão. Mas de repente, do absoluto nada, aquela sensação a acometeu. A nítida sensação de que, de repente, o leito tinha se tornado um ninho relaxante e quente, abraçando-a e convidando-a para um sono bom. Cansada. Foi o que repetiu para si mesma, ignorando aquele fato alarmante; o estômago roncando e a garganta um pouco seca. O ar que entrou em seus pulmões no segundo seguinte parecia preenchido por um aroma de lavanda inconfundível. Ela estava começando a ser levada pelos sonhos quando um leve calafrio fez seus pelos se arrepiarem. Anne fechou os olhos e subitamente o quarto ficou mais frio. O cheiro dos pinheiros, da relva. O som do vento. Os orbes turquesa se abriram numa lentidão inigualável, como se tivesse sido arrancada de sua cama para despertar naquela outra realidade e por mais irreal que fosse, parecia absolutamente autêntica. Os pulmões pequenos se encheram daquele ar cheiroso, e ela se sentou sentindo os pingos da relva no chão resvalarem pela pele. Os cabelos castanhos estavam soltos, e eles escorriam em cachos perfeitos pelas costas até o lombar. O pijama de flanela que estava vestindo não era propício ao frio, mas naquele momento, Anne estava em um sonho. E mesmo sem compreender como, ela sabia perfeitamente que aquilo não era real. Seu peito arfou. Levantando-se, os olhos percorreram a floresta de pinheiros que se estendia numa aparente infinidade de fileiras intermináveis. E então ela viu. Era uma silhueta, pelo menos dez metros à frente. Seus olhos se fixaram na figura, e imediatamente as pernas se moveram. Quase como uma locomotiva, na mesma velocidade que as batidas do coração soavam como tambores. Havia um sentimento genuíno ali. Era a inocência da curiosidade súbita. Mas antes de seu terceiro passo, a figura desapareceu, evaporou diante de seus olhos como se nunca tivesse existido. Anne estancou, os pés colados no chão conforme o subconsciente indagava que tipo de quimera era aquela. Os tímpanos captaram com exatidão o estralar de um galho atrás de si, o vento frio esvoaçando seus cabelos, assoviando pela floresta como um lobo enquanto cada pelo de seu corpo se erguia completamente. Virou-se, aflita, a angustia correndo pelas entranhas. Os olhos encontraram um peitoral amplo, vestido por uma camisa preta de flanela e antes que pudesse correr os orbes para os que pesavam sobre si, a mão forte segurou seu rosto, cobriu seus olhos, ao mesmo tempo em que sentia a cintura ser agarrada. Ela ficou paralisada, a respiração que imediatamente se apressou e as mãos que subiram até o punho masculino, com o coração batendo tão forte que parecia ser mais alto que o vento, ou o som das folhagens ou qualquer outro som. Absolutamente qualquer outro som. As batidas predominavam. Tu-dum. Tu-dum. ― Quem... ― Mas sua voz se perdeu junto com o ar dos pulmões quando os dedos longos apertaram sua cintura, colando seu corpo ao de quem não tinha visto o rosto. O calor do próprio inferno tomou a carne de Anne quando o hálito morno bateu contra a face, a mão forte cobrindo metade de seu rosto. Ela entreabriu os lábios para falar, a coragem se esvaia e tudo pareceu esvaecer quando sentiu o toque macio e lento comprimir sua boca. ― Você está invadindo... você é uma invasora... ― A voz grossa soou animalesca contra seus lábios, preenchendo-a de uma mescla de pavor e excitação. Cada fibra, cada músculo, cada fragmento de seu físico pareceu liquefazer. Uma mescla de medo e adrenalina percorreu as veias. É um sonho, repetiu a si mesma, que m*l pode haver? Foi como sentir o próprio pecado adentrando as tripas, percorrendo as fibras, atingindo o cérebro, libertando endorfina para o corpo dormente. Desesperadamente afoita, abriu os olhos. Anne sentou, perturbada. Mas que d***o tinha sido aquilo? Nunca um sonho fora tão real, nunca. Por um momento, os orbes correram para o relógio. Plena madrugada. A morena respirou profundamente antes de se deitar de novo. De tudo, restou-lhe nada. Restava nada. Nada além da sensação... E do gosto... Impregnado em sua boca como ferrugem.      
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