O sol já nascia no alto da Rocinha, mas ali dentro ainda parecia noite.
O relógio marcava 6h17 da manhã, e FK já estava de pé.
Nunca dormia mais do que quatro horas por noite.
O sono era um luxo que ele não permitia a si mesmo.
O quarto dele, no fim do corredor da mansão, era frio, espaçoso, sem nada pessoal.
As paredes escuras, as janelas sempre fechadas.
Um cofre embutido na parede, uma mesa com armas desmontadas, o som constante de um relógio caro marcando o tempo.
Nada de fotos, lembranças, perfumes.
Nada que o ligasse a alguém.
No banheiro, o espelho embaçado revelava o rosto coberto por cicatrizes antigas.
Ele passou a navalha rente à pele, sem olhar muito pra si mesmo.
Os olhos cor de mel refletiam nada.
No andar de baixo, dona Helena já estava acordada.
O cheiro de café fresco invadia o ar.
Ela era a única que falava com ele como se ele ainda fosse aquele menino que perdeu os pais numa noite de tiros.
— Bom dia, meu filho. Dormiu? — perguntou ela, sorrindo com doçura.
Ele beijou o topo da cabeça dela, o único gesto de afeto que ainda restava nele.
— O bastante.
— Teu irmão saiu cedo pra faculdade — disse ela, colocando pão na mesa. — E eu pedi pro Tiago passar na farmácia pra pegar teu remédio de dor de cabeça.
FK sentou, tomou o café em silêncio.
Observava a avó com o mesmo olhar sério de sempre, mas no fundo, aquele era o único momento do dia em que o peso saía um pouco dos ombros dele.
— Tu precisa descansar mais, Filipe. — ela disse, olhando-o firme. — Nem tudo é guerra.
Ele ergueu o olhar.
— Nesse morro é, vó. Aqui ou tu comanda, ou tu morre.
Dona Helena suspirou.
— Teu pai dizia a mesma coisa. Olha o que aconteceu com ele.
O nome do pai ainda deixava o ar pesado.
FK desviou o olhar, terminou o café e se levantou.
— Eu não sou ele.
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Pouco depois, ele já estava na boca principal, sentado no mesmo escritório onde comandava o império que herdou com sangue.
Os rádios chiavam, os celulares vibravam sem parar, e um mapa do morro cobria a parede — com linhas vermelhas marcando as rotas de entrega, as bocas pequenas e os pontos de vigia.
PH entrou carregando uma pasta e duas armas novas.
— As “encomendas” chegaram, irmão. Trouxe as HK que tu pediu.
FK pegou uma das armas, examinou o peso, o gatilho, o encaixe.
— Bonita. — murmurou. — E silenciosa.
— Igual a tu — respondeu PH, rindo.
FK deu um leve sorriso, mas foi rápido, quase imperceptível.
— Cadê o dinheiro da entrega de ontem?
— No cofre. E a gente já mandou o recado pra quem tentou atravessar o caminho.
— Mataram?
PH assentiu. — Sim. O recado foi dado.
FK se recostou na cadeira, os dedos tamborilando o tampo da mesa.
— Certo. E o morro?
— Tá tranquilo por enquanto. — PH respondeu. — Mas tão dizendo que tem uns caras novos rondando o asfalto, vendendo bagulho falsificado com teu selo.
O olhar de FK se estreitou.
— Então eles tão querendo brincar com o d***o.
Levantou-se, ajustou o colete, pegou a arma.
— Leva dois contigo e vai atrás. Eu quero nome, endereço e corpo.
PH apenas assentiu. Ele sabia que quando FK dizia “corpo”, não era figura de linguagem.
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Horas depois, FK subia a viela estreita que levava até uma das casas usadas como abrigo.
O sol do meio-dia refletia no suor da pele, o cheiro de comida se misturava com o de pólvora e gasolina.
O morro inteiro parecia respirar sob os passos dele.
Os olhares se abaixavam.
As conversas paravam.
Respeito ou medo — no caso dele, era a mesma coisa.
Chegou na casa, entrou.
Dois homens ajoelhados no chão, tremendo.
Dois traidores.
— Disseram que tu mandou produto com meu nome falsificado — disse FK, com voz baixa. — É verdade?
Um deles tentou falar, mas gaguejou.
— F-FK, eu juro que...
O tiro veio antes da explicação.
Seco. Limpo.
O corpo tombou pro lado, e o outro homem começou a chorar.
FK guardou a arma, olhou pro chão.
— Eu avisei. Aqui, erro custa caro.
Saiu sem olhar pra trás.
Os passos firmes, o rosto impassível.
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De volta à mansão, no fim do dia, ele entrou no escritório escondido — uma sala secreta atrás de uma parede falsa no quarto.
Lá dentro, telas mostravam cada câmera espalhada pela Rocinha.
Cada viela.
Cada entrada.
Cada rosto.
E, sem entender o motivo, ele voltou a imagem da lanchonete da Ivonete.
Pausou.
Deu zoom.
Os olhos verdes.
Ela servindo café, o cabelo caindo no rosto, o jeito quieto.
FK ficou parado olhando por longos segundos.
Não sabia por quê.
Mas aquele rosto...
Aquela leveza...
Irritava ele.
Como se algo nele ainda fosse capaz de sentir.
E sentir, pra FK, era fraqueza.
Ele apagou o monitor e se recostou na cadeira, o maxilar travado.
— Inocência não dura muito aqui em cima. — murmurou pra si mesmo. — E se durar, eu mesmo acabo com ela.
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O despertador tocou antes do sol nascer.
O barulho era irritante, mas Cecília já estava acordada.
Tinha dormido m*l — de novo.
Sonhou com aquele olhar.
Aquele olhar cor de mel que a atravessou como uma faca e a fez sentir medo e algo que ela não queria nomear.
Ela se levantou devagar, colocou os pés no chão gelado e olhou pro teto.
O ventilador girava devagar, rangendo.
Do lado de fora, o barulho das motos e dos primeiros fogos do dia.
Era o jeito do morro avisar: o “movimento” já tava começando.
Vestiu a calça jeans simples, a blusa branca do uniforme da loja e prendeu o cabelo num r**o de cavalo alto.
Na parede, um espelho rachado mostrava o reflexo dela — olhos verdes, pele clara, um rosto bonito demais pra passar despercebido naquele lugar.
Da cozinha, vinham vozes.
E o som de garrafa batendo na mesa.
Cecília respirou fundo antes de sair do quarto.
— Já tá acordada, menina? — perguntou Rute, a mãe, servindo café numa caneca lascada.
Os olhos dela estavam inchados, cansados.
— Tô, mãe. Tenho que sair cedo hoje, o gerente disse que vai ter entrega nova.
— Come alguma coisa antes. — insistiu Rute. — Não quero tu desmaiando no meio do shopping de novo.
O pai, João, estava encostado na mesa, ainda com a garrafa de cachaça na mão.
O cheiro de álcool misturado com suor deixava o ar pesado.
— Trabalha, trabalha, e o dinheiro nunca dá pra nada — resmungou ele. — Essa casa parece um buraco.
Cecília se calou.
Aprendeu que responder só piorava.
A irmã do meio, Carla, apareceu na porta, ajeitando o cabelo.
— Deixa a menina em paz, pai. Vai pra obra, tu tá atrasado.
Ele bufou e saiu, batendo a porta.
Rute suspirou.
— Um dia esse homem me mata de susto.
Cecília beijou a mãe na testa.
— Eu volto cedo, tá? Fica tranquila.
Pegou a bolsa, o crachá, e desceu a viela.
O sol começava a nascer por entre as lajes, pintando o morro de dourado.
As crianças corriam descalças, os vendedores gritavam o preço das frutas, o cheiro de pão quente se espalhava.
Era bonito, apesar de tudo.
Era casa.
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No ônibus, Cecília sentou perto da janela.
O caminho até o shopping era longo, mas era o momento que ela mais gostava — o único em que podia imaginar outra vida.
Olhava as casas se afastando, o morro ficando pequeno lá atrás, e pensava em como seria morar longe dali.
Longe dos tiros, do medo, das ameaças veladas.
Chegando no shopping, ela colocou o crachá: Cecília — Vendedora.
O sorriso que usava ali era outro — ensaiado, profissional.
Mas mesmo assim, o brilho nos olhos era verdadeiro.
Ela gostava de atender, de conversar, de ver as pessoas felizes com o que compravam.
Gostava de imaginar que aquele mundo podia ser dela também, um dia.
— Cê, me ajuda aqui! — gritou Camila, colega de loja, arrumando uma pilha de vestidos. — O gerente quer que o mostruário fique impecável.
— Tô indo! — respondeu Cecília, correndo pra ajudar.
Trabalhou o dia inteiro, quase sem pausa.
Entre um cliente e outro, lembrava do olhar que recebeu na lanchonete.
Era estranho.
Tinha medo, mas também curiosidade.
Quem era aquele homem que fazia todo mundo calar a voz só de entrar?
E por que os olhos dele pareciam ver tudo — até o que ela não dizia?
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Quando o turno acabou, já era noite.
O ônibus demorou, e Cecília chegou no morro exausta.
Passou pela praça principal, onde os meninos soltavam pipa e as mulheres conversavam nas janelas.
Tudo parecia calmo demais — o tipo de calma que antecede o caos.
Antes de subir pra casa, resolveu passar na lanchonete da Ivonete pra comprar um pastel.
Maia estava lá, sorridente como sempre.
— Olha quem apareceu! A fada do shopping. — brincou ela. — Sumiu hoje, hein?
Cecília sorriu, sentando no balcão. — O gerente me prendeu o dia todo.
— E aí... — Maia abaixou a voz. — Ontem tu ficou branca que nem fantasma quando o FK te olhou.
Cecília travou.
— Eu... só me assustei.
— Tu acha que todo mundo se assusta com ele. — Maia riu. — Mas olha, o cara manda aqui, Cê. Ninguém mexe com FK.
Cecília abaixou o olhar pro copo de suco.
— Ele é... perigoso, né?
Maia ficou séria por um instante.
— Ele é o dono do morro. Isso já responde tudo.
Cecília assentiu, quieta.
Mas dentro dela, algo se movia — uma curiosidade amarga, quase um medo doce.
E mesmo sem querer, naquela noite, quando deitou pra dormir, o rosto dele voltou.
Os olhos cor de mel.
A voz fria.
E o peso daquela presença que parecia ainda ali, mesmo longe.
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Enquanto isso, no alto da Rocinha, FK olhava pela janela , observando as luzes do morro piscando.
PH ao lado, conversando sobre negócios, mas ele já não ouvia.
Em algum ponto lá embaixo, ela respirava.
E sem saber, ele já a tinha notado demais pra esquecer.
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