Olá, eu sou Amira Al-Sayid, e a minha vida sempre foi feita de restos, restos de esperança, resto de paz, resto de coisas que nunca pedi... Isso por ter nascido em lugar, e uma sociedade, religião onde a mulher tem que ser submissa, e ela não tem voz, nem vida própria sem ter um homem ao seu lado, não pode mexer um dedo sem que algum homem autorize...
Às vezes, penso que a minha história começou muito antes de eu nascer, muito antes de eu abrir os olhos para este mundo que nunca me quis... Desde que me lembro, nunca houve um dia em que fui realmente feliz, tive um sorriso que fosse sincero, para mim a felicidade é estranha...
Eu nasci e cresci no Egito, entre paredes quentes de um deserto que nunca perdoa o ar pesado de uma casa onde a luz não dura muito... A minha mãe custumava dizer que eu tinha olhos de tempestade, daqueles que parecem calmos por fora mas escondem uma força silenciosa lá dentro... E eu acredito que foi isso que manteve resistente, até hoje...
Eu tinha dez anos quando perdi ela. Uma idade c***l para se aprender que o mundo não cuida de ninguem, e no nosso meio, o único afeto, carinho, e amor só recebemos da nossa mãe, como se desde a nossa infância sendo mulher, já sentisse culpa, pelo o que virá no futuro, então com ela era tudo exagerado, amor de mais, cuidado demais... E eu adorava cada segundo...
Ela chamava-se Samira, o tipo de nome que soa como oração, mas que foi quebrado como tudo ao nosso redor. Ela era a única pessoa que me olhava como se fosse algo, além do destino que me cercava, ela tentava sempre proteger-me do homem que eu chamo de pai, que apesar de o ser, nunca mereceu esse nome...
Desde a noite em que ela morreu, há memórias que o corpo mesmo que a mente tente esquecer. Eu estava atrás da porta do quarto, pequena demais para entender de dívidas, credores, ameaças, mas já grande o suficiente para reconhecer a palavra medo...
Ouvia vozes, ouvia a minha mãe chorar, ouvia o meu pai implorar, mas não por nós, más por ele mesmo, covarde como sempre... e ouvi um barulho estridente, que me fez fechar os ouvidos. E depois ouvi um silêncio, o silêncio que mata.
Os credores dele, vestiam armas como se fosse jóias, vieram cobrar uma dívida que o meu pai jurou que iria pagar "amanhã"... Só que o amanhã nunca chegou e alguem tinha que pagar naquele dia, e a pessoa que pagou, foi a mais inocente da história, a minha querida mãe. Eu vi uma parte do corpo dela pelo vão da porta, antes de alguém a fechar com força. E foi a última coisa que eu vi dela. Não o rosto, não o sorriso, mas o sangue...
E o meu pai? Ele não chorou, nao tremeu, não vacilou, ele apenas aceitou como quem observa uma peça a ser retirada do tabuleiro para que o jogo continue...
Naquele dia a criança que eu era deixou de existir, e outra nasceu no meu lugar, mais silenciosa. observadora, ferida, traumatizada, que a única coisa que a fazia lembrar que estava viva era o ar, que apesar de pesado estava lá...
O meu pai é HASSAN AL-SAYID, um nome duro e seco, carregado de orgulho e ego, como se estivesse sempre à procura de alguém para esmagar. Cresci a ouvir que ele era o homem da casa, que a sua palavra era lei, e as leis não se questionam se cumprem. Que nós, eu e a minha mãe, eramos apenas sombras à volta dele, ali para servir, para obedecer, para nos calarmos. Eu nunca vi o meu pai fazer um gesto de carinho à minha mãe, ou alguma palavra bonita a não ser ordens, e humilhaçoes, por ela não conseguir ter outro filho homem... Eu só filha única, minha mãe teve complicações no meu parto, e isso a impediu de ter mais filhos. E o meu pai poderia se casar com mais mulheres, mas ele não quis ,não sei porquê, porque nem amava a minha mãe...
Meu pai Hassan, cresceu num ambiente onde a autoridade dos homens era e ainda é vista como divina, indiscutível e universal. Mas ele levou isso ao extremo que até a própria comunidade evitava comentar. Para ele mulheres eram como objectos: insubstituíveis, silenciosas, e incapazes de pensar por si mesmas... Ele dizia que a religião lhe dava poder. Mas na verdade, apesar de ter 80% de razão, ele usava isso como máscara... Não era fé, era controle, não era tradição era conveniência, não era devoção era desculpa... Nós somos conscientes para saber o que é maldade e o que é bondade, mas para ele era tudo camuflado pela religião...
Ele sempre se viu como um rei, mesmo sem ter reino ou honra, a única coisa que ele tinha eram dívidas absurdas com diferentes pessoas perigosas, só para saciar o vicio do jogo e do álcool... Ele tinha uma capacidade assustadora de usar tudo, e todos que tinha por perto para pagar.
A minha mãe sempre tentou protegê-lo por anos. Sim, protegê-lo... Ela nasceu e cresceu neste ambiente onde a voz do homem era absoluta, onde a mulher deveria ser sempre submissa e cuidar do marido, não importa como... Lembro-me de ver alguns homens aqui em casa, e a entrar no quarto com a minha mãe, e o meu pai sentado na sala, como se fosse algo normal, eu não entendia o que acontecia realmente, e nem tinha coragem para perguntar, e depois via a minha mãe chorar escondida pelos cantos, mas sempre que me via disfarçava e sorria...
Ela acreditava que o amor poderia, curar e mudar aquele homem, aquele monstro que era o meu pai, acreditava que quanto mais devota e submissa, poderia tocar o seu coração, que se lhe desse estabilidade, paz, família poderia transformá-lo... Mas o Hassan não queria isso, queria adrenalina, risco, perigo, queria a sensação de estar sempre a um passo da morte, mesmo que no final escape... E era isso que fazia, a nossa casa já não é mais nossa, só esperamos que alguém, algum dia nos expulse dela. O vício dele nos jogos, queimava tudo que tocava, dinheiro, honra, familia, segurança... Apostava tudo que estivesse ao seu alcance, alianças, casa, carro, moveis, promessas, favores, e até a nossa vida. Como a da minha mãe. Tudo por causa dele... No fim sempre dava um jeito de se safar...
Depois da morte da minha mãe, a casa ficou silenciosa demais, mais do que já era, um silêncio gritante... Eu passei a viver com um homem que estava cada vez pior, que não sabia o que fazer com uma filha, nunca se interessou em saber... Nunca soube como falar comigo, eu era como um móvel da casa para ele, mesmo quando a minha mãe ainda estava viva. E em algum momento me olhando, a culpa pesava, mas só por um segundo, então resolveu transformar isso em raiva e a tortura psicológica começou...
"A sua mãe morreu por causa da sua fraqueza, tens de crescer Amira, tens de ser útil" disse ele...
Aquilo me deixou chocada, e me encheu de culpa, a minha mãe morreu por minha culpa! Foi o que percebi... Agora como explicar a uma criança de 10 anos que o próprio pai é culpado da morte da mãe... Eu não entendia o porquê ela foi morta, e quando ele disse isso eu acreditei, que talvez ela tivesse me protegido daqueles homens por isso foi morta...
Nos meus 10 anos aprendi que ser útil, não significava amar, significava: servir, cozinhar, lavar, ficar calada, e fazer de tudo para não irritá-lo. E mesmo assim ele se irritava toda vez que me via...