Relutância

3178 Words
Percebendo que a Nayara estava demonstrando sua dor, sofrimento e angústia no silêncio, decidi fazer algo para tirá-la desse limbo. Precisava fazê-la se expressar além das lágrimas e do olhar perdido. Ela tinha que falar e até gritar o seu pesar, mesmo que para isso fosse preciso motivá-la a ficar com raiva. Sentimento que era parte das fases do luto. Comecei a guardar os pertences do Davi. Não tinha em mente o que faria com as pelúcias e todos os outros itens que compramos para ele e não tivemos a oportunidade de vê-lo crescer para usar. Tudo que conseguia pensar era em como a Nayara e eu nos dedicamos ao pequeno desde o momento em que a gravidez foi confirmada. Pensamos tanto em qual seria o melhor momento. O meu ateliê estava crescendo, recebi propostas para expandir o alcance no Brasil e levar minhas peças para outras regiões do país, planejava expandir a produção e contratar costureiras de uma comunidade do Rio que a Letícia me levou para conhecer. Estava com mil planos quando a Nayara me surpreendeu com um gesto romântico. A vontade de ter o nosso bebê partiu dela, que estava pronta para fazer uma pausa no trabalho e deixar o escritório nas mãos da Emilly e da Isabel. Nunca vou me esquecer das flores pela casa e dos cartões com mensagens lindas que ela me escreveu, tudo pensando em falar sobre sua intenção. Sempre desejei uma família grande, queria que a nossa casa se preenchesse de muito mais amor e foi assim que ela me propôs termos um bebê. Entre flores de todas as cores, com um sorriso afetuoso e o olhar transbordando seu encanto, ela simplesmente perguntou se podíamos expandir nosso amor a mais um filho e a minha resposta foi o sim mais entusiasmado do mundo. Ter essas lembranças doces para me apegar era o que estava me mantendo forte. O momento estava longe de ser o melhor da minha vida, mas cada vez mais acredito que tudo tinha um motivo para acontecer e uma lição para ensinar. O luto era perturbador, dava a sensação de que somos pequenos demais no universo para mudar o destino de uma vida. Com ele surgia o medo de continuar perdendo. De repente era tudo sobre perder; perder aqueles que amamos; o sentido da vida; o controle sobre os passos que damos e por fim perder tempo em um eterno sofrimento. O luto era impactante e cada pessoa tinha um entendimento dessa experiência. - O que você está fazendo Paola? A Nayara entrou no quarto chamando minha atenção. - Estou fazendo o que é necessário para seguirmos em frente. Afirmei enxugando as lágrimas. - Você desistiu do nosso filho! Ela deu um passo na minha direção e subiu o tom de voz. - Nunca desisti do Davi. Você está negando o que nós duas vivemos nos últimos meses. - Você desistiu dele. Simplesmente aceitou que nosso filho estava com o tempo contado. Continuou com raiva. - Lutamos por ele. Você sabe que lutamos. Só está me acusando porque está com raiva. - Eu ainda escuto o choro dele. Sinto a presença e o calor em meus braços, como se o segurasse. Você não vai levá-lo para fora das nossas vidas. Não pode fazer isso comigo! Ela me encarou bem de perto. - O que você espera de mim Nayara? - Só quero que saia desse quarto. Pediu me fitando e eu me afastei. Infelizmente não podia apoiar a relutância dela. Preferia não acreditar que a dor era real e que apenas estávamos em um pesadelo, mas sabia que era necessário focar em como lidar com a tristeza e não a ignorar. Não aceitar o luto. Não querer senti-lo. Era prolongar um sofrimento, que nunca deixaria de existir, mas que podia ser transformado com o tempo. A partir do momento que olhamos para a dor, ela muda de lugar e vai sempre continuar mudando. Depois de um tempo a Nayara entrou no quarto de cabeça baixa e começou a recolher alguns dos seus pertences. Fiquei sentada olhando para ela e tentando entender qual era o seu objetivo. Percebendo minha atenção ela me fitou ainda com muita raiva. - Vou dormir em outro quarto. Declarou decidida. - Prefiro que não se afaste mais. Estou fazendo tudo pra não invadir seu espaço. - Vou dormir em outro quarto. Ela repetiu com firmeza. - Entendo. Baixei a cabeça e a esperei sair do quarto para começar a chorar. Não queria que ela se isolasse mais do que tinha feito ao ficar em silêncio por dias. Tinha medo das consequências dessa atitude e medo que ela acreditasse que estava sofrendo sozinha. Resolvi ligar para a Andréia e pedir que ela tentasse falar com a filha. Talvez ela conseguisse abrir algum caminho para o diálogo entre nós duas. Eu só queria dizer que estávamos juntas na dor como sempre estivemos nos bons momentos. Queria muito que ela entendesse que o mundo não estava seguindo normalmente, mas sim que ele estava diferente porque agora tínhamos a ausência de uma parte importante em nossas vidas. Tentei falar com a Andréia, mas ela provavelmente estava trabalhando. Depois de um tempo deixei o quarto na ponta do pé e procurei pela Nayara em um dos quartos de hóspedes, mas ela não estava em nenhum deles. Imediatamente deduzi onde poderia encontrá-la. Eu tentei abrir a porta do quarto do Davi e descobri que ela estava trancada. - Nayara. Por favor, não tranca a porta. Bati algumas vezes e ela mexeu na chave. - Prometo não mexer nas coisas do nosso filho. Desculpa! Considerei que ela precisava estar naquele quarto. - A Gabriela e eu precisamos de você nas nossas vidas. Não se esqueça disso. - Eu sei. Ela falou baixinho. Parecia estar encostada do outro lado da porta. - Está tudo fora do lugar em nossas vidas. Falta uma parte de nós. Uma parte muito importante que nunca vamos substituir. Não estou tirando o Davi das nossas vidas. O nosso filho sempre será parte do sonho que sonhamos juntas. - Não estou pronta pra deixá-lo partir. Preciso do meu filho. Ouvi-la partiu meu coração. - Você sempre me acolheu. Porque não posso fazer o mesmo? - Não quero ser acolhida Paola. Quero meu filho de volta. - Nayara o Davi foi um presente em nossas vidas. Ele não vai sumir das nossas memórias. Não vamos deixar de senti-lo em nossos braços. Nada sobre a vida dele vai se tornar menos importante mesmo com o passar dos anos. Ele será sempre o nosso menino. Nosso pequeno. - Todas as suas palavras só me machucam Paola. - Desculpa. Pedi chorando. - A porta está aberta, mas eu não quero que entre. Ela pediu aos prantos. - Só vou entrar quando você quiser. Afirmei enxugando as lágrimas e mais uma vez entendi que ela precisava de espaço. Voltei para o quarto e chorei até perder as forças e dormi. Sonhei que estava no quarto do Davi, mexendo nas roupas dele e desmontando seu berço. Uma luz forte entrava pela janela e iluminava todo quarto, que tinha uma energia intensa. Ouvi passos e senti que alguém me observava. Olhando para trás reconheci os olhos castanhos e amorosos que me fitavam. Em seguida um sorriso tímido me chamou atenção e eu não sabia quem era, mas era familiar. - Oi mãe. O rapaz tocou minha mão e continuou sorrindo. - Oi filho. - Os meus irmãos estão ansiosos. Pode ir buscá-los? - Buscá-los onde? - Em todos os lugares. Ele se inclinou para me beijar e eu acordei. - Bom dia Mãe! Despertei com a Gabi me abraçando. - Oi princesa. Bom dia! Onde está sua avó? - A vovó está com a mamãe. Posso fazer uma festa no meu aniversário? Pediu sorridente. - Princesa esse não é o momento para uma festa, mas você terá seu presente. - Mãe, uma festa deixaria a mamãe feliz. Sugeriu sendo inocente. - Sua mamãe está triste de um jeito que uma festa não a deixaria feliz pequena. Ela precisa do nosso amor. De muito carinho e abraço. Você entende? - Entendo. Vamos tocar piano? A mamãe sempre fica feliz. Ela sugeriu sorrindo e eu pensei que um pouco de música tocaria o coração da Nayara. - É uma boa ideia filha. Concordei sorrindo e ela saltou da cama e saiu do quarto me puxando pela mão. A Nayara estava sentada ao lado da minha mãe na área coberta do jardim e não viu quando me sentei com a Gabriela de frente para o piano. Sem hesitar a Gabi escolheu a nossa música e se posicionou para me ajudar a tocar. Há meses não tocava piano e sabia que fazendo isso despertaria memórias e sentimentos na Nayara. Respirei fundo e literalmente fechei os olhos. Apenas me entreguei à melodia e toquei pensando em tudo que a música significava na nossa história. Ao pensar nisso não fiquei surpresa percebendo que na nossa vida sempre nos deparávamos com essas situações onde andávamos em círculo e percebíamos que tudo havia ficado tão difícil, que simplesmente desejávamos voltar ao começo. Nunca foi fácil e mais uma vez só nos restava o recomeço. Apenas toquei em silêncio e ao abrir os olhos a Nayara estava parada ao meu lado. Olhamos uma para a outra e ela chegou mais perto. Não consegui conter a emoção e comecei a chorar. A Gabriela então me abraçou e depois de mais alguns segundos ela se juntou ao abraço. Um abraço doloroso e importante por ser o nosso primeiro contato após semanas. - Amo vocês! Ela sussurrou antes de se afastar e a Gabriela sorriu. - Falei que a mamãe ficaria feliz. A afirmação da Gabi me fez sorrir. Se não fosse por ela jamais teria pensado em tocar piano. Foi graças a esse momento que percebi a importância dos pequenos gestos. Eram eles que trariam a Nayara de volta, mesmo que aos poucos. Ela precisava lembrar quanto amor existia em nossa casa e em toda nossa história. O amor sempre nos resgatou de situações difíceis e dessa vez não seria diferente. Pela primeira vez voltei ao ateliê e ao chegar reuni-me com algumas funcionárias para falar sobre o nosso próximo lançamento. A Daniela estava fazendo todo o possível para atrair atenção e sugeriu que devíamos aumentar a curiosidade acerca dos novos modelos fazendo umas fotos e mostrando parcialmente a nova coleção. Gostei da ideia e pedi que ela marcasse uma seção de fotos e chamasse a Letícia para fazer uma brincadeira com mágica e ilusionismo. Tivemos uma reunião produtiva e depois eu preferi voltar para casa. Assim que cheguei a Gabriela correu para me dar um abraço. Imediatamente percebi que havia um brilho diferente em seus olhos e fiquei esperando que ela me dissesse o que era. - A mamãe disse que posso fazer minha festa. Posso mesmo mãe? Não julguei que fosse mentira, mas estranhei a Nayara ter concordado. - Melhor falarmos mais tarde Gabi. Você tem que terminar de se aprontar para a escola. Ela me olhou contrariada. - Depois conversamos. Repeti falando sério e ela saiu correndo como se fosse chorar. Os acontecimentos recentes nos deixaram frágeis e essa fragilidade também estava na Gabriela. Esperava conversa com ela na companhia da Nayara, mas a pequena mostrou-se muito compreensiva diante da situação e por mostrar esse entendimento eu me antecipei ao pensar que ela havia processado tudo, mas por ser uma criança ela obviamente não sabia como lidar com o luto e talvez por isso estivesse falando tanto em fazer uma festa de aniversário, como se esse evento fosse trazer de volta a felicidade para nossas vidas. Depois do almoço, quando a Gabi foi para a escola eu me sentei no sofá da sala e comecei a trabalhar no notebook enquanto a Nayara aparentemente tentava ler um livro indicado pela minha mãe. Fiquei contente por ver que ao menos ela estava tentando se distrair um pouco e depois de algum tempo sentadas decidi perguntar sobre a festa da Gabi. - A Gabriela tem feito planos para o aniversário dela. Falei atraindo atenção. - Ela falou comigo mais cedo. - O que você acha? - Concordei com a vontade dela. - A Gabi nunca nos pediu uma festa. Ela sempre fala em presente. - Ela está crescendo e quer comemorar com as coleguinhas. - Suspeito que essa vontade dela seja uma tentativa de atrair nossa atenção. - Desde quando você é psicóloga Paola? Disse de forma grosseira e até me deixou sem graça. - Porque está falando assim comigo? Eu não disse nada demais. - Você faz terapia, mas não é terapeuta. Afirmou se levantando bruscamente. - Ela está preocupada conosco Nayara. A Gabriela pode não entender tudo que está acontecendo, mas é uma menina muito sensível e empata. Ela sente o nosso sofrimento e esse desejo por uma festinha de aniversário é um pedido de socorro. - A Gabriela disse ou você está deduzindo assim como tem feito comigo? - Não preciso que ela diga. Conheço minha filha. - Sua filha? Não é nossa filha? Indagou irritada. - Se pra você é importante brigarmos, podemos fazer isso. É tudo que eu mais quero Nayara. Eu quero que você fale tudo que está sentindo. Que coloque a culpa em mim. Eu aceito qualquer coisa de você nesse momento. Mesmo porque por mais dura que sejam suas palavras eu prefiro ouvir sua voz a sofrer com seu silêncio. - Você quer me ouvir? Quer que eu diga o que sinto. Estou com ódio Paola! Sinto que fiz tudo errado. Que não merecia ser mãe. Sinto que não fiz tudo que podia e que falhei em todos os meus passos. Então se a Gabi quer uma festa, faça uma festa. Faça qualquer coisa por ela. Porque eu faria uma festa se o Davi tivesse ficado nessa vida tempo o suficiente para ter uma. A dor dela sobressaiu nas palavras. - Essa conversa foi a mais longa que tivemos em semanas. - Estou me esforçando Paola. Juro que estou. Ela segurou o choro. - Eu reconheço seu esforço. - Eu não quero ser consolada. Quero sentir meu coração bater novamente. Hoje por um momento eu senti quando vi você no piano. Consegui ver que está sofrendo assim como eu. Infelizmente, tudo que você vai conseguir de mim é dor. Eu só tenho dor Paola. Apenas entenda e respeite que eu não quero sofrer menos. - Você me ensinou o que é o amor Nayara. Sempre olhei pra você e vi amor nos seus olhos. E da mesma forma que você ama imensamente também sofre profundamente. Estou longe de querer impedi-la de sofrer. Só quero que compartilhe sua dor comigo e que possamos chorar juntas. A sua tristeza é minha também. O luto não é apenas seu Nayara. Ele é meu. Ele é da Gabriela. É de toda nossa família. Todo mundo está sofrendo e esperando que você dê espaço pra que a dor seja compartilhada. - Você não vê o quanto estou despedaçada? - Não sou a única a vê-la dessa maneira. Nossa filha também está vendo. - É por isso que eu quero ficar em um canto. Por isso que não quero compartilhar nada com ninguém, nem mesmo com você. Eu não quero dividir a dor. Ela é minha. Ela me pertence! Declarou agitando as mãos e pontuando com elas. - Se pensa que vou desistir de você e deixá-la sofrendo em um canto digo que está pensando errado. Isso não vai acontecer. Não vou sepultá-la junto como nosso filho! Ela andou pisando forte e chegou bem perto de mim. Por um minuto pensei que ela fosse expressar sua raiva me deferindo uma tapa, mas isso não aconteceu. - Eu não vou abrir a porta pra você Paola. Disse antes de me dar as costas. - Se escolher se trancar tenha certeza que vou derrubar a porta! Declarei em voz alta. Ela parou e não olhou para trás. - Sua relutância não vai me impedir de tentar a proteger. Você tem todo direito do mundo de estar com medo. Tem todo direito de sentir-se fragilizada. Assim como tenho o direito e o dever de ser a sua força. Você pode se trancar e esconder por trás de milhões de portas e cadeados que eu vou me dedicar a abrir cada um deles. Ela me escutou e não disse mais nada. Simplesmente pegou a chave do carro e saiu. O que só não me deixou mais preocupada porque todos os nossos veículos tinham rastreadores. Talvez sair de casa fosse o que ela precisava para ver que embora o nosso mundo estivesse se desfazendo o mundo porta a fora continuava o mesmo. Depois de uma hora olhei o aplicativo do rastreador e vi que o carro estava estacionado perto de um dos nossos locais favoritos na praia da Barra da Tijuca. Deduzi que ela realmente estava refletindo o luto, mas as horas foram passando e quando anoiteceu comecei a ficar angustiada. Senti que havia algo errado e resolvi sair e procurá-la. Localizei o carro dela e andei pela praia esperando encontrá-la. Caminhei mais de meia hora nos dois sentidos da praia até chegar à conclusão que ela havia deixado o carro e seguido para outro lugar. Não demorei a descobrir onde ela havia decidido ir e não queria que eu soubesse. Dirigi até o local onde ficava o jazigo que pertencia à família dela e a encontrei diante do túmulo onde o Davi havia sido sepultado. Respirei fundo antes de me aproximar dela e sentei ao seu lado em silêncio. Permaneci calada ao seu lado por alguns minutos até que ela segurou minha mão. Após esse gesto eu só baixei a cabeça e chorei. Chorei muito. Como se nunca mais fosse conseguir parar. Aquele choro que engasga e aperta o pescoço. Chorei até soluçar e ela continuou chorando em silêncio, como se não tivesse mais forças para derramar lágrimas copiosas. - Nosso menino não vai voltar pra casa. Ela disse chorando. - Sei disso. - O que fizemos de errado Paola? Questionou com indignação. - Eu não sei o que você quer ouvir. Declarei sentindo o peito apertado. - Planejamos toda uma vida com muitos filhos. Onde erramos? Porque sempre encontramos tanta dor em nosso caminho? - Minha mãe disse que os propósitos da vida estão além da nossa compreensão. Afirmei enxugando as lágrimas. - Sua mãe tem uma perspectiva grandiosa sobre o luto, mas não existe leveza na morte. - Nunca existirá essa leveza. Muito menos ao perder um filho. Não vamos superar e esquecer essa dor que estamos sentindo. O que podemos fazer é aprender a lidar e viver com ela. Temos que fazer todo possível para seguir em frente e honrarmos o sentimento que o Davi trouxe para nossa vida desde o momento que soubemos que ele estava a caminho. - Preciso de você. Declarou timidamente. - Preciso que abra todos os meus cadeados Paola. Afirmou me olhando fixamente e eu encostei meu rosto no dela. - Farei isso mil vezes se for preciso Cariño!
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