Aderbal soltou o cigarro no cinzeiro, cruzou os braços atrás da cabeça e soltou, firme:
— “Agora vaza. Todo mundo.”
Pulga arregalou o olho.
— “Mas já, chefe? Se for pra tomar bronca coletiva, a gente divide o BO…”
— “Não é bronca coletiva,” — Aderbal cortou. — “É papo de pai com filho. O resto, rua.”
Gargalo bufou, se levantando:
— “Ih, Murilo vai tomar sermão VIP.”
Faísca tentou insistir:
— “Se for pra apanhar, a gente apanha junto, pô…”
Neguim deu aquele sorrisinho torto:
— “Fé, general. Se precisar de álibi, nós mente por ti.”
— “Sai logo, cambada,” — falei, sem tirar o olho do meu pai. — “Depois a gente se encontra na laje.”
Eles foram saindo devagar, arrastando chinelo, cada um soltando piadinha nervosa como quem tenta disfarçar o peso da coisa.
— “Vai com Deus, comandante,” — murmurou Pulga. — “Se ele não tiver ocupado demais ajudando o Yuri.”
Porta bateu.
Silêncio.
Ficou só eu e ele.
Aderbal.
Meu pai.
O homem que já fez inimigo sumir e filho obedecer com o mesmo olhar.
Ele não falou nada nos primeiros segundos.
Só me encarou.
Depois se levantou, andou devagar até a janela, olhou lá fora, puxou o pano de prato da bancada e secou a mão suada.
A voz veio seca:
— “Tu sabe o que significa ter meu nome, Murilo?”
Travei a mandíbula.
Mas respondi:
— “Sei.”
Ele virou de lado, meio na sombra, meio na luz da tarde entrando torta pela cortina rasgada.
— “Não. Tu acha que sabe.”
Pausou.
Cuspiu as palavras com precisão:
— “Meu nome pesa. Abre porta. Fecha caixão. Dá medo. Dá respeito. Mas também cobra. Cobra muito. Cobra sempre.”
— “E eu tô pronto pra pagar,” — falei, direto.
Ele riu.
Aquele riso baixo, quase irônico.
— “Tá pronto nada. Tá aprendendo. E aprender com porrada é fácil. Difícil é aprender com poder. Porque poder... poder faz homem tropeçar no próprio ego.”
Aderbal deu dois passos lentos. Depois mais dois.
Parou perto da pia, pegou um copo, encheu d’água, virou de uma vez só.
Então virou pra mim.
— “Por que tu fez isso, Murilo?”
A voz dele não veio como chefe.
Veio como pai.
Sem grito, sem ódio.
Veio como quem quer entender.
— “Me diz. De homem pra homem. Por quê?”
Cruzei os braços, o sangue ainda quente da surra no Yuri, o corpo ainda com a adrenalina zunindo nas veias. Mas falei firme. Sem vacilar.
— “Porque a gente é traficante. Mas não é cuzão.”
Aderbal manteve o olhar. Firme.
— “Continua.”
— “Porque eu vi um playboy humilhar uma mina no meio do patio, cercada de risada. E ela ficou lá, encolhida, tentando sumir. E ninguém fez p***a nenhuma.”
Parei. Respirei fundo.
— “Eu não ia ser mais um filho da p**a assistindo quieto.”
Silêncio.
Ele não piscou.
Só balançou a cabeça, como se analisasse cada palavra como faca que corta fruta madura.
Então perguntou.
Do nada.
Frio.
Cirúrgico.
— “E essa menina... é o que tua?”
Demorei meio segundo.
Mas foi o suficiente pra saber que ele viu o que eu não disse.
Mesmo assim, respondi.
— “Ninguém. Só... alguém que não merecia aquilo.”
Ele arqueou a sobrancelha, quase sorrindo.
— “‘Ninguém’ faz tu quebrar nariz de playboy, tomar suspensão, viralizar vídeo na quebrada e ainda bater no peito achando que tá certo?”
Eu travei a mandíbula.
Ele riu. Baixo. Mas não era deboche. Era riso de quem entendeu mais do que eu queria mostrar.
— “Tá bom, Murilo,” — ele falou, voltando pra cadeira. — “Então essa ‘ninguém’ é teu primeiro sinal de que tu tem mais coração do que cabeça.”
Encostou no trono como quem sela uma sentença.
— “Sabe qual o problema disso?”
Esperei.
Ele encarou de novo. E soltou:
— “É que coração, aqui dentro, é ponto fraco.”
Ficou só o barulho do ventilador de novo.
— “Se essa menina mexe contigo... esconde. Protege. E nunca, nunca deixa os inimigos saberem que ela existe.”
Pausou.
Depois apontou pra mim, com o queixo:
— “Porque se eu fosse inimigo teu... era nela que eu mirava.”
Aderbal bateu o cigarro no cinzeiro, se inclinou pra frente e soltou:
— “Filho… eu sei que tu já queria tá aqui no meu lugar.”
Fiquei quieto.
— “Tu tem dezenove. Eu também queria dominar o mundo com dezenove. Mas a diferença é que, naquela época, ninguém me dizia que eu tinha tempo.”
Ele encostou de novo, cruzou os braços por trás da cabeça.
— “Quero que tu viva tua vida sem medo de morrer… mas também sem pressa de matar.”
Me pegou no contrapé.
Porque no fundo, eu tava mesmo com sangue no olho. Achando que tava pronto. Achando que já era hora.
— “Nem tudo se resolve com soco, Murilo. Ainda mais quando o que tá em jogo não é tua cara, mas teu nome.”
Abaixei os olhos por meio segundo.
E foi aí que ele largou.
Frio.
— “A menina se chama Melissa Rocha, né?”
Levantei o olhar na hora.
Travado.
— “Como é que tu sabe?”
Aderbal deu um meio sorriso, quase debochado, como se dissesse “filho, eu te conheço mais do que tu acha”.
— “A gordinha que tu tá stalkeando no i********:, olhando os story tudo de madrugada achando que ninguém vê…”
Deu dois tapinhas na coxa.
— “Moradora nova aqui do morro. Filha da moça que veio da república da Linha. Trabalha na recepção da clínica nova lá embaixo.”
Eu não respondi.
Porque não tinha como negar.
Ele completou:
— “Tu é bom de esconder sentimento, Murilo. Mas não é bom o bastante pra enganar quem te criou.”
Ficou de pé, devagar.
Andou até mim, parou a meio passo de distância.
— “Agora escuta uma última coisa…”
Apontou o dedo, firme.
— “Se essa menina for teu ponto fraco, tu tem duas opções: ou transforma ela na tua força, ou afasta antes que alguém transforme ela na tua ruína.”
Deu as costas.
Foi andando devagar até o corredor.
Mas antes de sumir, largou a última:
— “E limpa teu histórico do i********:, p***a. Stalkeando igual adolescente apaixonado. Tu quer comando… começa se comportando como homem.”
E sumiu no escuro da casa.
Me deixou sozinho com as palavras dele.
Com o nome dela.
E com o peso de saber que… agora, não era só eu que sabia.
Era o morro inteiro que podia descobrir.