capítulo 4

1489 Words
Narrado por Murilo Ferreira A gente subiu o morro feito tropa que volta de missão — suado, rindo alto, zoando até a alma. Neguim vinha com o boné torto, dançando funk inventado na hora: — “Eu sou o terror do papai, bagulho doido da escola, quem fala da Melissa já apanha na sacola!” Faísca se dobrava de rir. — “Vai tomar no cu, Neguim! Essa rima merece um Grammy da quebrada.” Pulga fazia beatbox com a boca, e Gargalo batia palma como se fosse batida de palma no culto do crime. — “Cês viram o playboy chorando, mano?” — Pulga gritou. — “Tava igual calopsita no temporal, tremendo e pedindo abracinho!” — “Eu juro que vi ele mijar,” — completou Gargalo, sério. — “Não tô brincando. Um filete de medo escorreu ali, ó.” Eu ria baixo, só observando o bonde se esbaldar. Tava estampado na nossa cara: missão cumprida. E o morro sentia. A cada viela, a cada quebrada, alguém gritava, assobiava, acenava. — “Aí, Murilo! Diz que foi tu que quebrou o nariz do riquinho?” — “Cês tão famosos, hein! Já vi até meme no grupo da quebrada!” Neguim inflava o peito como g**o de briga. — “A gente é viral agora, c*****o!” — “É o bonde da escola particular, p***a!” — gritou Faísca. — “E ainda ensinaram ética na porrada!” Pulga quase tropeçou de tanto rir. — “Se continuar assim, vamos virar tema de redação do ENEM: ‘a importância da surra no processo pedagógico’.” Chegamos na ladeira principal da Vila. Dava pra ver a laje da minha casa lá do alto. E, mais embaixo, o miolo do morro — onde a boca funcionava no ritmo do lucro e da bala. Foi quando o soldado da boca veio na direção da gente, apressado, já acenando com a cabeça: — “Ô Murilo… teu pai mandou chamar. Todos vocês. Agora.” Silêncio. A zoeira morreu no ar. Faísca passou a mão no rosto, como quem limpa a coragem. — “Ih…” Pulga engoliu seco, fingindo leveza: — “Cês acham que ele viu o vídeo que postamos no status? Aquele com Yuri no chão que o Gargalo filmou em câmera lenta?” Gargalo levantou as mãos: — “Eu só gravei por segurança jurídica!” Neguim resmungou: — “Fudeu, viado…” Eu não falei nada. Só ajeitei o boné na cabeça, dei dois tapas na bermuda e disse: — “Vambora. Se o Aderbal chamou, é porque não vai ser recado.” A gente desceu em silêncio, mas com o peito em riste. Porque uma coisa era bater em boy de condomínio. Outra era encarar Aderbal Ferreira de frente. E se ele queria falar com o bonde… Era porque, a partir daquele momento, a zoeira ia ter consequência. Ou coroa. A gente desceu a viela principal em fila torta, igual moleque que aprontou na escola e agora ia encarar a diretora — só que no nosso caso, a diretora era meu pai. Aderbal Ferreira. Nome de respeito na quebrada. Voz grossa, olhar que pesa, e uma mão que já ensinou muito moleque a andar reto — ou a andar torto com medo. Chegamos na frente da boca. O cheiro de cigarro, pólvora e dinheiro velho já anunciava o território. Dois soldados abriram passagem. Todo mundo em volta calou. E a gente entrou. O barraco do miolo da operação era simples por fora, mas por dentro era outro jogo. Sofá de couro, TV maior que ego de político, e um altar de São Jorge do lado da geladeira. O trono de Aderbal era uma cadeira de madeira reforçada, dessas que parece que até o peso do mundo pode sentar que ela não quebra. E ele tava lá. Sentado. Com a perna cruzada, camisa aberta no peito, e o semblante de quem já sabia de tudo. Sem pressa, sem sorriso. Só o olhar. Aquele olhar que atravessa. — “Entraram pra história hoje, né?” — ele falou, sem levantar a voz. A gente não respondeu. Nem riu. Nem fingiu. Neguim coçou a nuca. Pulga baixou o boné. Faísca limpava o tênis com a sola no chão. Gargalo assoprava o cigarro sem tragar. Eu fiquei firme. Porque aquele era o meu pai. E com ele, quem vacila perde até a confiança. — “Bando de palhaço,” — ele soltou, se levantando. — “Viral no zap agora é currículo pra ser enterrado?” Deu um passo. Veio direto no Faísca. POC. Um cascudo seco no topo da cabeça. Faísca arregalou o olho, mas nem ousou xingar. — “Por zoar na frente da escola particular com câmera ligada.” Deu meia-volta e PÁ — cascudo no Pulga. — “Por postar vídeo no status com legenda ‘aula dada, trauma cobrado’.” Pulga segurou o cocoruto, murmurando um “foi m*l”. Aderbal olhou pro Gargalo. — “E tu, cinegrafista do crime…” TOC. Mais um cascudo. — “Quer filmar? Vira repórter da Record, caralho.” Gargalo mordeu o lábio, tentando não rir nem chorar. Virou pro Neguim. — “E tu, i****a, dançando funk no meio do morro? Tá achando que é baile, p***a?” PUM. Neguim tomou o dele também. Nem reclamou. Só assentiu, respeitoso. Aí ele me encarou. Silêncio. — “E tu, Murilo.” O coração deu aquela apertada. Mas eu não baixei a cabeça. Ele chegou mais perto. Olhou nos meus olhos. — “Meu filho. Meu nome.” E PÁ. O cascudo mais forte de todos. Doeu mais no orgulho que na cabeça. — “Pra tu aprender que liderança não é só porrada. É também saber mandar os o****o calar a boca.” Ele deu as costas, voltou pro trono. Acendeu um cigarro com calma. Soprou a fumaça devagar. — “Agora senta aí. Come alguma coisa. E escuta o que eu tenho pra dizer.” E a gente sentou. Porque quando Aderbal bate… ele bate ensinando. A gente sentou em silêncio, mas era aquele silêncio barulhento — cheio de respeito, de vergonha abafada e do tipo de medo que não paralisa, mas endireita. Pulga pegou um pastel de carne da mesa, mastigando devagar como quem espera a sentença. Faísca encheu o copo de mate gelado, mas nem teve coragem de brindar. Gargalo acendeu outro cigarro, agora tremendo um pouco, e Neguim puxou a corrente do pescoço, tipo amuleto de proteção. Eu fiquei com o olhar no meu pai. Aderbal tragou fundo. Cruzou as pernas de novo. E falou com aquela calma que metia mais medo que grito. — “Vocês acham que isso aqui é filme? Hein? Que vão resolver tudo no soco e virar herói de quebrada?” Pulga tentou abrir a boca, mas engasgou com o pastel. Aderbal ignorou. — “Hoje foi Yuri. Amanhã é quem? Outro filhinho de papai? Um playboy armado? Ou a p***a de um policial disfarçado? Porque é isso que vocês esquecem. Que enquanto vocês tão rindo... tem gente vigiando.” Faísca engoliu em seco. — “A intenção não foi explodir…” — “Não foi, mas explodiu,” — cortou seco. — “Cês tão achando que a Vila não tem inimigo? Que o mundo lá fora não adora ver preto se fudendo pra ter motivo de invadir aqui dentro?” Silêncio. Ele se inclinou pra frente, o cigarro queimando entre os dedos. — “Cês têm nome agora. E não é só aqui, não. Tão em grupo de polícia, grupo de professor, grupo de político. Acham que tão virando lenda? Tão virando alvo, porra.” Gargalo bufou, baixo: — “Mas também não dá pra abaixar a cabeça pra qualquer otário...” Aderbal apontou pra ele. — “Concordo. Mas aprende isso de uma vez: porrada boa é aquela que ninguém vê. Que não vira vídeo, nem viral. Que não chama polícia, nem enterro. Se tiver que bater, bate na sombra. E se tiver que sumir com alguém... que suma sem deixar digital.” Neguim fez que sim, com os olhos. O bonde tava aprendendo. Na marra. Aderbal encostou de novo, puxou um novo cigarro, riu pelo canto da boca e falou com a voz mais baixa: — “Agora... que foi bonito ver o moleque caído, foi.” A gente se olhou. Riso contido. Vergonha querendo escapar. Ele deu uma tragada longa e soltou: — “Só faltou legenda no vídeo: ‘Aqui se educa com amor e soco’.” Pulga explodiu de rir. Faísca bateu a mão na mesa, gargalhando. Gargalo quase cuspiu a fumaça. Neguim rolava no sofá. E eu... Eu ri. Mas daquele jeito orgulhoso. Porque mesmo com bronca, com cascudo, com sermão e lição... Aderbal sabia. A gente podia ser problema. Mas era problema com disciplina. Problema com dono. E ninguém fodia com o bonde do Ferreira.
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