Narrado por Murilo Ferreira
Dois dias de suspensão e a gente já tava tratando como feriado nacional.
Ficamos ali, do lado de fora da escola, largado na mureta, feito tropa de elite do fundão — só que sem farda, sem filtro e com riso solto de quem já fez merda e faria de novo.
Pulga tava com um salgadinho aberto no colo e uma Coca dois litros entre as pernas.
— “Parabéns, senhores,” — ele ergueu o copo plástico como se fosse champanhe. — “Acabamos de receber o Oscar de melhor grupo marginal juvenil.”
Faísca se inclinou, fingindo chorar.
— “Quero agradecer minha mãe que nunca acreditou em mim. E meu pai, que ainda acha que eu faço técnico em TI.”
Neguim tava com uma perna esticada na calçada e a outra em cima do banco.
— “Na moral, eu tô me sentindo respeitado. Tipo artista que sai algemado do Projac.”
Gargalo, sem tirar o cigarro da boca:
— “O melhor de tudo é saber que o nariz do Yuri vai precisar mais ponto que trabalho de TCC.”
Eu dei risada, encostado na parede, braços cruzados, olhando o movimento da rua.
A escola ficava num bairro de classe média alta, mas bastava a gente sentar no meio-fio que o clima mudava. Ficava pesado. Ficava real.
A gente era o aviso ambulante de que o mundo não era só boletim limpo e carro importado.
— “Se o playboy do Yuri tiver vindo hoje,” — falei, abrindo um sorriso torto — “acho que é o dia certo pra ele aprender que o ensino médio não prepara ninguém pra vida.”
— “Nem pra porrada,” — Faísca completou, estalando os dedos.
Foi quando Pulga se levantou, apontando com o queixo:
— “Falando nele…”
O bonde do Yuri vinha descendo a rua. Quatro no total. Tentando fingir que não viram a gente, mas com os passos mais curtos que o normal.
Yuri tava com curativo novo no nariz e o ego remendado, mas ainda rachado.
— “Ih, mano,” — disse Gargalo, já se ajeitando — “parece que a aula prática vai começar.”
— “Alguém avisa que o recreio acabou,” — falou Neguim, sorrindo.
Faísca cuspiu o chiclete no chão, passou a mão na nuca e disse:
— “Vambora, general?”
Eu não respondi.
Só empurrei o boné pra trás, ergui a cabeça e comecei a andar.
Porque o aviso já tinha sido dado.
Agora era hora da cobrança.
E a Vila não falha.
A rua virou passarela.
E a gente desfilou como quem não deve p***a nenhuma a ninguém — menos ainda pra playboy com band-aid no nariz.
Pulga foi o primeiro a abrir a boca, já apontando:
— “Olha lá, o filho do papai vindo com escolta… deve tá vindo buscar o boletim com atestado de covarde.”
Faísca imitou voz fina, batendo palma como tia de grupo de w******p:
— “Ai, gente, protejam meu nenê! Ele tem septo desviado emocional!”
A risada estourou no meio da calçada. Gargalo chegou mais perto, estalando os dedos como quem afia faca:
— “Cadê o herdeiro da porrada? Tô achando que o nariz torto entortou o caminho da escola também.”
Neguim puxou do bolso um pirulito, enfiou na boca com gosto e falou com a voz mole:
— “Cês sabiam que Yuri agora só toma sopa? E só com canudinho. Por causa do trauma.”
Eu ri.
Mas ri daquele jeito que vem de dentro, com raiva e gosto.
Cheguei mais perto, os moleques cercando por trás, cada um com a mesma cara de quem veio cobrar carnê atrasado com juros.
— “E aí, doutorzinho,” — falei direto pro Yuri. — “Hoje veio com fralda ou acha que segura a mijada?”
Ele tentou dar um passo pro lado, mas Faísca bloqueou.
— “Não foge não, bebê conforto. A Vila só quer brincar.”
O amigo do Yuri — um desses moleque de cabelo lambido e tênis branco reluzente — tentou bancar o corajoso:
— “Ó, na moral, cês tão exagerando. Isso já virou perseguição.”
Pulga chegou por trás dele e sussurrou no ouvido:
— “Quer um kit proteção, lindão? Fralda, babador e um terço?”
Eu fiquei frente a frente com o Yuri.
Olhei bem no fundo do olho dele.
E falei baixo.
Cru.
Feito lâmina na carne:
— “Não é perseguição, Yuri. É correção. Tu falou demais. Mexeu com quem não devia. Agora aguenta.”
Ele abriu a boca. Não saiu som.
— “Mas fica tranquilo,” — completei. — “Hoje vai ser educativo. Só umas lembranças pra tu levar pra casa. Tipo souvenir de trauma.”
Neguim abriu o zíper da mochila dele, tirou uma luva preta.
— “Já trouxe o material didático, professor.”
Risos.
O bonde riu.
Yuri tremeu.
A cidade seguiu seu ritmo, como se o caos não tivesse parado ali na calçada.
Mas pra quem olhou…
pra quem sentiu o ar pesar…
Deu pra entender:
A gente não era aluno.
A gente era sentença.
E Yuri tava prestes a aprender que com a Vila… não tem segunda chamada.
Não teve tempo de reação.
O primeiro soco foi no meio do estômago. Seco, firme, do tipo que corta o ar e dobra o corpo. Yuri desceu igual prédio implodido, tentando puxar fôlego que não vinha.
O segundo foi no rosto.
Pah.
A cabeça dele girou no impacto, o curativo caiu e o sangue voltou a sair. Foi bonito de ver, confesso. Tipo justiça poética, só que com punho e sem poesia.
Faísca segurou ele pelo colarinho antes do tombo completo.
— “Fica de pé, reizinho. A aula tá só começando.”
Pulga rodou em volta, igual abutre:
— “Cês tão vendo isso? Tão vendo? Isso aqui é cultura de quebrada. Patrimônio histórico da Vila.”
O terceiro soco foi o que apagou. Na têmpora.
Yuri caiu. Pesado. Braço mole, perna tremendo.
Eu me agachei devagar, peguei ele pela camiseta toda suja, ergui só o suficiente pra falar no ouvido:
— “Se tu chegar perto da Melissa de novo... não vai ser porrada que tu vai ganhar.”
Apertei mais.
— “Vai ser desaparecimento. Vai ser enterro sem corpo. Vai ser tua mãe no IML tentando adivinhar se aquele pedaço é teu.”
Soltei.
O corpo caiu no chão igual saco vazio.
Os outros três que estavam com ele não se mexeram. Não piscaram. Um deles chorava. Literalmente. Chorava em silêncio, encarando o chão como se buscasse um buraco pra enfiar a alma.
Neguim assobiou. Gargalo acendeu o cigarro. Pulga pegou a Coca, deu um gole e arrotou.
Eu estalei o pescoço, limpei a mão na bermuda e disse:
— “Bora, tropa.”
A gente virou as costas com a moral nas alturas e o barulho das risadas enchendo a rua.
Faísca ainda gritou:
— “Alguém chama o SAMU! O boletim do Yuri não tá bom não!”
O bonde gargalhou.
E eu?
Eu andei de cabeça erguida.
Porque ali, naquele chão manchado de sangue, ficou mais que um recado.
Ficou a assinatura da Vila.
E ninguém apaga.