capítulo 3 Murilo

1214 Words
Narrado por Murilo Ferreira Dois dias de suspensão e a gente já tava tratando como feriado nacional. Ficamos ali, do lado de fora da escola, largado na mureta, feito tropa de elite do fundão — só que sem farda, sem filtro e com riso solto de quem já fez merda e faria de novo. Pulga tava com um salgadinho aberto no colo e uma Coca dois litros entre as pernas. — “Parabéns, senhores,” — ele ergueu o copo plástico como se fosse champanhe. — “Acabamos de receber o Oscar de melhor grupo marginal juvenil.” Faísca se inclinou, fingindo chorar. — “Quero agradecer minha mãe que nunca acreditou em mim. E meu pai, que ainda acha que eu faço técnico em TI.” Neguim tava com uma perna esticada na calçada e a outra em cima do banco. — “Na moral, eu tô me sentindo respeitado. Tipo artista que sai algemado do Projac.” Gargalo, sem tirar o cigarro da boca: — “O melhor de tudo é saber que o nariz do Yuri vai precisar mais ponto que trabalho de TCC.” Eu dei risada, encostado na parede, braços cruzados, olhando o movimento da rua. A escola ficava num bairro de classe média alta, mas bastava a gente sentar no meio-fio que o clima mudava. Ficava pesado. Ficava real. A gente era o aviso ambulante de que o mundo não era só boletim limpo e carro importado. — “Se o playboy do Yuri tiver vindo hoje,” — falei, abrindo um sorriso torto — “acho que é o dia certo pra ele aprender que o ensino médio não prepara ninguém pra vida.” — “Nem pra porrada,” — Faísca completou, estalando os dedos. Foi quando Pulga se levantou, apontando com o queixo: — “Falando nele…” O bonde do Yuri vinha descendo a rua. Quatro no total. Tentando fingir que não viram a gente, mas com os passos mais curtos que o normal. Yuri tava com curativo novo no nariz e o ego remendado, mas ainda rachado. — “Ih, mano,” — disse Gargalo, já se ajeitando — “parece que a aula prática vai começar.” — “Alguém avisa que o recreio acabou,” — falou Neguim, sorrindo. Faísca cuspiu o chiclete no chão, passou a mão na nuca e disse: — “Vambora, general?” Eu não respondi. Só empurrei o boné pra trás, ergui a cabeça e comecei a andar. Porque o aviso já tinha sido dado. Agora era hora da cobrança. E a Vila não falha. A rua virou passarela. E a gente desfilou como quem não deve p***a nenhuma a ninguém — menos ainda pra playboy com band-aid no nariz. Pulga foi o primeiro a abrir a boca, já apontando: — “Olha lá, o filho do papai vindo com escolta… deve tá vindo buscar o boletim com atestado de covarde.” Faísca imitou voz fina, batendo palma como tia de grupo de w******p: — “Ai, gente, protejam meu nenê! Ele tem septo desviado emocional!” A risada estourou no meio da calçada. Gargalo chegou mais perto, estalando os dedos como quem afia faca: — “Cadê o herdeiro da porrada? Tô achando que o nariz torto entortou o caminho da escola também.” Neguim puxou do bolso um pirulito, enfiou na boca com gosto e falou com a voz mole: — “Cês sabiam que Yuri agora só toma sopa? E só com canudinho. Por causa do trauma.” Eu ri. Mas ri daquele jeito que vem de dentro, com raiva e gosto. Cheguei mais perto, os moleques cercando por trás, cada um com a mesma cara de quem veio cobrar carnê atrasado com juros. — “E aí, doutorzinho,” — falei direto pro Yuri. — “Hoje veio com fralda ou acha que segura a mijada?” Ele tentou dar um passo pro lado, mas Faísca bloqueou. — “Não foge não, bebê conforto. A Vila só quer brincar.” O amigo do Yuri — um desses moleque de cabelo lambido e tênis branco reluzente — tentou bancar o corajoso: — “Ó, na moral, cês tão exagerando. Isso já virou perseguição.” Pulga chegou por trás dele e sussurrou no ouvido: — “Quer um kit proteção, lindão? Fralda, babador e um terço?” Eu fiquei frente a frente com o Yuri. Olhei bem no fundo do olho dele. E falei baixo. Cru. Feito lâmina na carne: — “Não é perseguição, Yuri. É correção. Tu falou demais. Mexeu com quem não devia. Agora aguenta.” Ele abriu a boca. Não saiu som. — “Mas fica tranquilo,” — completei. — “Hoje vai ser educativo. Só umas lembranças pra tu levar pra casa. Tipo souvenir de trauma.” Neguim abriu o zíper da mochila dele, tirou uma luva preta. — “Já trouxe o material didático, professor.” Risos. O bonde riu. Yuri tremeu. A cidade seguiu seu ritmo, como se o caos não tivesse parado ali na calçada. Mas pra quem olhou… pra quem sentiu o ar pesar… Deu pra entender: A gente não era aluno. A gente era sentença. E Yuri tava prestes a aprender que com a Vila… não tem segunda chamada. Não teve tempo de reação. O primeiro soco foi no meio do estômago. Seco, firme, do tipo que corta o ar e dobra o corpo. Yuri desceu igual prédio implodido, tentando puxar fôlego que não vinha. O segundo foi no rosto. Pah. A cabeça dele girou no impacto, o curativo caiu e o sangue voltou a sair. Foi bonito de ver, confesso. Tipo justiça poética, só que com punho e sem poesia. Faísca segurou ele pelo colarinho antes do tombo completo. — “Fica de pé, reizinho. A aula tá só começando.” Pulga rodou em volta, igual abutre: — “Cês tão vendo isso? Tão vendo? Isso aqui é cultura de quebrada. Patrimônio histórico da Vila.” O terceiro soco foi o que apagou. Na têmpora. Yuri caiu. Pesado. Braço mole, perna tremendo. Eu me agachei devagar, peguei ele pela camiseta toda suja, ergui só o suficiente pra falar no ouvido: — “Se tu chegar perto da Melissa de novo... não vai ser porrada que tu vai ganhar.” Apertei mais. — “Vai ser desaparecimento. Vai ser enterro sem corpo. Vai ser tua mãe no IML tentando adivinhar se aquele pedaço é teu.” Soltei. O corpo caiu no chão igual saco vazio. Os outros três que estavam com ele não se mexeram. Não piscaram. Um deles chorava. Literalmente. Chorava em silêncio, encarando o chão como se buscasse um buraco pra enfiar a alma. Neguim assobiou. Gargalo acendeu o cigarro. Pulga pegou a Coca, deu um gole e arrotou. Eu estalei o pescoço, limpei a mão na bermuda e disse: — “Bora, tropa.” A gente virou as costas com a moral nas alturas e o barulho das risadas enchendo a rua. Faísca ainda gritou: — “Alguém chama o SAMU! O boletim do Yuri não tá bom não!” O bonde gargalhou. E eu? Eu andei de cabeça erguida. Porque ali, naquele chão manchado de sangue, ficou mais que um recado. Ficou a assinatura da Vila. E ninguém apaga.
Free reading for new users
Scan code to download app
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Writer
  • chap_listContents
  • likeADD