capítulo 2 Continuação

1436 Words
Capítulo 2 – A primeira vez que ela me olhou como se eu não fosse monstro Narrado por Murilo Ferreira Ela ainda tava no chão. Não caída, mas encolhida. O lanche amassado no canto, a mochila aberta, o cabelo cobrindo metade do rosto como se quisesse se esconder do mundo. E com razão. O mundo sempre foi c***l com quem não sabia bater de volta. Eu podia ter ido embora. Já tinha feito o que fiz. Já tinha mostrado pra escola inteira que Murilo Ferreira não era palhaço. Mas alguma coisa me travou. Talvez o jeito como ela segurava o próprio braço, como se quisesse desaparecer. Ou o fato de que, mesmo depois de tudo, ela não tinha derramado uma lágrima. Tava ali. Firme. Silenciosa. Fodida por dentro. Cheguei devagar. Devagar pra mim, né. Que sou um trator até quando respiro. — “Ei.” Ela levantou o rosto devagar. Os olhos castanhos, assustados, pararam nos meus. — “Tá bem?” Ela assentiu. Mas o corpo dela tremia. Me abaixei no mesmo nível. E pela primeira vez, reparei nela de verdade. A menina que todo mundo fingia que não via. A gordinha da escada. A que todo dia tava sozinha. A que nunca revidava. A que ninguém defendia. — “Te machucaram?” — perguntei, a voz mais baixa do que o normal. Não queria assustar, mas também não sabia ser suave. — “Não... quer dizer… não muito.” — a voz dela era quase um sussurro. Tava envergonhada. Mas mais que isso, tava desconfiada. Como se esperasse que eu fosse rir também. Eu não ri. Estendi a mão. Ela hesitou. Demorou uns segundos, mas pegou. A mão dela era quente. Pequena. Tremendo levinho. Ajudei ela a levantar. Soltei logo depois. Não porque quis, mas porque vi nos olhos dela que toque demais era invasão. — “Obrigada…” — ela disse, olhando pro chão. — “Não precisa agradecer.” — “Mas eu quero.” Silêncio. Ela mordeu o lábio e completou, sem me olhar: — “Ninguém nunca… ninguém nunca fez isso por mim.” Minha garganta travou. Porra. O mundo era mesmo podre. E ela… Ela era prova viva. — “Eles não vão encostar em tu de novo.” — falei. Ela finalmente me olhou. Ali. Naquele instante. Foi diferente. Não tinha medo. Tinha surpresa. Como se ela estivesse tentando entender por que um cara como eu — cheio de cicatriz, olhar pesado, fama de problema — tinha parado por ela. — “Qual teu nome mesmo?” — perguntei. — “Melissa.” — “Bonito.” Ela sorriu de leve. Aquele sorriso rápido, sem confiança. Mas foi. E foi real. Eu me afastei, já ouvindo os passos de inspetor vindo longe. Antes de virar o corredor, olhei pra ela mais uma vez. Melissa tava parada. De pé. Com a mochila nas costas. E os olhos em mim. Não disse mais nada. Mas ali, naquele silêncio curto, nasceu uma coisa que nem o tempo, nem a distância, nem o ódio ia conseguir apagar. E eu? Segui com o peito cheio. De quê? Nem sabia ainda. Só sabia que Melissa não era invisível. Não mais. (...) No dia seguinte, a gente chegou na escola como quem volta de guerra: rindo alto, esparramado pelos corredores, e com a fama renovada. Pulga foi o primeiro a soltar: — “Mano, tu viu a cara do Yuri quando o nariz fez crac? Parecia cena de filme.” Faísca gargalhava desde o portão. — “Eu quase gozei de rir, viado. Sério. Foi tipo: pá! e o sangue veio com tudo. Melhor aula de biologia que já tive.” Gargalo completou, com cigarro apagado no canto da boca: — “E o detalhe: tu nem precisou repetir. Um soco só. Letal. Cirúrgico.” Neguim me bateu no ombro: — “Murilo, meu parceiro… tu escreveu teu nome com sangue no recreio ontem. Agora ninguém te chama de favelado. Chamam de problema.” — “f**a-se,” — rebati, rindo. — “Se fosse por mim, Yuri virava matéria da aula de anatomia. Abro no meio.” A gente entrou na sala rindo, já atrasado. Os riquinhos fizeram silêncio. Yuri não tava. Óbvio. Deve ter passado a noite chorando com o nariz torto no hospital particular do papai. Mas a paz não durou muito. Minutos depois, a porta abriu com um estalo seco. Era o coordenador. Óculos torto, cara de cu e aquela voz que acha que impõe respeito. — “Murilo Ferreira. Lucas da Silva Ramos. Carlos Eduardo Lima. Jonathan Souza Rocha. Vinícius Andrade. Diretoria. Agora.” A sala inteira virou pra ver o desfile. Faísca — que até então era só Faísca — arregalou os olhos, teatral: — “Eita p***a. Soltaram nossos RG tudo.” Pulga abriu um sorriso safado: — “Aí, galera, prazer: Vinícius Andrade. Vê se não me processa depois.” Neguim se esticou na cadeira, lento, antes de levantar: — “A gente faz o quê, né? Um dia você tá na escola, no outro tá sendo chamado pelo nome de batismo. Vida é essa montanha-russa.” Gargalo resmungou com a calma de quem já esperava: — “Vamos pagar pelo que o Murilo fez, né?” — “De novo,” — Faísca completou, levantando e arrumando a gola da camisa amassada. — “Já tô até criando milha no inferno por acompanhar esse desgraçado.” Eu levantei por último. Calmo. Deboche estampado na cara. — “Vambora, então. Se é pra levar esporro, que seja em conjunto. Família unida sofre junta.” O coordenador bufou. A gente saiu em fila, tipo time indo bater pênalti. No corredor, Pulga cochichou: — “Tu vai ver, vai ter papai de riquinho lá. Já deve tá espumando. Aposto que quer expulsão.” Neguim deu de ombro: — “Expulsar o Murilo? E perder a mensalidade do Aderbal Ferreira? Eles podem tudo… menos isso.” Faísca completou: — “Pior que é verdade. O nome do pai dele vale mais que os boletos dessa escola inteira.” Gargalo soltou, seco: — “Mas não vale o respeito que a gente mete com medo.” Entramos na diretoria. Do outro lado da mesa, o pai do Yuri tava lá. Terno, gravata, cara vermelha, dedo apontando pro mundo. O diretor tentava equilibrar o tom. O clima? Já tava fervendo. E o nome Murilo Ferreira… prestes a virar lenda naquele lugar. A sala da diretoria tava com aquele cheiro de desinfetante e tensão. O pai do Yuri tava em pé, esbravejando feito político em véspera de eleição: — “Eu EXIJO providências! Esse marginal agrediu meu filho! Isso é INACEITÁVEL! O nariz do Yuri quebrou!” O diretor tentava intervir, suando mais que tampa de marmita: — “Senhor Augusto, eu entendo, mas…” Mas ninguém escutava. A gente tava sentado em fila, igual aluno do fundão em excursão. Só que com mais pose. Faísca girava a caneta nos dedos, como se estivesse num campeonato invisível. Gargalo encarava o relógio, entediado. Pulga desenhava um p***o no canto do caderno. Neguim só sorria de canto. Como quem já sabe o final. Eu? De braços cruzados. Perna esticada. Sem um pingo de arrependimento. A diretora entrou. Vestido florido, cara de quem tava tentando manter a postura de autoridade. Ela respirou fundo e soltou: — “Murilo, Jonathan, Lucas, Carlos Eduardo e Vinícius…” Todo mundo se ajeitou, fingindo respeito. Pulga ainda escondeu o desenho. — “…dois dias de suspensão. E um aviso formal no histórico. Esperamos que isso não se repita.” Silêncio. Aí Faísca sussurrou: — “Só isso?” Neguim respondeu baixo: — “Eu tava crente que vinha expulsão…” Pulga: — “Tô decepcionado. Já tinha até ensaiado discurso dramático de despedida.” Gargalo completou: — “Dois dias de folga. Cês tão me punindo ou me mimando?” Eu levantei devagar. Olhei pra diretora com aquele sorrisinho torto. — “Valeu, diretora. Vou aproveitar pra colocar os deveres em dia.” Risos contidos. O pai do Yuri quase infartou. — “ISSO É UM ABSURDO! UM CRIME! UM CRIMINOSO SENDO MIMADO!” Eu me aproximei da porta, mas não sem antes passar bem perto do Yuri, que assistia tudo de canto, com um curativo no nariz e o ego estilhaçado. Inclinei o corpo até perto da orelha dele e sussurrei: — “Tá pego na saída, babaca.” O moleque empalideceu. Pulga, Faísca, Gargalo e Neguim saíram atrás de mim como se fosse desfile. E mesmo suspensos… A gente saiu da diretoria como rei em dia de coroação.
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