Capítulo 1 Murilo 10 anos antes ...

1731 Words
Capítulo 1 – Antes do vulgo, antes da guerra Narrado por Murilo Ferreira, 19 anos Eu tinha 19. Raiva no sangue. Deboche na língua. E nenhuma intenção de seguir regra. Filho de Aderbal e Jussara Ferreira, dois nomes que o morro respeitava mais do que político em campanha. Cresci ouvindo que eu ia herdar tudo. Mas ninguém disse que pra isso, eu ia ter que estudar. Meu pai, Aderbal, meteu a grana suada numa escola da cidade. Particular. Uniforme caro, refeitório com suco de verdade, e aluno com sobrenome que abre porta. — “Tu vai aprender com eles, Murilo. Vai saber o que é deles pra depois roubar do jeito certo.” Foi o que ele disse. E eu fui. Mas fui com meu bonde. Cinco moleques. Cinco bombas-relógio de jaqueta larga e olhar entortado. Neguim – o mais velho da quebrada. Vivia de riso frouxo e ódio guardado. Gargalo – magrelo, rápido e afiado. Era o que passava despercebido… até entortar a lâmina. Faísca – imprevisível. Já chegou na escola batendo em dois. Só precisava de um olhar torto pra acender. Pulga – zoeiro, linguarudo, vivia expulso e sempre voltava. Sabia os segredos da escola inteira. E eu. Murilo. Sem vulgo ainda. Mas com a fama de quem não abaixava a cabeça pra ninguém. A gente não estudava. A gente dominava presença. Invadia o pátio como quem marca território. Enquanto os filhotes de condomínio falavam de intercâmbio e festa no clube, a gente tava na escada de trás zoando professor, fumando escondido e fazendo aposta de quem ia ser expulso primeiro. Não era sobre nota. Era sobre impor respeito num lugar que achava que a gente era piada. E se riram de nós no primeiro dia, no segundo ficaram em silêncio. Porque foi quando Faísca arremessou a mochila pela janela no meio da aula e perguntou se alguém ali tinha coragem de rir de volta. Ninguém teve. O diretor vivia engasgando meu sobrenome. "Murilo F...Ferreira, na minha sala." Eu entrava de cabeça erguida e saía dando risada. Eles sabiam. Não podiam encostar. Meu pai bancava a mensalidade. Mas foi o meu nome que bancou o medo. A gente tava largado na escada de trás do bloco C, onde ninguém passava. Era nossa trincheira. O único lugar da escola onde a gente podia ser quem era sem ter que fingir que dava a mínima. Ali não tinha uniforme engomado. Não tinha tom de voz controlado. Ali era palavrão, fumaça e verdade. Neguim batia o isqueiro contra o joelho, tentando acender o cigarro com uma mão só. Pulga jogava papel amassado nos pombos do pátio, apostando qual fugia primeiro. Faísca soltava riso por qualquer merda. E Gargalo fumava como se o pulmão tivesse prazo de validade. Eu tava sentado no degrau mais alto, olhar pro nada, cabeça fervendo. — “Cara, eu tenho DEZENOVE ANOS...” — falei, meio rindo, meio puto. — “E o Aderbal ainda me trata como se eu usasse cueca do Ben 10.” Faísca gargalhou alto. — “Mas tu usa mesmo, não usa?” — “Uso tua mãe, filho da puta.” — rebati, automático. A risada estourou entre a gente. — “Tu é um lixo, Murilo... Mas é o nosso lixo.” — ele falou, batendo no peito, teatral. Pulga apontou pro uniforme dele, amassado, com um botão faltando. — “Olha isso, mano. A escola bota a gente de social, achando que vai transformar favelado em CEO.” — “Transforma p***a nenhuma,” — Faísca emendou — “Só deixa o crime mais educado. Tipo: ‘com licença, posso te assaltar com classe?’” Rimos de novo. Alto. Pra quem visse de longe, parecia só um bando de moleque fazendo bagunça. Mas ali tinha mais. Tinha fúria disfarçada de piada. Tinha história nos olhos. — “Na moral,” — falei, esfregando a mão no rosto. — “Aderbal acha que me jogando aqui vai me salvar de mim mesmo.” Gargalo soltou sem olhar: — “Teu pai tem medo do que tu vai virar.” — “Ele tem é medo de eu virar ele. Só que pior.” Silêncio. Daquele tipo que diz tudo. Faísca chutou uma latinha caída no canto da escada. — “Pior p***a nenhuma. Tu já é. Só falta assumir.” Neguim assentiu. — “Tu é o único aqui que o nome pesa antes de entrar. A gente faz bagunça. Tu, quando abre a boca, faz regra.” — “Regra é o c*****o,” — retruquei. — “Só sei que se eu tiver que aguentar mais um professor falando de ética ou planejamento de carreira, eu juro que mijo na mesa dele.” Pulga riu. — “Faz isso não, Murilo. Vai traumatizar os boy. Eles tão aprendendo a investir na bolsa, não a lidar com quem já nasceu falido.” — “Falido o cu,” — Faísca retrucou. — “A gente é rico de vivência. E de trauma. Tá valendo mais que MBA.” Pulga se espreguiçou e apontou com o queixo pro pátio, lá embaixo. — “Cês já viram aquela gordinha que fica sempre no canto, perto do refeitório? Todo dia ali, sozinha.” Faísca fez cara de quem lembrava. — “A que anda com um fichário roxo e a cara de quem quer sumir?” Neguim estalou os dedos. — “Essa aí mesmo. Parece que tá fugindo do mundo.” Eu soltei, sem pensar: — “Melissa.” Os quatro viraram pra mim ao mesmo tempo. Silêncio. Do tipo que pesa. Pulga foi o primeiro a quebrar, arregalando os olhos. — “Eita. O malandro sabe o nome?” Faísca encostou no meu ombro, rindo: — “Pera aí… como tu sabe o nome da mina se ela nem estuda na mesma turma?” Gargalo, sempre direto: — “Tá stalkeando, Murilo?” Neguim caiu na gargalhada, apontando o cigarro meio apagado pra mim: — “Gamou na gordinha, malandro? Aí não, p***a!” Revirei os olhos, tentando disfarçar. — “Vai se f***r, mano. Só ouvi alguém chamar ela no pátio outro dia. Gravei o nome, só isso.” Faísca riu, debochado. — “Gravou o nome, mas não sabe nem o da professora de sociologia. Interessante…” Pulga bateu palminha, zoando: — “Ele grava o nome da gostosa do refeitório, da gordinha solitária, da faxineira… menos o que tem na lousa.” Gargalo soltou: — “Tu nunca falou de nenhuma mina da escola. Aí solta ‘Melissa’ com essa naturalidade? Tá apaixonado, porra.” Neguim, rindo: — “Murilo romântico é o que faltava. Daqui a pouco tá mandando bilhetinho com coração.” — “Vai tomar no cu vocês tudo.” — retruquei, me levantando. — “Falei o nome, não pedi em casamento.” Faísca imitou: — “Melissa… ah, Melissa…” — e todos caíram na gargalhada de novo. Eu dei o dedo do meio, rindo junto, mas com a mente longe. Melissa. Tinha alguma coisa nela que prendia. Fosse a solidão, o jeito que não olhava pra ninguém, ou o fato de que parecia deslocada… Como se sentisse o mesmo que a gente, mas sem gritar. [...] Me afastei dos caras, descendo os degraus devagar. Tava cansado de ouvir risada, de fingir que tava tudo bem, de esconder a p***a do vulcão que morava dentro de mim. A escola tava em silêncio, aquele silêncio tenso de intervalo onde todo mundo finge normalidade enquanto esconde os podres. Foi quando ouvi. — “Aí, olha a baleia se alimentando.” A voz veio da escada do bloco velho, atrás da quadra. Virei pro lado, automático. — “Sai da escada, Melissa, tá balançando tudo.” Melissa. Ali, encolhida num canto, segurando um sanduíche todo amassado. Tremendo. Tentando desaparecer. Fiquei parado por um segundo. E vi. Vi quando ela se levantou. Vi o empurrão covarde. Vi o sanduíche caindo. Vi o olhar dela, baixo, doído, queimando vergonha. Vi quando Yuri, aquele filhinho de papai de merda, encostou nela de novo. — “Nem é tu ser feia. É tu ser nada.” Foi aí que o sangue subiu. Desci os degraus como se o chão me chamasse. Yuri ia empurrar ela de novo. Mas não deu tempo. Meu punho encontrou as costas dele com tudo. E ele foi pro chão. Seco. Feio. Os outros dois recuaram. E eu fiquei ali. Com o coração socando o peito. Com o inferno inteiro nos olhos. — “Encosta de novo nela, Yuri. Encosta.” A voz saiu sem esforço. Mas o peso era de tiro. Yuri levantou. Tremendo. Sujo. Olhando pra mim como quem via algo que não entendia. — “Fica na tua, Murilo. Não é problema teu.” — “Agora é.” Ele riu. Fraco. Nervoso. — “Vai bancar o herói por causa de uma gorda inútil?” Me aproximei devagar. Calmamente. — “Fala mais uma e eu te quebro, Yuri.” — “Tu se acha fodão, né? Porque tem cara de bandido e anda com aquele bonde da Vila? Tu não mete medo em ninguém, Murilo.” Então ele fez. O erro. Me empurrou no peito. Seco. Insolente. Burro. Eu ri. Não um riso leve. Foi aquele riso que vem de dentro. Do lugar escuro. Do lugar onde guardo tudo o que nunca pude dizer. — “É… tu é burro mesmo.” O soco veio logo depois. E o barulho que fez... Ah, o barulho. CRAC. Nariz quebrado. Sangue escorrendo. Grito abafado. Yuri caiu como boneco de pano. Gemendo, chorando, se contorcendo. — “Tu fala demais, Yuri. Um dia essa boca ia te f***r. Hoje foi só o começo.” Ele tentou levantar. Tonto. Tropeçando. — “Tu tá fudido… meu pai vai saber…” — “Então corre, mimadinho. Leva a p***a do sangue junto. E vê se teu pai tem peito pra encarar alguém de verdade.” Ele sumiu. E o corredor ficou mudo. Melissa me olhava como se tivesse visto coisa demais. E eu fiquei ali, encarando ela de volta. Sem dizer nada. Sem saber por quê, mas sabendo que precisava. Proteger. Ferir quem machuca. Mesmo que eu também fosse uma ferida aberta. Aquele dia virou coisa grande. Não por causa da briga. Mas porque, pela primeira vez, eu vi alguém que sangrava por dentro como eu.
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