Mais uma vez, o toque do telefone quebra a minha concentração, mas desta vez é o nome de Luis que ilumina a tela.
— O que está acontecendo? O que você ouviu da sua casa, os meus planos homicidas para matar o seu segundo? Eu digo a título de saudação.
— Não…Ele responde surpreso, sem saber bem o que dizer. — Eu estava te ligando porque estou preocupado com você, menina.
— Você não precisa... eu estou bem. Eu asseguro a ele sem muita convicção.
— Tudo bem se você não estiver, Maria. É melhor aceitar as nossas limitações do que se esconder atrás da negação. Você já sabe que, se o fizer, corre o risco de continuar usando técnicas que o impedem de enfrentar a realidade e os seus problemas.
— Era só o que me faltava. Luis está lendo o que Sara escreveu, e ela está ouvindo.
Perfeito, hoje faço terapia por telefone.
— Boa noite para você também, Sara. Eu protesto emburrada.
Eu sei que se eu continuar fugindo não sentir os sentimentos que foram despertados com o retorno de Pablo.
— Maria…Sara diz o meu nome como um aviso. — Quer se encontrar uma tarde desta semana e conversar com mais calma?
— Eu não preciso de uma sessão, Sara. Eu tenho tudo sob controle.
— Tem certeza? Depois do que aconteceu esta manhã, eu não consideraria a situação muito controlada...
— Você é um informante, Luis! Eu grito com ele como se ele fosse uma criança de cinco anos.
— Eu tinha que te contar, garota. Você precisa falar com Sara e mais depois…, depois…
— Depois de quê, Luís? Pergunto com o coração na garganta sem saber o que ele quer dizer.
— A defensora pública do ex-namorado da sua companheira apresentou uma declaração ao juiz, alegando que você o agrediu primeiro e que também agrediu um policial quando ele veio no seu socorro.
— O filho da put*a vai ser um mentiroso! E agora, o que acontecer?
— Amanhã você tem que se apresentar na Central de Polícia, temos que tomar o seu depoimento. Não precisa de advogado nem nada. Ele fala apressado, tentando não ser interrompido. Mas para que a sua defesa não se prenda a um formalismo, temos que colocar por escrito a sua versão dos fatos dentro de uma delegacia.
Só de pensar em entrar numa delegacia de polícia de novo as minhas pernas começam a tremer.
— Por*ra, não aguento mais! O passado está se tornando presente demais.
— Maria, se você recusar, eles vão libertar ele, pense no risco que isso implica para a sua colega de trabalho.
— Mer*da! Que horas eu tenho que estar lá?
— A primeira hora da manhã. Pablo será quem tomará a sua declaração, mas não se preocupe, estarei com você também.
— Ótimo, isso está melhorando a cada segundo.
— María, posso ir com você se quiser. Sara oferece.
— Obrigado, Sara, você não precisa fazer isso, está tudo bem. Minto para ela.
A última coisa que quero amanhã, ao sair da delegacia, é tomar café da manhã com ela, obrigando-me a verbalizar todas as emoções odiosas que estão tomando conta de mim aos poucos.
— Mas…
— Mas nada, Sara... prometo que nos falamos outro dia.
— Sexta-feira. Ela aponta, e o tom da sua voz não deixa espaço para uma resposta. Realizo um encontro de assertividade e auto-conhecimento s*x*ual na s*x shop da Lola. Quero ver você lá e a Lola também, ela diz que vocês não se falam há meses.
— Ótimo, frentes mais abertas.
Concordo com os dois pedidos e depois de desligar, a sensação de sufocamento na minha própria casa só aumenta. Não posso ficar aqui a noite toda ou vou enlouquecer. É hora de recuperar o controle dos meus sentimentos e decidida a alcançá-lo, tomando um banho, me arrumando com cuidado e pedindo um táxi para o único lugar que me fará colocar tudo em ordem que a volta de Pablo virou de cabeça para baixo.
É hora de lembrar quem eu sou.
É hora de remover o poder que o passado tem sobre mim.
É hora de aceitar que a solidão é minha aliada... Minha única amiga verdadeira.
Saindo do táxi, fico na calçada em frente ao Delirio's, olhando para o letreiro de néon com o seu nome escrito em itálico.
Já passou mais de um ano desde que pus os pés neste lugar e quero, para todos os efeitos, que assim continue. Hoje ninguém saberá que voltei, principalmente Lola. Nem pretendo cumprimentá-la, farei isso na sexta-feira, mesmo que m*al possa esperar. Esta noite só entrarei calndestinamente.
Sara tem razão, me distanciei de Lola e fiz isso de propósito. Foi culpa de Enzo, ou minha por insistir que fôssemos ao Delirio uma noite. Eu achei que o meu então namorado tinha uma mente aberta que se fechou assim que ele entrou na sala comunal.
Lola já previu como o nosso relacionamento terminaria, mas eu não quis ouvi- la. O filho do Enzo já morava com a gente e eu tinha gostado do pequenino. Fiz o que prometi a mim mesmo anos atrás que nunca mais faria, coloquei as necessidades dos outros antes das minhas e foi assim que acabei.
Deixei de vê-la tantas vezes para não ouvir o que ela, como boa amiga, tinha a me dizer. Ela me ajudou nos meus piores momentos e, junto com a Sara, me ensinaram a recuperar o poder que a vida me tirou e a nunca mais deixar ninguém me fazer sentir pequena e insignificante.
Ela vai se decepcionar comigo. Eu havia voltado aos velhos hábitos que estavam me levando de cabeça para aquele ponto sem volta.
Vou falar com ela, preciso disso... preciso que ela me lembre de quem posso me tornar. Mas esta noite não, hoje continuarei alheio a tudo.
Saúdo com um abraço cheio de carinho o gigante Jimmy, o porteiro que parece um motociclista do Papai Noel, que trabalha aqui há muitos anos.
— Chocolate, olhos felizes! Ele exclama entusiasmado, me abraçando de volta. Você escolheu a melhor noite para vir. Temos uma salada mista com músicos de jazz tocando ao vivo. Ele me assegura, explicando que o tema desta noite centra-se na mistura de casais e sócios do clube, ativos, com os outros clientes que gostam de ver apenas.
— Só a laranja hoje, Jimmy. Estou um pouco enferrujada, é melhor ir aos poucos. Brinco, piscando para ele e devolvendo a pulseira de borracha amarela que me identificava como solteira aberta a relações homossexuais.
No Delirio existe um código com pulseiras coloridas que permitem identificar a que o outro se emprestaria sem precisar pedir. Fazia parte do jogo, da morbidez de buscar aquela peça que combinasse com você entre todos os participantes.
Os casais foram divididos em três cores: verde para aqueles em que ambos aceitavam relacionamentos bissexuais e heterossexuais, vermelho para casais que só queriam ser vistos e, por fim, a pulseira azul identificava aqueles que só queriam relacionamentos com pessoas do mesmo s*x*o.