Só até o sol nascer.
Só até que os raios de luz iluminem a praça onde dançam as lembranças daqueles dias... Em que sentir não era pecado, em que amar não era crime.
Ao amanhecer, baixo a guarda e deixo as cicatrizes que o passado tatuou na minha pele respirar e doer como no primeiro dia.
Aqui, encostada ao parapeito do terraço da casa que me viu crescer, dou uma tragada no meu charuto, observando como a centenária oliveira do parque, que presenciou toda a minha história, sai da escuridão para riscar, com suas folhas, a luz incipiente do sol.
Como eu, aquela oliveira nunca mais foi a mesma. O verde das suas folhas não tem mais a força de antes e o seu tronco perdeu a maciez do seu Córtex.
Agora parece maçante e áspero, como eu…
É o que os golpes da vida te ensinam. Que, para sobreviver, você deve ser dura e insensível.
Uma grande lição que eu havia esquecido novamente.
— Um dia vou botar fogo naquela árvore estú8pida. Ouço alguém dizer atrás de mim.
— Droga, Marta! Você vai me matar com um ataque cardíaco.
— O câncer de pulmão mata você primeiro. Ela arrisca, apontando para o cigarro meio-fumado pendurado nos meus dedos.
— Por ser dona de tabacaria, você é muito melindrosa com o assunto tabaco.
— E você, para não ficar triste com a separação do Enzo, parece uma alma perdida.
— Não é pelo Enzo.
— Eu sei… É por causa do Pablo. Sempre que você olha para aquela oliveira é por causa dele.
— É por isso que você quer queimá-la?
— Não. Ela balança a cabeça enquanto sai para o terraço comigo. — Mas eu odeio aquela árvore. Ainda posso ler o que está escrito no seu tronco. Ela ri quando me vê levantar uma sobrancelha. — Propriedade da gorda e da anã. O filho da pu*ta do Juani esculpiu conscienciosamente com a sua navalha.
Tusso engasgado com a fumaça da última baforada e começo a rir daquele jeito peculiar, que acrescentou outro complexo à minha complicada adolescência. Ser a moleca do grupo que ria feito burro não era a coisa mais popular da época.
Porque, sim, eu era a gorda a que se referia aquele insulto e Marta era a anã.
Nós duas éramos a piada durante toda a adolescência. Pelo menos até a Melissa entrar no nosso grupo, que, sendo irmã da dona do bar badalado do bairro, facilitou a nossa existência.
Mas antes da chegada dela, ninguém queria brincar com nos duas, muito menos ser nossa amiga. E tudo porque eu já tinha alguns quilos sobrando, e Marta estava faltando alguns centímetros.
Então, a princípio, Marta e eu formamos o nosso grupo de dois.
A garota acima do peso, que se vestia com roupas masculinas para tentar esconder os seus p****s enormes, era a melhor amiga de uma garota com acondroplasia leve que.
Nós nos tornamos inseparáveis pela força e com o tempo, Marta tem sido a voz da consciência que parou de funcionar para mim anos atrás.
— Vou acompanhá-la à tabacaria antes de ir trabalhar.
— Não preciso de guarda-costas, sei ir sozinha. Ela protesta ofuscada acreditando que eu tento superprotegê-la.
— Por favor, volte para sua casa, amarre José ao pé da cama e descarregue o seu lodo r**m com ele. Você é mais insuportável do que eu e isso quer dizer muito.
— É isso que eu quero, rainha! Ela exclama. — Mas vou dormir no seu sofá até ter certeza de que está tudo bem aqui em cima. Diz ela, apontando para minha cabeça. Prometi a Melissa que seguiria o manual de prevenção de recaídas e nós duas sabemos o que acontece se eu não o seguir ao pé da letra. Não estou com vontade de ouvir os seus sermões. Além disso, você ouviu Alejandro Sanz novamente.
Fo*da-se Melissa e a sua po*rra de manual de atuação. Não me livro das suas neuras nem a milhares de quilômetros de distância em plena lua de mel. Eu tenho que falar com o pedaço de Cameron para que ele possa mantê-la ocupada.
— Vamos ver, vamos por partes. Me defendo apagando o cigarro no pote a meus pés com o cadáver de uma planta impossível de identificar. — Um. Começo a enumerar. — Ouço Alejandro Sanz porque adoro, não porque tive uma recaída, e dois, estou bem, só passei alguns dias de depressão depois de voltar da Jamaica. Nada sério, eu juro.
— Vamos, não minta para mim. Marta me diz, seguindo os meus passos até que entro na sala da minha casa e enquanto começo a recolher os lençóis que ela usou para dormir no meu sofá, ela continua. — Acho ótimo que você ouça Alejandro Sanz, mas esse disco em particular, que Pablo lhe deu, me deixa de cabelo em pé e me dá vontade de cortar os pulsos. Opa, me perdoe! Droga, como eu sou estúpida.
Silêncio... Um silêncio pesado toma conta do meu pequeno apartamento, ensurdecendo os meus ouvidos, mas apenas por um momento. Eu sou forte, mais forte do que qualquer um pensa e a confusão me atordoa por um décimo de segundo.
— Ei, querida. Viro-me para sorrir para Marta, que me olha pálida e antes de continuar falando me abaixo para ficar na altura dela. — Está tudo bem. Eu não sou feita de papel e por falar em papel, me lembra fumar. Vamos lá, você tem que me vender uns dois maços de Marlboro, ou eu não vou para o trabalho.
Ela acena aceitando, desta vez sem protestar. Chega de falar sobre tudo, acabou o momento de falar de tudo que tem a ver com o passado.
Sentada na escada que desce para o portal, aguardo Marta, que subiu para a sua casa para se despedir de José, o seu namorado e o santo homem que atura todo o rancor que a minha amiga abriga naquele minúsculo corpo.
Ambos somos vizinhos de longa data e, agora, continuamos a ser. Marta cresceu com uma mãe que era mais genial do que ela. — La Conchi. Era dona da tabacaria e quando morreu a sua filha a herdou junto com a casa. Algo parecido com o que aconteceu comigo, mas sem tabacaria e sem o meu pai chutar o balde.
Don Mariano, como o meu pai sempre foi chamado, mora numa residência há alguns anos. Com Alzheimer, ele começou a fugir de casa e quando quase foi atropelado, não tive escolha a não ser ouvir a Paula, a enfermeira que vinha em casa me ajudar quando eu trabalhava, e relutantemente tive que colocar ele numa residência onde ela cobria turnos nos fins de semana.
Desde então tenho a casa em usufruto e vivo rodeada das mesmas pessoas que me viram crescer e das memórias que por vezes me tocam os tomates.
— Por sua causa Pablo voltou. De tanto pensar nele, você o chamou com a sua mente. Eu a ouço sussurrar no meu ouvido.
— Fo*da-se, Marta! Você e o seu hábito de falar pelas costas. Eu protesto e Ignorando a sua presença, descemos juntos até o patamar do portal.
— Não estou falando pelas costas, é só que você não me viu com o canto do olho. Ela me garante provocantemente, segurando a porta que dá para a rua para que eu possa passar primeiro. — É um super poder que eu tenho. Vamos ver se você acha que, com a minha altura, tudo são desvantagens.
— Claro que não. Embora, o que eu mais invejo é o poder que você tem de ser jogada contra a parede sem se cansar ou ficar com lombalgia.
O eco das nossas vozes enche de vida a rua, ainda deserta a esta hora, ao longo da qual caminhamos em direção à praça da esquina onde fica a tabacaria da Marta.
— Isso é verdade. Não há nada melhor do que receber uma boa sacudida contra a parede. Você deveria tentar... Você parece um pouco desesperada.
— O que você está dizendo? No casamento da Melissa eu conheci um amigo colombiano do Cameron e vocês não imaginam as coisas que aquele armário fez comigo. Eu abano o meu rosto quente só de lembrar o que eu gostei naquela noite.
— Graças a Deus, rainha. Você estava confortável depois de um mês com duas velas.
— O meu corpo está mais confortável . O coitado estava prestes a desistir devido ao stresse do trabalho.
O som da veneziana de metal subindo camufla a minha risada excêntrica. Entro na loja, ainda no escuro, e enquanto Marta acende todas as luzes, pego o cigarro de trás do balcão e me dou um daqueles isqueiros, bacanas que os fornecedores dão a ela e que ela guarda para clientes especiais.
— Eu te vi! Ele grita comigo da sala dos fundos.
— Eu também te amo! Eu gritei com ela. — Gamba da neve, estou indo embora! Se não vou perder o trem.
Desviei do rolo de papel de cozinha com que Marta ia limpar o balcão, claramente de mau-humor. Ele odeia quando eu chamo ela assim, pela referência aos sete anões, mas sabe que faço isso com carinho.
Na verdade, nós duas somos as únicas que pode se insultar com a mais sincera apreciação. Ela pode mexer com os meus pneuzinhos e as estrias que surgem na minha pele por causa da dieta ioiô e, em troca, posso fazer piadas fáceis sobre a sua altura.
Não há nada melhor do que saber rir de si mesmo.
— Rainha! Ela me chama, pegando o rolo de papel que acabou de cair do chão.
— Toma, toma esta revista. Ela diz, me oferecendo uma dessas para a divulgação de teorias pseudocientíficas. — Existe um artigo que fala sobre a teoria da atração. Você deve verificar isso no caminho para o trabalho.
— Sério? Eu protesto porque ela acredita nessas bobagens. — Se isso fosse verdade, eu já teria um homem grande com mais de um metro e oitenta e três para me acompanhar. Eu brinco mostrando a língua e saio da tabacaria me despedindo com a revista na mão.
Durante a viagem de metro até à minha estação Santiago Bernabéu, li e reli a revista que a Marta me deu.
Jamais vou confessar isso a ela, mas encontrei a aceitação da crença de que se eu emitir energia positiva atrairei energia positiva e, ao contrário... Não é necessário terminar a frase.
Então, determinada a encher a minha vida de boas vibrações, saio pisando duro da entrada do metrô e sorrio para a vida para que ela sorria para mim. No entanto, fo*der torna isso difícil para mim.
Você verá como a feliz lei da atração funciona para todos, menos para mim. E essa suspeita se torna realidade assim que chego ao prédio onde temos os nossos escritórios e na porta encontro Claudia discutindo acaloradamente com o seu ex-covarde.
Ex que tem ordem de restrição desde a última surra que deu na minha companheira de trabalho e que esteva mantendo ele afastado por quase três meses.
Respiro fundo tentando não liberar a energia r**m, mas será muito complicado.
Já que existem duas coisas que eu odeio mais do que qualquer coisa no mundo…
Uma é levantar cedo e outra é ver como um homem levanta a voz para uma mulher.