Rebeca Vasconcellos Prado
— Eu já disse que não vou.
Minha voz saiu firme, mas por dentro... eu tremia.
Não de medo.
De cansaço.
— Como é que é? — Gustavo parou no meio do quarto, o paletó ainda pendurado no braço. — Você enlouqueceu, Rebeca?
Encarei os olhos dele pelo espelho. Eu já estava pronta pra sair. Cabelos presos, vestido colado no corpo, maquiagem feita.
Mas meu corpo não queria mais ser vitrine.
Minha alma não aguentava mais fingir.
— Eu não vou a mais nenhum evento. Não hoje. Não mais. — repeti, mais baixo. — Eu cansei.
Ele riu. Um riso seco, de escárnio.
— Ah, você cansou? — Ele largou o paletó na cadeira. — E eu posso saber desde quando você acha que tem o direito de decidir alguma coisa, Rebeca?
Virei de frente pra ele.
— Desde que me olho no espelho e vejo uma mulher que tá morrendo por dentro.
O tapa veio antes que eu pudesse terminar a frase.
Rápido. Frio. Estalado.
Minha cabeça virou pro lado com o impacto. O gosto de sangue explodiu na boca. O mundo ao redor ficou mudo por um segundo.
— Você só existe porque eu deixo. — ele sibilou, os olhos ardendo em fúria.
Meus olhos encheram d’água, mas eu não chorei.
Não na frente dele.
Virei o rosto e apenas murmurei:
— Vai pro inferno, Gustavo.
Outro tapa.
Dessa vez, me fez cair sentada no chão.
A mão dele apertou meu braço, forte, deixando marcas.
— Você vai a esse evento, nem que eu te arraste. Entendeu?
Mas eu não respondi.
E ele, como sempre, se cansou de brigar com meu silêncio.
Saiu batendo a porta.
Como se fosse o vitorioso.
Minutos depois, ainda com o rosto queimando, tirei os saltos, o vestido e joguei tudo no chão.
Peguei a primeira roupa larga que vi, amarrei o cabelo, coloquei um óculos escuro e saí de casa.
Sem destino.
Sem rumo.
Sem vontade de voltar.
Andei pelas ruas como uma sombra.
Me sentindo um espectro.
Ninguém me via. E isso era um alívio.
Passei por vielas, avenidas, parei numa banca de jornal, depois segui em direção ao bairro antigo. Precisava respirar. Precisava sentir o vento bater no rosto que doía.
Mas foi ali, em uma rua menos movimentada, que tudo quase desabou.
Dois homens saíram de trás de uma van. Roupas sujas, olhares rápidos, mãos nos bolsos como quem já tem intenção.
— E aí, gatinha... tá perdida?
Meu coração acelerou.
Dei um passo pra trás.
— Só quero passar.
— E a gente só quer conversar.
A voz era baixa, suja.
Eu soube.
Naquele momento, eu soube.
Eles iam me atacar.
Mas não deu tempo.
Um estalo ecoou.
Um chute rápido.
E, de repente, um corpo foi arremessado contra a parede com um baque surdo.
Eu não vi o rosto de imediato.
Mas reconheci a voz.
— Eu contei dois. Cadê o terceiro?
Fria. Certeira. A mesma voz que sussurrou no fundo do meu corpo dias antes, só com um olhar.
Era ele.
O homem do evento.
O desconhecido que me viu.
E agora...
ele me salvava.
O segundo homem tentou fugir, mas foi imobilizado com tanta rapidez que eu nem consegui entender o que tinha acontecido.
Só vi um movimento seco, um braço torcido, um gemido abafado.
E depois… silêncio.
O terceiro nunca existiu.
Ou teve mais sorte.
Ele ficou de pé.
Respirava fundo. Os ombros largos se movendo sob a camisa preta colada no corpo.
A arma ainda estava na mão dele, firme, apontada pro chão.
Ele se virou devagar, os olhos cravados em mim.
E naquele segundo...
meu corpo congelou.
Porque era como se ele estivesse me vendo de novo.
Não como uma vítima.
Mas como uma mulher despida por dentro.
— Você tá bem? — a voz saiu baixa, rouca, firme.
Assenti, mas não consegui dizer nada.
Ele se aproximou com passos lentos. O olhar passeava pelo meu corpo, pelos meus ombros tremendo, pelas minhas mãos trêmulas.
E então…
ele viu.
Meus óculos escuros ainda estavam no rosto. Mas um lado havia escorregado com o impacto da tensão. A luz da rua bateu direto na marca avermelhada na minha bochecha esquerda.
Ele parou.
A mandíbula se contraiu.
— Isso foi agora?
Sua voz mudou.
Não era mais calma.
Era... furiosa.
— Não é nada. — falei rápido, tentando ajustar os óculos — Eu tropecei.
Ele me encarou.
Não respondeu.
Não acreditou.
— Quem foi? — perguntou, mais baixo, como se estivesse se segurando.
— Eu só... caí. — insisti.
Ele se aproximou mais um passo.
O suficiente pra eu sentir o cheiro dele. Amadeirado, limpo, intenso.
O suficiente pra ver a raiva presa no fundo daqueles olhos de aço.
— Mentir assim não combina com você. — ele disse.
— E como você sabe como eu sou? — rebati, num fio de voz.
O canto da boca dele curvou. Quase um sorriso. Mas não era um sorriso de deboche. Era algo… mais sombrio.
— Eu vi você antes. No evento. Vi... o que tem por trás do seu sorriso ensaiado.
Minha respiração falhou.
— Você não sabe nada sobre mim.
— Talvez. Mas sei reconhecer um rosto que apanha calado.
Sei porque… eu já fui esse rosto.
Fiquei muda.
Um silêncio desconfortável se instalou entre nós. Mas não era vazio. Era denso. Elétrico. Quente.
Ele deu um passo ainda mais perto. Estava a centímetros de mim.
E o mundo inteiro pareceu parar.
Meu coração martelava.
Minhas mãos estavam geladas.
E os olhos dele... me queimavam.
— Obrigada por... — minha voz falhou. — Por ter me ajudado.
— Isso não foi ajuda. Foi instinto.
Virei o rosto.
Não conseguia mais sustentar o olhar.
— Eu preciso ir.
Me afastei.
Dei meia-volta.
E saí andando.
Mas antes de virar a esquina…
olhei por cima do ombro.
Ele ainda estava lá.
Parado.
Com o olhar cravado em mim.
E por mais que meu corpo estivesse tremendo...
pela primeira vez em muito tempo… eu me senti segura.
Voltei pra casa andando.
As pernas tremiam. A respiração oscilava entre o alívio e o pânico.
Mas não era medo do que tinha acontecido.
Era medo do que eu senti.
Porque quando ele me olhou...
quando os olhos dele tocaram os meus…
tudo que eu vinha segurando dentro do peito quebrou.
E pior:
por alguns segundos… eu quis ficar.
Quis que ele me perguntasse mais.
Quis que ele me encostasse.
Quis que ele dissesse: "você não precisa voltar."
Mas eu voltei.
Subi as escadas do apartamento em silêncio. A porta estava destrancada. Gustavo ainda não tinha voltado — provavelmente em algum bar, fingindo ser um homem decente.
No espelho do corredor, vi meu rosto.
O roxo já começava a escurecer.
Tirei os óculos escuros e fiquei ali, encarando meu reflexo.
— Quem era ele? — perguntei para mim mesma. — E por que eu ainda tô sentindo o toque dos olhos dele na minha pele?
A resposta não veio.
Mas a sensação…
Ela ficou.
Fui pro banheiro. Lavei o rosto. Tirei a blusa suada. Deixei a água cair nos ombros enquanto encostava a testa fria na cerâmica do box.
Revi a cena em looping.
Os dois homens me cercando.
Meu coração disparado.
O desespero prestes a explodir.
E então… ele.
Como se tivesse saído das sombras.
Como se soubesse onde eu estava.
Por que ele tava lá?
Coincidência?
Ou o universo finalmente decidiu me dar um segundo de ar antes de afundar de novo?
Me joguei na cama com os cabelos ainda úmidos.
Não dormi.
Só fiquei ali, de olhos abertos, sentindo a pele formigar de dentro pra fora.
A imagem dele grudou em mim.
Os traços fortes. A voz rouca. A maneira como ele não demonstrava emoção... mas também não fingia que não se importava.
Eu não sei o nome dele.
Não sei o que ele faz.
Mas sei de uma coisa:
Ele viu a minha dor. E não virou o rosto.
E isso… é mais do que qualquer um já fez por mim.