Rebeca Vasconcellos Prado
Dizem que toda mulher tem um preço.
A ironia é que eu nunca aceitei ser comprada… mas mesmo assim, fui entregue.
Como uma joia de família antiga.
Como uma moeda de troca coberta de batom caro e perfume francês.
Como se eu fosse parte de um leilão silencioso que acontece todos os dias em salões luxuosos e escuros — onde homens como meu pai decidem o futuro de todo mundo, menos o deles.
— Sorria, Rebeca.
As palavras dele ainda ecoavam na minha mente enquanto eu encarava o espelho enorme na suíte do hotel. A maquiagem estava impecável, claro. Nunca falta ninguém para me maquiar. Mas ninguém limpa a alma, né?
Sorria, Rebeca.
Mesmo com o lábio cortado sob o gloss nude, pois a ponta do meu lábio estava sensível, apesar do corretivo. Ainda latejava do tapa que levei dois dias antes. Mas meu pai achou melhor não cancelar a coletiva de imprensa. A imagem era mais importante do que a verdade. Sempre foi.
Sem esquecer do meu maxilar doendo de ontem à noite.
Mesmo com o nojo que sente ao saber que vai ter que descer aquelas escadas e posar ao lado de Gustavo — o advogado de merda, querido da mídia, o “príncipe do progresso” como chamam, enquanto eu sei quem ele é de verdade.
Um monstro com rosto bonito e diploma na mão.
E eu?
A namorada perfeita.
A mulher que todos esperam que se case com ele em breve.
A que vai herdar a influência do pai e manter o teatro político funcionando.
Sorria, Rebeca.
— Senhorita, o carro está pronto.— a voz da secretária de confiança do meu pai interrompeu meus devaneios — Temos dez minutos para a coletiva. Seu vestido está impecável.
Apertei os punhos por instinto. Vesti a máscara.
A herdeira estava pronta.
— Que bom. Uma pena que minha alma não esteja. — murmurei baixo demais pra ela ouvir.
Apertei o celular na mão. Nenhuma mensagem da minha mãe. Nenhuma da minha melhor amiga, que o Gustavo fez questão de afastar de mim aos poucos.
Ninguém.
Era assim que eu vivia agora.
No meio de muita gente, mas completamente sozinha.
Desci com a postura que esperavam.
Passos firmes.
Olhar altivo.
O tipo de mulher que parece intocável… quando, na verdade, já foi tocada demais por mãos que deixaram marcas invisíveis.
Ao lado do carro, Gustavo sorriu.
Ele sempre sorri.
Mesmo quando quebra copos na parede. Mesmo quando aperta meu braço com força. Mesmo quando cochicha no meu ouvido que “ninguém vai acreditar em você se tentar me denunciar”.
A mídia ama ele.
E eu sou só a moldura bonita do retrato dele.
— Tá deslumbrante, meu amor. — ele disse, e a mão dele escorregou pela minha cintura como se tivesse algum direito.
— E você tá falso, como sempre. — retruquei, antes de me soltar e entrar no carro.
Ele riu. Achou charme. Ele sempre acha charme quando eu retruco.
Porque sabe que vou calar depois.
Mas eu estou cansando de calar.
E isso... é perigoso.
A coletiva foi no mesmo lugar de sempre: o salão branco do hotel cinco estrelas. Um paraíso de hipocrisia e bajulação, onde meu pai desfila como um rei moderno — o salvador da pátria.
Enquanto ele falava sobre “justiça social” e “transparência”, eu me perguntava como seria gritar ali no meio.
Gritar tudo.
Rasgar o microfone.
Apontar pra ele e dizer: “esse homem mentiu a vida inteira. E usa a própria filha como escudo.”
Mas eu não gritei.
Porque uma herdeira não grita.
Ela sorri.
Até o momento em que meu olhar cruzou com ele.
Não sei como explicar.
Ele estava no fundo da sala. Encostado na lateral, como quem não fazia parte daquilo. Usava um terno escuro, simples, sem luxo — mas o corpo inteiro gritava poder. O olhar, então…
Frio. Cirúrgico. Quase c***l.
Era o tipo de olhar que não pedia licença.
Que invadia. Que desnudava.
Eu pisquei, confusa. Por um segundo, esqueci até onde estava.
Ele olhava pra mim.
Não para o senador.
Não para os flashes.
Pra mim.
Ele não me olhava como os outros homens. Não como o Gustavo me olha. Não como o mundo me olha.
Era um olhar afiado. Cru.
De quem lê as rachaduras e não se assusta com elas.
Minha pele se arrepiou. O ar ao redor de mim mudou. Como se uma corrente elétrica invisível tivesse cruzado o salão e me tocado com um estalo.
Eu devia desviar.
Devia.
Mas fiquei.
E ele também ficou.
Não havia sorriso. Nem charme. Nem bajulação.
Havia apenas… impacto. Um choque. Uma espécie de compreensão muda.
Como se, mesmo sem me conhecer, aquele homem soubesse exatamente o que eu escondia.
A sensação foi tão intensa que precisei me apoiar na lateral da mesa. Gustavo nem notou. Estava ocupado demais sorrindo para as câmeras.
Quando os discursos começaram, eu já não ouvia mais nada.
As palavras do meu pai viraram um zumbido de fundo.
O mundo ao redor parecia congelado — exceto ele.
O homem do olhar cortante.
E por alguns segundos, só existíamos nós dois naquele lugar.
E o pecado que acabava de nascer entre um olhar e outro.
Horas depois, já no quarto, tirei os saltos com tanta força que quase tropecei.
— Parabéns pela performance. — Gustavo disse, jogando a gravata no sofá. — Você se superou hoje.
— E você continua um babaca.
— Não seja ingrata, Rebeca. Você tem tudo. Poder, luxo, status. Tudo o que qualquer mulher sonha. E só precisa ficar calada e sorrindo.
Fiquei calada.
Não por medo.
Mas porque, se eu falasse, ia gritar.
Ele se aproximou. A mão tocou meu rosto. Desviei com nojo.
— Ainda com raiva de mim? Foi só um empurrão. Você que me provocou. — ele disse, como se isso justificasse tudo.
— Sai daqui, Gustavo.
— Um dia você vai me agradecer. Por tudo que eu faço por você. — respondeu, saindo do quarto como se fosse o dono do mundo.
Quando ele bateu a porta, eu desabei no chão.
Sentei no carpete frio da suíte, abracei as pernas e deixei as lágrimas caírem em silêncio.
A maquiagem borrada.
O peito apertado.
A vontade de sumir.
Mas tudo o que consegui fazer… foi lembrar daquele olhar.
Do único olhar que não me julgou.
Que não tentou me possuir.
Que apenas me viu.
Eu não sabia quem ele era.
Nem por que estava lá.
Mas uma coisa era certa:
A partir de agora… nada mais seria o mesmo.