Capítulo 2 – O Veneno nos Olhos Delegado

1000 Words
Alessandro Ferraz Montemor Dizem que a justiça é cega. Talvez seja por isso que tanta merda acontece debaixo do nariz dela. Eu, por outro lado, vejo tudo. Não porque sou um bom delegado — isso é consequência. Eu vejo tudo porque aprendi da forma mais c***l possível que a verdade mora nos detalhes. Nos olhos, nos gestos, nas mentiras sussurradas como verdades absolutas. O sistema que eu sirvo… também me destruiu. E desde então, eu sirvo ao sistema com a frieza de quem já não deve nada a ninguém. Nem a Deus. — O senador Prado estará no evento desta tarde. — disse Julia, minha assessora, enquanto me entregava a pasta com os relatórios mais recentes. Assenti em silêncio. A imagem do velho nojento estampava a capa do jornal. Outra manchete elogiando a “reforma histórica” que ele vinha liderando com o dinheiro desviado de quatro instituições públicas. Três das quais tinham conexões diretas com meu pai. — Novidades sobre os contratos falsificados? — A empresa laranja no nome do irmão dele está ativa. Dinheiro de campanha, propina, desvio direto da saúde pública. Estamos cruzando os dados. — Quero isso pronto antes do final da semana. Julia hesitou. — E quanto à filha dele? A pergunta bateu diferente. Levantei os olhos. — O que tem ela? — Rebeca. Está envolvida com Gustavo Tavares, o advogado que tenta blindar o pai. Ela frequenta os mesmos eventos. Está sempre ao lado deles. — Não me importa. Mentira. Me importava sim. Mas eu ainda não sabia por quê. Fui ao evento porque precisava mostrar minha presença. Quando querem silenciar você, é no escuro. Estar visível é, às vezes, o primeiro passo da sobrevivência. Não usei terno caro. Não cumprimentei ninguém. Entrei calado, braços cruzados, e me posicionei no fundo do salão — onde consigo ver sem ser visto. Onde o controle está inteiro em mim. Até ela aparecer. Não sei quanto tempo passou. Não sei nem que parte do discurso ele estava dando. Mas quando ela entrou... tudo ao redor perdeu sentido. Rebeca Vasconcellos Prado. A herdeira. A intocável. O rosto estampado em colunas de moda política. A filha da serpente. Eu esperava um molde do pai. Uma mulher treinada pra sorrir e manipular. Mas o que vi… foi diferente. Ela entrou como quem flutua e carrega o peso do mundo nos ombros ao mesmo tempo. Vestido vinho, justo demais. Olhos marcados. Salto firme. Mas o que mais me chamou atenção foi o vazio nos olhos dela. Vazio... e dor. Dor camuflada com luxo. Porra. Eu reconheço esse olhar. Já vi em órfãos de guerra. Em vítimas de abuso. Já vi no espelho. Ela olhou na minha direção. Não me viu. Me sentiu. E quando os olhos dela encontraram os meus... alguma coisa dentro de mim se partiu. Não foi t***o. Não foi raiva. Foi algo mais profundo, mais sujo. Uma faísca envenenada. Ali estava a filha do homem que destruiu a minha família. E eu... estava admirando a forma como os cílios dela tremiam levemente. "Controle-se, Ferraz." Desviei o olhar. Por dois segundos. Mas voltei. Não consegui ignorar. O mundo ao redor seguiu girando. O senador fez seu show. Gustavo apareceu, com aquele ar de vencedor falso. E ela... ela ficou ali. No meio de tudo. Calada. Linda. Triste. Explodindo em silêncio. Duas horas depois, eu estava no meu apartamento, encarando o copo de uísque na mão. A janela aberta. A cidade se movendo como um formigueiro noturno. Mas minha mente… Minha mente estava presa no olhar dela. Julia me ligou. — Consegui extrair mais dados do contrato da Engcom. Alessandro, tem uma transferência feita direto da conta da Rebeca. — O quê? Parei. Engoli seco. — Parece lavagem. Mas pode ser movimentação de fachada. Ou... ela sabe. — Você tem certeza? — Não ainda. Mas vou continuar cavando. Desliguei sem dizer mais nada. Ela pode estar envolvida. Pode estar ajudando o pai. Pode ser mais venenosa do que imagino. Mas aquele olhar... Aquela merda de olhar que me perseguiu desde a tarde… Por que não consigo esquecer? Eu era um homem de missão. De lógica. Minha vida era composta por três pilares: trabalho, justiça e silêncio. Não havia espaço pra distrações. Principalmente por distrações que carregam o sangue do meu maior inimigo. Mas algo estava errado. E esse "errado"... usava salto alto e tinha um olhar de quem grita socorro em silêncio. Pela madrugada, sentei à mesa e reli os arquivos antigos. Fotos do senador Prado sorrindo. Contas em paraísos fiscais. E em uma delas… lá estava ela. Bem mais nova. Roupas discretas. Cabelos soltos. Um sorriso verdadeiro. Não reconheci. A mulher que vi hoje não sorria. Ela resistia. Com o corpo, com o olhar. Como alguém que vive em cativeiro com aparência de castelo. E foi aí que entendi: Ela está presa. Não sei por quem. Não sei como. Mas sei reconhecer olhos de prisioneira. E eu nunca fui bom em ver alguém preso... sem querer libertar. Fechei o notebook e encostei na cadeira, olhos no teto. A imagem dela, parada na minha mente. Como uma cicatriz que apareceu do nada, mas insiste em queimar. Fiquei pensando se ela sabia a verdade. Se ajudava o pai. Se mentia com a mesma naturalidade com que caminhava. Talvez sim. Talvez não. Mas algo me dizia que o inferno em que ela vive... não foi escolha. E se não foi escolha... ela não é inimiga. Ainda não. E isso… me fode mais do que qualquer outra coisa. Na manhã seguinte, recebi a confirmação de que Gustavo seria o advogado de defesa em uma nova manobra jurídica do senador. Óbvio. E que Rebeca estaria ao lado dele novamente em mais uma entrevista. Ótimo. Porque agora… Eu queria ver de perto. Não apenas como delegado. Mas como homem. Não que eu vá tocá-la. Não que eu vá sentir. Não que eu vá permitir. Mas saber… Saber que existe uma mulher tão quebrada quanto eu… Isso, por enquanto… Já é suficiente para me manter acordado.
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