Rebeca Vasconcellos Prado
Acordei com o peso de um braço sobre meu corpo.
O quarto ainda estava escuro. O relógio marcava 5h42. Mas o mundo dentro de mim já gritava.
Acordar ao lado de Gustavo era como abrir os olhos e lembrar que estou trancada numa cela invisível, onde o luxo é só o verniz da prisão.
Tentei me mover devagar, mas ele me puxou mais pra perto.
O toque da pele dele contra a minha me causava náusea.
O cheiro do perfume caro misturado ao suor me embrulhava o estômago.
— Ainda tá cedo. — ele murmurou, com a voz rouca. — Fica quietinha, amor.
A mão dele deslizou pelas minhas costas.
Eu fechei os olhos. Tentei não respirar. Tentei não existir.
— Gustavo, não agora… por favor.
— Você sempre fala demais de manhã, Rebeca.
A voz era baixa, suave. Como se fosse um carinho. Mas eu conhecia aquele tom.
Era o tom que vinha antes do inferno.
Tentei me virar, afastar o corpo dele do meu. Ele não deixou.
— Eu não quero, Gustavo.
— Você é minha. Lembra disso?
A frase veio com a força de um soco no peito.
Ele me virou, me forçou a deitar de lado e se encaixou atrás de mim.
Meu corpo inteiro enrijeceu.
A garganta travou.
Eu não gritei.
Não que eu não quisesse.
Mas porque gritar... não fazia diferença.
Foi rápido.
Foi c***l.
Foi como sempre era.
Ele não me bateu.
Ele não xingou.
Ele apenas me usou.
E quando terminou, soltou um suspiro satisfeito e se afastou como se nada tivesse acontecido.
Eu fiquei ali, imóvel.
Com as coxas pressionadas uma contra a outra.
Com o travesseiro molhado pelas lágrimas que escorreram caladas.
A dor física era pouca.
A dor emocional, não.
Era como se, toda vez que isso acontecia, uma parte de mim se partisse e caísse no chão.
E eu nunca pegava de volta.
Quando finalmente me levantei, fui direto pro banheiro.
Tomei banho com a água mais quente que suportei.
Esfreguei a pele até ficar vermelha.
Mas o nojo... continuava grudado em mim.
Fiquei ali, abraçada aos joelhos, sentada no chão frio do box por mais de vinte minutos.
Pensando se algum dia… eu teria coragem de fugir.
Quando saí do quarto, a casa estava em silêncio. Gustavo já havia saído para o escritório.
Vesti uma calça jeans, uma blusa branca larga. Prendi o cabelo num coque frouxo. Coloquei óculos escuros — não por estilo, mas pra esconder os olhos inchados.
Passei pela sala. Peguei as chaves do carro. Dirigi sem rumo pelas ruas da cidade até parar no estacionamento vazio de um shopping de luxo.
Fiquei ali dentro do carro por quase uma hora, encarando o próprio reflexo no retrovisor.
Me perguntei quem era aquela mulher.
Aquela que todos chamavam de "filha do senador".
Aquela que todos diziam "sortuda", "privilegiada", "abençoada".
A verdade?
Eu era uma refém bem vestida.
Mais tarde, já em casa, me sentei na varanda com uma xícara de café frio. O vento batia no meu rosto e, por um segundo, desejei que ele me levasse embora.
E foi então que me lembrei… dele.
O homem do olhar de gelo.
Aquele que me viu ontem.
Aquele que não desviou o olhar quando eu tremi por dentro.
Aquele que, com um único segundo de silêncio, fez mais por mim do que qualquer outro já fez.
Não sei quem ele é.
Não sei o nome.
Mas sei que meus ossos lembram dele.
Que minha pele ainda carrega o arrepio daquele olhar.
E é por isso que hoje… eu não vou fingir que está tudo bem.
Hoje, pela primeira vez em muito tempo, eu não vou sorrir.
Hoje, vou deixar essa dor me consumir.
Porque ela vai me transformar.
Porque algo dentro de mim está acordando.
E quando despertar por completo… o mundo ao meu redor vai sentir.
Eu não vou mais ser passiva.
Eu não vou mais ser silenciosa.
Eu vou sangrar.
Vou gritar.
E se ninguém me escutar...
eu mesma vou me libertar.
Nem que eu tenha que destruir tudo ao meu redor pra isso.
Lá pelas oito da noite, sentei sozinha na sala de jantar. A mesa era longa, cercada por cadeiras esculpidas em madeira nobre, lustres cintilantes, talheres de prata.
Uma mesa para doze pessoas.
Mas só havia eu.
Gustavo não voltaria antes da meia-noite. E mesmo que voltasse, preferia essa solidão.
Melhor o vazio do que a presença dele.
O prato à minha frente continuava intocado. O cheiro da comida me enjoava. Ou talvez fosse só a vida que estava me intoxicando aos poucos.
Enquanto a TV passava as notícias da noite, meu pai apareceu na tela. De novo.
Discurso no Senado. Mais um projeto aprovado. Mais uma farsa aplaudida.
A multidão o amava. O país confiava nele.
Mas eu...
Eu conhecia aquele homem desde criança. E sei exatamente o que ele é.
Lembrei de uma cena que tento enterrar toda vez que vem.
Tinha oito anos. Estava brincando no jardim da mansão, rindo, correndo atrás de uma pipa que o vento arrastava. Me atrasei para uma sessão de fotos de família com a imprensa.
Quando cheguei, suada, com os cabelos desgrenhados e os joelhos sujos, ele não disse nada na frente de todos.
Só sorriu.
Mas assim que os fotógrafos saíram, me puxou pelo braço e sussurrou com os dentes cerrados:
— Você é uma Prado. Nunca se esqueça disso. E uma Prado não sua. Não corre. Não grita.
E depois me trancou no quarto por horas.
Ali eu entendi o que era o mundo em que eu vivia.
Desde então, aprendi a sorrir do jeito certo. A andar com a postura certa. A obedecer. A ficar em silêncio.
Meu pai sempre quis uma filha perfeita.
E se ele não teve… ele inventou uma.
E eu aceitei ser o papel.
Por muito tempo, fui a filha. A princesa da mídia. A promessa da nova geração.
Até que percebi que ninguém me via.
Não de verdade.
E agora, tantos anos depois, percebo que nem eu mesma sei mais quem sou.
Levantei da mesa, joguei a comida fora e caminhei até o espelho da sala.
Fiquei ali parada, encarando o reflexo.
A blusa branca. A pele impecável. O batom claro.
Tudo no lugar.
Por fora, uma mulher linda. Controlada. Respeitável.
Por dentro…
um desastre ambulante prestes a implodir.
Coloquei a mão sobre o vidro. Me aproximei. Olhei dentro dos meus próprios olhos.
— Onde você foi parar, Rebeca? — sussurrei.
Não houve resposta.
Só silêncio.
Mas então, no fundo da minha mente, o eco daquele olhar voltou.
O dele.
O homem do evento.
Ele me olhou como se visse tudo que escondo.
Como se, por um segundo, eu tivesse existido de verdade.
E isso... me abalou.
Não por romance.
Não por desejo.
Mas por algo muito mais profundo.
Por que me fez lembrar que ainda sou uma pessoa.
Que ainda tenho vontade.
Que ainda sinto raiva.
Que ainda sonho em fugir.
Mesmo que não saiba pra onde.
Talvez aquele homem seja perigoso.
Talvez ele seja só mais um.
Mas o olhar dele me quebrou por dentro.
E não de um jeito r**m.
Quebrou a máscara.
E agora que ela tem rachaduras, não sei se consigo mantê-la no lugar por muito mais tempo.
Voltei para o quarto.
Fechei a porta.
Tranquei.
Deitei na cama. E pela primeira vez em muito tempo, dormi sem maquiagem.
Sem salto.
Sem pressa de acordar.
Porque, lá no fundo, sei que amanhã algo muda.
Não sei o quê.
Não sei quando.
Mas eu sinto.
E se não mudar por fora…
vai mudar por dentro.
Porque uma mulher pode ser calada mil vezes.
Mas quando ela resolve gritar…
ninguém mais consegue calar.
Nem o pai.
Nem o monstro.
Nem o mundo.