CapÃtulo 1 – A DÃvida do Meu Pai
Isabela
Acordei com o barulho dos tiros. Era como um despertador macabro que ecoava quase todos os dias. A favela nunca dormia em paz por muito tempo. Esperei alguns segundos. Um, dois… três disparos. Depois, silêncio. O tipo de silêncio que pesa, que carrega a dúvida de quem sobreviveu.
Levantei da cama com o coração acelerado. Minha mãe já estava de pé, arrumando a cozinha como se nada tivesse acontecido. Sempre admirei essa força que ela fingia ter, como se o caos ao redor não a afetasse mais. Mas eu sabia. Cada ruga nova no rosto dela era mais um dia de tensão, mais uma dÃvida emocional que ninguém pagaria.
— Mãe, o pai saiu de novo ontem à noite? — perguntei, me aproximando dela.
Ela parou de cortar a cebola e me olhou. Foi um segundo apenas. Mas o olhar dela entregou tudo. Tinha algo errado.
— Saiu — respondeu baixo, voltando ao que fazia. — Disse que ia resolver umas coisas com o Ligeirinho.
Meu estômago revirou. Ligeirinho era o agiota da comunidade. O tipo de homem que sorria com a boca e ameaçava com os olhos. Meu pai devia a ele há meses. Primeiro foi um empréstimo pequeno. Depois, outro maior. Quando dei por mim, já estávamos vendendo a TV da sala e as panelas boas.
— Mãe… você acha que ele... — respirei fundo — ...acha que ele tá metido com o pessoal do alto?
Ela não respondeu. Apenas limpou a faca no pano e continuou em silêncio. O cheiro da cebola misturado à tensão naquela cozinha me fez engasgar.
— Ele nunca demorou tanto — sussurrei, sentindo o frio subir pelas costas.
Puxei o celular e liguei. Caixa postal. Liguei de novo. Nada. Fui até o quarto e peguei minha mochila. Minha mente já estava no modo automático, como se algo dentro de mim soubesse que aquele dia seria diferente.
Desci a viela correndo, desviando das crianças jogando bola e dos olhares desconfiados. Todo mundo sabia quando algo estava errado por aqui. E hoje, a favela estava mais calada que o normal. Como se estivesse segurando a respiração.
Fui direto ao bar do Dudu, onde meu pai costumava passar as tardes. O balcão estava vazio.
— Dudu, você viu meu pai? — perguntei, já sem fôlego.
O homem, que sempre foi tagarela, dessa vez apenas balançou a cabeça.
— Não vi não, Isa. Ele sumiu desde ontem. O povo tá comentando aÃ...
— Comentando o quê?! — exigi.
Dudu se calou por um segundo e então se aproximou.
— Disseram que ele foi lá em cima. No topo.
— No alto do morro?
Ele assentiu.
— Procurar o Caio Moreira.
Meu sangue gelou. O nome de Caio Moreira não era dito em vão. Ele era o dono do tráfico. O homem que comandava tudo dali. O Rei do Morro. Um nome que causava mais medo do que a própria morte.
— Por quê?! — perguntei, quase em grito.
— Dizem que o Ligeirinho mandou os homens dele atrás do seu pai… e que o Caio chamou ele pra "resolver a dÃvida".
Minhas pernas falharam.
— Resolver como?
Dudu não respondeu. Mas eu sabia. Quando Caio chamava alguém, só existiam duas saÃdas: ou você saÃa carregado... ou não saÃa.
Saà do bar sentindo as mãos trêmulas. Liguei pro celular do meu pai de novo. Caixa postal. As imagens na minha mente começaram a me torturar. Meu pai ajoelhado, sendo arrastado por homens armados. Gritando, pedindo por misericórdia. Não! Ele não podia ter sido tão burro...
Fui direto pra casa da dona Mariana, vizinha e fofoqueira oficial da comunidade.
— Dona Mariana, a senhora ouviu alguma coisa sobre o meu pai?
Ela fez o sinal da cruz antes de falar.
— Ouvi dizer que os homens do Caio vieram buscar ele ontem à noite. Estavam com cara de poucos amigos. E depois, silêncio...
— Ele tá morto?
— Ninguém sabe. Mas olha, Isabela... se ele foi chamado, não foi pra conversa leve. Você precisa se cuidar, menina.
Meus olhos começaram a arder. Meu pai podia ser fraco, covarde, beber demais, fazer promessas que nunca cumpria... mas era meu pai. E se ele tivesse feito alguma besteira — e pelo visto fez — quem pagaria o preço?
Voltei pra casa e minha mãe estava sentada na cadeira da varanda, imóvel.
— Mãe... — me ajoelhei diante dela — a senhora sabia que ele ia lá em cima?
Ela apenas assentiu.
— Ele me prometeu que era só pra conversar. Que ia conseguir mais prazo. Que ia resolver tudo.
— Resolver?! — gritei, as lágrimas escorrendo. — Ele foi negociar com um homem que mata por olhar torto!
Ela apertou os olhos, tentando conter a própria dor.
— Eu avisei. Ele disse que daria um jeito.
Me levantei e comecei a andar de um lado pro outro.
— Eles não vão perdoar. Se ele sumiu, é porque Caio está fazendo o que faz de melhor. Cobrar com sangue.
Meu coração estava em pedaços. E no fundo, algo me dizia que o preço não seria pago apenas pelo meu pai.
Foi então que a campainha tocou.
Três toques secos.
Aqueles toques que não pedem permissão. Que apenas avisam: estamos aqui.
Minha mãe congelou. Eu também.
Levantei com as pernas bambas e fui até o portão. Dois homens parados. Altos, armados, tatuagens visÃveis, bonés virados para trás. O tipo de homem que anda como se fosse dono do chão.
— Você é a Isabela? — perguntou o mais alto.
Assenti com um fio de voz.
— O Caio mandou chamar você.
— Pra quê?
Ele sorriu, mas não tinha humor algum naquele sorriso.
— Seu pai não conseguiu pagar a dÃvida. Agora é você quem vai quitar.
Fiquei muda. Minha garganta fechou. Meu corpo inteiro tremeu.
— Eu não entendi…
— Entendeu sim — ele interrompeu. — Junta suas coisas. Você tá sendo levada.
— Levada?! Eu não sou mercadoria!
— Não? — ele deu de ombros — Pro Caio, você é. E olha só… ele quer te ver ainda hoje. Não faz a gente perder tempo.
Fechei o portão com a mão ainda trêmula. Minha mãe veio até mim, branca como cera.
— Mãe… eles vão me levar. — sussurrei, quase sem ar.
Ela não disse nada. Apenas chorou. E isso foi o suficiente pra eu entender:
Meu pai me vendeu.
E agora... eu era propriedade do rei.