Capítulo 1 – A Dívida do Meu Pai

1068 Words
Isabela Acordei com o barulho dos tiros. Era como um despertador macabro que ecoava quase todos os dias. A favela nunca dormia em paz por muito tempo. Esperei alguns segundos. Um, dois… três disparos. Depois, silêncio. O tipo de silêncio que pesa, que carrega a dúvida de quem sobreviveu. Levantei da cama com o coração acelerado. Minha mãe já estava de pé, arrumando a cozinha como se nada tivesse acontecido. Sempre admirei essa força que ela fingia ter, como se o caos ao redor não a afetasse mais. Mas eu sabia. Cada ruga nova no rosto dela era mais um dia de tensão, mais uma dívida emocional que ninguém pagaria. — Mãe, o pai saiu de novo ontem à noite? — perguntei, me aproximando dela. Ela parou de cortar a cebola e me olhou. Foi um segundo apenas. Mas o olhar dela entregou tudo. Tinha algo errado. — Saiu — respondeu baixo, voltando ao que fazia. — Disse que ia resolver umas coisas com o Ligeirinho. Meu estômago revirou. Ligeirinho era o agiota da comunidade. O tipo de homem que sorria com a boca e ameaçava com os olhos. Meu pai devia a ele há meses. Primeiro foi um empréstimo pequeno. Depois, outro maior. Quando dei por mim, já estávamos vendendo a TV da sala e as panelas boas. — Mãe… você acha que ele... — respirei fundo — ...acha que ele tá metido com o pessoal do alto? Ela não respondeu. Apenas limpou a faca no pano e continuou em silêncio. O cheiro da cebola misturado à tensão naquela cozinha me fez engasgar. — Ele nunca demorou tanto — sussurrei, sentindo o frio subir pelas costas. Puxei o celular e liguei. Caixa postal. Liguei de novo. Nada. Fui até o quarto e peguei minha mochila. Minha mente já estava no modo automático, como se algo dentro de mim soubesse que aquele dia seria diferente. Desci a viela correndo, desviando das crianças jogando bola e dos olhares desconfiados. Todo mundo sabia quando algo estava errado por aqui. E hoje, a favela estava mais calada que o normal. Como se estivesse segurando a respiração. Fui direto ao bar do Dudu, onde meu pai costumava passar as tardes. O balcão estava vazio. — Dudu, você viu meu pai? — perguntei, já sem fôlego. O homem, que sempre foi tagarela, dessa vez apenas balançou a cabeça. — Não vi não, Isa. Ele sumiu desde ontem. O povo tá comentando aí... — Comentando o quê?! — exigi. Dudu se calou por um segundo e então se aproximou. — Disseram que ele foi lá em cima. No topo. — No alto do morro? Ele assentiu. — Procurar o Caio Moreira. Meu sangue gelou. O nome de Caio Moreira não era dito em vão. Ele era o dono do tráfico. O homem que comandava tudo dali. O Rei do Morro. Um nome que causava mais medo do que a própria morte. — Por quê?! — perguntei, quase em grito. — Dizem que o Ligeirinho mandou os homens dele atrás do seu pai… e que o Caio chamou ele pra "resolver a dívida". Minhas pernas falharam. — Resolver como? Dudu não respondeu. Mas eu sabia. Quando Caio chamava alguém, só existiam duas saídas: ou você saía carregado... ou não saía. Saí do bar sentindo as mãos trêmulas. Liguei pro celular do meu pai de novo. Caixa postal. As imagens na minha mente começaram a me torturar. Meu pai ajoelhado, sendo arrastado por homens armados. Gritando, pedindo por misericórdia. Não! Ele não podia ter sido tão burro... Fui direto pra casa da dona Mariana, vizinha e fofoqueira oficial da comunidade. — Dona Mariana, a senhora ouviu alguma coisa sobre o meu pai? Ela fez o sinal da cruz antes de falar. — Ouvi dizer que os homens do Caio vieram buscar ele ontem à noite. Estavam com cara de poucos amigos. E depois, silêncio... — Ele tá morto? — Ninguém sabe. Mas olha, Isabela... se ele foi chamado, não foi pra conversa leve. Você precisa se cuidar, menina. Meus olhos começaram a arder. Meu pai podia ser fraco, covarde, beber demais, fazer promessas que nunca cumpria... mas era meu pai. E se ele tivesse feito alguma besteira — e pelo visto fez — quem pagaria o preço? Voltei pra casa e minha mãe estava sentada na cadeira da varanda, imóvel. — Mãe... — me ajoelhei diante dela — a senhora sabia que ele ia lá em cima? Ela apenas assentiu. — Ele me prometeu que era só pra conversar. Que ia conseguir mais prazo. Que ia resolver tudo. — Resolver?! — gritei, as lágrimas escorrendo. — Ele foi negociar com um homem que mata por olhar torto! Ela apertou os olhos, tentando conter a própria dor. — Eu avisei. Ele disse que daria um jeito. Me levantei e comecei a andar de um lado pro outro. — Eles não vão perdoar. Se ele sumiu, é porque Caio está fazendo o que faz de melhor. Cobrar com sangue. Meu coração estava em pedaços. E no fundo, algo me dizia que o preço não seria pago apenas pelo meu pai. Foi então que a campainha tocou. Três toques secos. Aqueles toques que não pedem permissão. Que apenas avisam: estamos aqui. Minha mãe congelou. Eu também. Levantei com as pernas bambas e fui até o portão. Dois homens parados. Altos, armados, tatuagens visíveis, bonés virados para trás. O tipo de homem que anda como se fosse dono do chão. — Você é a Isabela? — perguntou o mais alto. Assenti com um fio de voz. — O Caio mandou chamar você. — Pra quê? Ele sorriu, mas não tinha humor algum naquele sorriso. — Seu pai não conseguiu pagar a dívida. Agora é você quem vai quitar. Fiquei muda. Minha garganta fechou. Meu corpo inteiro tremeu. — Eu não entendi… — Entendeu sim — ele interrompeu. — Junta suas coisas. Você tá sendo levada. — Levada?! Eu não sou mercadoria! — Não? — ele deu de ombros — Pro Caio, você é. E olha só… ele quer te ver ainda hoje. Não faz a gente perder tempo. Fechei o portão com a mão ainda trêmula. Minha mãe veio até mim, branca como cera. — Mãe… eles vão me levar. — sussurrei, quase sem ar. Ela não disse nada. Apenas chorou. E isso foi o suficiente pra eu entender: Meu pai me vendeu. E agora... eu era propriedade do rei.
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