Mira precisa de calma
LOBO
Meu nome é Bernardo Lobo, tenho trinta e dois anos, sou 1º Tenente das Forças Especiais do Exército Brasileiro e, se existe algo que define a minha vida até aqui, é a disciplina.
Disciplina para acordar cedo quando o corpo pede descanso.
Disciplina para manter a respiração firme quando tudo ao redor é caos.
Disciplina para puxar o gatilho no momento certo, porque um segundo de hesitação pode significar a diferença entre vida e morte.
Sou considerado o melhor sniper do estado e, em poucos meses, vou disputar o título de melhor do país. Não falo isso por vaidade, mas porque sei o preço que paguei para chegar até aqui. São anos de suor, noites m*l dormidas, treinamento incessante, horas a fio com o olho colado na luneta, aprendendo que um atirador de elite não é apenas dedo firme, mas mente fria.
A primeira coisa que aprendi ainda moleque foi que a mira precisa de calma.
Essa frase não saiu da boca de nenhum instrutor, mas do meu pai.
Ele não era militar, mas foi o homem mais disciplinado que já conheci.
Trabalhava como mecânico, acordava antes do sol nascer e só voltava pra casa quando a última moto ou carro já tinha sido entregue. Apesar do cansaço, sempre encontrava tempo para mim. Aos sábados, quando a oficina fechava mais cedo, ele me levava para pescar em uma lagoa perto da nossa cidade.
Eu, com oito anos, não tinha paciência nenhuma. Jogava a vara na água e ficava mexendo, tentando adivinhar se o peixe vinha logo. Ele ria e dizia:
— Bernardo, a mira precisa de calma. Se você se agitar, assusta o peixe. Segura firme, respira fundo, espera a hora certa.
Na época, parecia apenas uma lição de pescaria. Anos depois, entendi que era uma lição de vida.
Meu pai morreu quando eu tinha dezesseis anos. Um enfarte fulminante. Aquele foi o primeiro tiro que a vida me deu sem aviso. Eu já treinava no tiro de guerra e sonhava com a carreira militar, mas a morte dele me fez ter certeza: eu ia honrar o homem que me ensinou disciplina sem nunca vestir farda.
Entrei no Exército aos dezoito e nunca mais parei.
Hoje, quando seguro meu rifle, ainda ouço a voz dele: “a mira precisa de calma”. No campo de treinamento, costumo ser o último a disparar, porque espero o momento perfeito. Os outros riem, dizem que sou lento demais. Mas no fim da contagem, meus tiros sempre estão no centro do alvo. E é por isso que ninguém duvida da minha precisão.
Mas calma não é frieza. Pelo menos não totalmente.
Eu sei a diferença. No trabalho, sou o soldado frio, calculista, que analisa vento, distância, vibração do dedo.
Mas em casa... em casa, eu sou apenas o marido da Joana e o pai do Miguel.
E é nesse ponto que a vida me surpreende. Porque quando tiro o uniforme e chego em casa, não existe sniper, não existe 1º Tenente. Existe apenas o homem que se ajoelha no tapete da sala para brincar de carrinhos com o filho, que adora o cheiro de bolo saindo do forno porque sabe que Joana sempre exagera no açúcar, que escuta música brega só porque ela insiste em cantar alto enquanto arruma a cozinha.
Eu não sei se acredito em destino. Mas sei que a vida me deu a Joana no momento certo.
Foi a cinco anos em uma festa de amigos, quando eu estava de licença depois de uma missão difícil. Ela era diferente de tudo que eu conhecia. Enquanto eu olhava o mundo com cautela, ela ria de tudo.
Enquanto eu fazia planos de guerra, ela sonhava com coisas simples, como ter uma casa com varanda e dois cachorros.
Eu me apaixonei no silêncio. E ela, de alguma forma, percebeu.
Nos casamos depois de dois meses juntos. O casamento foi simples, só família e amigos próximos. E foi ali que eu percebi que a vida não precisava ser feita apenas de batalhas. Podia ser feita também de amor.
Nove meses depois de nos casarmos, esse amor se multiplicou quando Miguel nasceu.
Eu pensei que sabia o que era disciplina, mas ser pai mostrou que eu não sabia nada.
O choro dele de madrugada me fazia atravessar a casa como se estivesse em missão noturna. O sorriso dele quando eu chegava do quartel era o único prêmio que eu precisava.
Miguel é tudo aquilo que um dia eu sonhei ser quando criança: alegre, cheio de vida, curioso. Ele tem quatro anos e já é apaixonado por aviões e helicópteros, sempre perguntando se um dia vai voar junto comigo em uma missão.
Eu não tenho coragem de dizer que espero que não.
Que ele escolha outro caminho, longe da violência, da mira, do sangue.
Mas, ao mesmo tempo, eu sei que se um dia ele quiser seguir meus passos, eu vou estar ao lado dele. Assim como meu pai esteve ao meu lado.
Esses pensamentos me acompanham sempre que estou no campo de tiro.
Hoje, por exemplo, acordei antes das cinco da manhã. Treino físico, corrida, exercícios de resistência. Depois, direto para a área de disparo. O vento estava forte, um desafio a mais. Ajustei a luneta, respirei fundo. O alvo estava a quase mil metros de distância.
No meu ouvido, a voz do instrutor dizia:
— Vento lateral, dez horas. Ajuste um ponto e meio.
Mas eu não ouvia só ele. Eu ouvia meu pai.
A mira precisa de calma.
Soltei o ar devagar, pressionei o gatilho e o disparo ecoou. Quando o papel sacudiu, o buraco estava exatamente no centro vermelho.
— Mais um, Tenente Lobo — disse o instrutor, anotando os pontos.
E assim seguiu o dia: disparos, avaliações, risadas entre colegas. Mas, por mais que eu ame essa vida, nada se compara ao momento em que estaciono o carro em frente à minha casa.
Miguel sempre corre para a porta quando ouve meu carro. Hoje não foi diferente. Ele veio com os bracinhos abertos, gritando:
— Papai!
Eu o levantei do chão, girei no ar e beijei o rosto suado dele. Joana apareceu logo em seguida, sorrindo daquele jeito que faz qualquer peso do mundo desaparecer.
— Bem-vindo, soldado — ela brincou, se apoiando na porta.
Beijei sua testa e, por um instante, pensei no quanto eu era abençoado.
Podia ser o melhor sniper, podia ganhar títulos, mas nada valia mais que aquilo.
Meu lar. Minha família.
E talvez seja isso que mais me assuste.
Porque no campo de batalha eu sei lidar com tudo: com a dor, com o risco, com a perda. Mas quando penso em perder eles... não sei se teria forças para suportar.
Fecho os olhos por um instante e a frase do meu pai ecoa novamente:
A mira precisa de calma.
Calma...
Mas e se um dia o alvo for a minha própria vida?
E se um dia eu tiver que mirar no impossível para salvar quem amo?
Eu não sabia, mas esse dia estava mais próximo do que eu podia imaginar.
ADICIONE NA BIBLIOTECA
COMENTE
VOTE NO BILHETE LUNAR
INSTA: @crisfer_autora