Soraia
Acordei com o corpo dolorido, mas com a pele ainda quente da memória.
Foi estranho.
A dor era uma coisa, latejante e real, nos lugares onde o Tito tinha batido, onde ele tinha agarrado. Mas por baixo da dor, tinha um outro calor, um formigamento que vinha de um lugar diferente.
Era a memória das mãos do Lobo.
As mãos dele são grandes, calejadas. Dava pra ver que não eram mãos de homem que vive na moleza. Mas naquela noite, elas tinham sido... suaves. Delicadas. Quando ele tava limpando o corte no meu supercílio, eu conseguia sentir a respiração dele perto do meu rosto, e os dedos, mesmo sendo ásperos, eram firmes e cuidadosos.
Nada daquela brutalidade de sempre.
Nada daquela pressão que machuca.
Meu Deus, que confusão na minha cabeça.
O mesmo corpo que o Tito usa pra ferir, pra humilhar, pra deixar marcas... o Lobo tocou pra curar. Foi ele que me levantou, que me levou pro banho, que me secou com a toalha como se eu fosse uma coisa frágil, quebradiça. E os olhos dele... enquanto ele fazia tudo aquilo, os olhos não paravam em mim.
Intensos.
Escuros.
Controlados, mas com um brilho de fogo lá no fundo, como se ele tivesse segurando um monstro na coleira. Um monstro que, por algum motivo, não queria me machucar.
Tentei me convencer de que era loucura. Que o desespero tá me fazendo criar coisas na mente. Que um cara como o Lobo, um segurança do morro, não é diferente dos outros. É tudo farinha do mesmo saco.
Só sabe usar violência com mulher.
Mas aí eu me lembro do Evandro.
Do jeito que o Lobo olha pro menino.
Do jeito que o Evandro sorri pra ele, com uma confiança que eu nunca vi ele ter com ninguém aqui.
Não é possível que seja tudo fingimento. Não dá pra fingir um negócio daquele.
Esse sábado tá sendo um tormento. Um tormento gostoso e assustador ao mesmo tempo. Desde que levantei da cama, me pego observando ele de longe. Ele tá sempre por perto, fazendo a ronda, mas parece que tá mais... presente. Como se os olhos dele tivessem um ímã, e eu sou um pedaço de metal.
Cada vez que nossos olhares se encontram, mesmo que seja por uma fração de segundo, é como se um choque percorresse meu corpo. Um calor sobe da barriga pro peito, e meu coração dispara.
É desejo?
É.
Eu não posso negar.
É aquele negócio represado, a vontade de ser tocada de um jeito que não seja pra doer. Mas é mais que isso. É curiosidade. Quem é esse homem? O que ele esconde por trás daquela cara fechada? Por que ele me tratou daquele jeito?
E aí vem a culpa. Uma culpa que afia as garras e me rasga por dentro. Como eu posso sentir isso por outro homem? Como meu corpo pode responder desse jeito quando o meu "marido", o homem que eu devia amar, é a fonte de todo meu sofrimento? E o pior: o Lobo é segurança do Tito. Ele é pago pra proteger a propriedade dele. E eu sou uma das propriedades.
Isso é errado.
É doentio.
É perigoso.
Mas... e se?
Essas duas palavras não saem da minha cabeça. E se ele for diferente? E se ele puder me tirar daqui? E se...
Aí, no meio da tarde, aconteceu uma coisa que arrebentou com todos os meus muros.
O Evandro tava entediado em casa, e o Lobo, sem falar muita coisa, pegou uma bola velha que tinha no quintal e chamou o menino pra jogar. Eu fiquei na varanda, fingindo que tava olhando o horizonte, mas era só desculpa pra ficar vendo.
E foi a cena mais linda e mais dolorosa que eu já vi. Os dois, lá no gramado. O Lobo, aquele homem grande, todo tatuado, durão, chutando a bola com uma leveza que eu nunca imaginei. E o Evandro, meu anjinho, correndo atrás, rindo.
Rindo de verdade. Daquela risada gostosa, solta, de criança.
O Lobo deixou o menino roubar a bola dele, e depois fingiu que tropeçava e caía no chão, fazendo o Evandro dar uma risada ainda maior. Eles rolaram na grama, brincando, se divertindo. O Lobo sorriu. Eu vi ele sorrir. Um sorriso largo, que chegou aos olhos, transformando completamente o rosto dele. Ele ficou... lindo. E jovem. Parecia que o peso do mundo tinha saído dos ombros dele por alguns minutos.
Naquele momento, vendo aquele homem brincar com a criança que não é dele, mas que ele trata com mais carinho que o próprio pai, alguma coisa dentro de mim desmoronou. Um pedaço de gelo que eu nem sabia que existia derreteu no meu peito. Senti um aperto no coração, uma coisa quente e doce que se espalhou por todo o meu corpo.
Não era mais só desejo. Era... um sentimento. Mais forte, mais profundo. Eu tô com medo de dar nome.
Eu me peguei imaginando. Imaginando como seria acordar todo dia e ver aquele sorriso. Imaginando como seria ser tratada com aquele mesmo cuidado que ele trata o Evandro. Imaginando como seria ser amada por um homem daquele, em vez de ser possuída por um monstro.
Foi aí que eu percebi.
Tô me apaixonando.
É rápido, é irracional, é a coisa mais burra que eu poderia fazer nessa situação. Mas tô. Tô me apaixonando pelo segurança do meu "marido". Pelo homem que é pago para me manter numa gaiola. Sem saber quem ele realmente é. Sem saber nada dele. Só pelo que meus olhos veem e meu coração, teimoso, insiste em sentir.
A noite chegou, e com ela o baile funk lá na quadra. O Tito exige que eu vá. É parte da fachada. A mulher bonita no braço dele. Eu me arrumei com um vestido justo, aquele que ele gosta. Passei base grossa pra disfarçar os hematomas no rosto, batom vermelho pra chamar a atenção pra boca e não pros olhos cansados.
Quando saí do quarto, ele estava lá. Parado no corredor da sala, de braços cruzados. O Lobo. A postura dele era de segurança, mas o olhar... o olhar era de homem. E quando ele me viu, vestida daquele jeito, foi como se a temperatura do corredor subisse dez graus.
Os olhos dele queimaram.
Percorreram meu corpo do jeito que um homem percorre uma mulher que ele deseja. Devagar, apreciando cada curva. Pararam no decote, na cintura, nos meus lábios. E eu senti. Senti aquele olhar como um toque físico.
Minha pele ficou quente, meu estômago embrulhou. Ficamos parados, nos encarando, num silêncio que gritava. Ele com aquele controle todo, mas os olhos entregando tudo. Eu, tremendo por dentro, sentindo uma mistura de culpa, medo e uma vontade doida de correr pra ele.
Foi quando a porta da frente se abriu.
— Pronta, mulher? — a voz do Tito ecoou, cortando a tensão no corredor como uma faca.
Ele veio direto pra mim, me puxou pra perto dele com força, e cravou os lábios nos meus. Um beijo de posse, duro, sem carinho. Só pra marcar território. Pra lembrar a mim, de quem eu pertenço. O gosto dele, de cigarro e cachaça, me enjoo.
Quando ele se afastou, eu olhei por cima do ombro dele. O Lobo ainda estava parado. A expressão dele estava neutra de novo, o segurança profissional. Mas os punhos estavam cerrados. E os olhos... os olhos ainda queimavam, mas agora com um brilho diferente.
De raiva.
De ódio.
O Tito me puxou pelo braço e saímos, deixando o Lobo pra trás com o Evandro.
Desci a ladeira do morro de braço dado com o Tito, o som do funk batendo forte nos meus ouvidos. Mas minha cabeça não estava no baile. Estava no corredor, naquele olhar que me queimou a alma.
Estou com medo.
Medo do Tito.
Medo desse sentimento que tá crescendo dentro de mim. Medo do que o Lobo é capaz de fazer.
Mas, pela primeira vez em muito tempo, o medo não é a única coisa que eu sinto. Tem um fio de esperança. Frágil, perigoso, mas real. E ele tem o rosto de um segurança de olhos intensos que sabe tratar uma ferida com as mãos.