O olhar que denuncia

1907 Words
Soraia O que é que tá acontecendo nessa casa? Tá estranho. Tudo tá na mesma, o cheiro de cerveja e maconha, o som do funk lá longe, aquele aperto no peito quando ouço o carro do Tito chegando. Mas tem uma parada diferente, e o nome dessa parada é Lobo. O cara é quieto, ate demais. Não é o quieto assustador, igual os outros vapô que ficam te encarando com cara de quem tá contando os seus dentes. Não. Ele é quieto de observar. De ficar na dele, nos cantos, mas com os olhos sempre abertos. E esses dias, eu tô reparando uma coisa que tá me dando um frio na barriga. É o jeito que ele olha pro Evandro. Pro meu Evandro. Porque é assim que eu chamo o moleque na minha cabeça, mesmo sabendo que não é meu, que ele tem uma mãe em algum lugar, que caiu nesse inferno por acidente. Mas eu cuido dele como se fosse. É a única coisa que não tá contaminada nesse lugar. E o Lobo... o Lobo olha pra ele com um negócio que não é de segurança. É de... cumplicidade. É o olhar de quem conhece a história sem precisar ouvir. De quem tá ligado nos códigos. Hoje de manhã, por exemplo. O menino tava na sala, tentando amarrar o cadarço do tênis. Ele tem dificuldade, coitado, a mão ainda é pequena. Do nada, o Lobo se aproxima, sem fazer alarde. Não falou "deixa que eu faço" igual os outros fariam, cheios de grosseria. Ele simplesmente se ajoelhou do lado, e com aquelas mãos grandes, que deviam ser pra segurar arma, ele mostrou o jeito certo de fazer o laço. Um movimento paciente, devagar. E o Evandro, que com geral é um anjinho calado, com o Lovo ele... conversa. Ele sorriu. Um sorriso de canto de boca, tímido, mas foi um sorriso de verdade. Eu não ouvia o que eles tavam falando, mas vi o menino apontar pro carrinho de plástico e o Lobo pegar e empurrar, fazendo aquele barulho de motorzinho, "vruum vruum". E o Evandro deu risada. Uma risada baixinha, mas foi a primeira vez que ouvi ele rir desde que chegou aqui. Na hora, meu coração deu um pulo. Não foi só de alegria por ver o menino feliz. Foi um susto. Porque ninguém ali dentro faz o Evandro rir. Nem eu consigo, direito. O medo é maior que a gente. E do nada chega um segurança, um cara durão, e em dois dias consegue o que eu não consegui em semanas. Será que eles se conhecem? Essa ideia não sai da minha cabeça. É maluca, eu sei. De onde um segurança do morro ia conhecer um menino bem cuidado, provávelmente de classe média que caiu de paraquedas aqui? Mas o coração não obedece a lógica, não. O coração fica ali, martelando: "Tá vendo, Soraia? Tá vendo o olhar deles?" O Lobo não olha pra mim com cumplicidade. Ele me olha com... pena? Não, também não é isso. É como se ele me visse. De verdade. Os outros me veem como a mulher do Tito, um troféu, um móvel da casa. O Lobo me olha e parece que tá lendo a minha ficha, sabendo que tô presa aqui, que tenho medo, que toda noite eu rezo pra acordar em outro lugar. Isso me assusta mais que a raiva dos outros. Porque gente com sentimento é imprevisível. E nesse lugar, imprevisível é perigoso. A noite chegou, e com ela, aquele clima pesado. Dá pra sentir no ar. O Evandro já tava dormindo no outro quarto – o Tito mandou colocar ele lá, disse que criança tem que aprender a dormir sozinha, mas eu sei que é pra me afastar dele, pra me deixar mais isolada ainda. Eu tava na sala, tentando assistir qualquer coisa na TV, mas era só ruído. A mente não parava. Aí ouvi o carro. O ronco do motor do Tito é diferente, mais agressivo. E pelo barulho da porta batendo, eu já sabia: ele tava alterado. Bebeu, ou perdeu grana, ou alguém fez alguma coisa que não devia. E quando ele vem assim, alguém sempre paga o pato. E hoje, o pato era eu. Ele entrou jogando a chave na mesa, a chave voou deslizando pela mesa e caiu no chão. O olho vermelho, a respiração carregada de cachaça e ódio. — Onde tá minha janta, mulher? — ele gritou, mesmo vendo que não tinha janta na mesa. — Tito, você não avisou que vinha jantar em casa, eu... Não deu tempo de terminar. Ele veio pra cima de mim num passo só, o rosto contra o meu. O cheiro de álcool era de dar enjoo. — Então a minha casa não é sua casa, é? Eu tenho que avisar pra comer na MINHA CASA? — ele berrou, cuspindo na minha cara. Eu me encolhi, instinto puro. — Não é isso, Tito, é que... Pah. O tapa veio com força de mão aberta, estalando no meu rosto. Minha visão embaçou por um segundo, e o gosto de sangue encheu minha boca. Eu caí de lado no sofá, e ele já veio puxando meu cabelo. — Sua v***a inútil! Tô sustentando uma mulher que não sabe nem ter comida pronta! E ainda fica com essa cara de cu o dia inteiro! Ele me jogou no chão. Eu gritei, mas é um grito abafado, que não ecoa além do cômodo. Ninguém vem. Ninguém nunca vem. Os seguranças lá fora sempre ouvem e viram a cara. É a lei do morro: ninguém mexe na mulher do chefe, nem mesmo pra ajudar. Ele começou a me chutar. Não no rosto, ele é cuidadoso com o que aparece. É nas costas, nas pernas, onde a roupa cobre. Cada pontapé era uma explosão de dor, uma mensagem clara: você não é nada. Você é minha. Eu me encolhi no tapete, tentando me fazer pequena, sumir. As lágrimas escorriam quentes, misturando com o sangue do lábio. E no meio daquela agonia, eu pensei no Evandro. Será que ele acordou com o barulho? Será que ele tá com medo? Pelo amor de Deus, que ele não venha pra sala. Foi aí que eu vi. Na porta da sala, uma silhueta parada. Era o Lobo. Ele não tinha feito um som. Só estava lá, imóvel. A luz do corredor atrás dele deixava o rosto na sombra, mas eu conseguia ver a linha do seu queixo, a postura rígida. Ele não parecia surpreso. Parecia... esperando. E os olhos. Na penumbra, os olhos do Lobo brilhavam. Não era o brilho vazio dos outros. Era um brilho carregado. De raiva. De nojo. De uma tensão animal, como um elástico prestes a estourar. O Tito nem viu. Tava ocupado me xingando, cuspindo todas as palavras que cortam mais que porrada. — ...e ainda acha que é alguém? Você não é NINGUÉM, Soraia! Ninguém sem mim! Lixo! Ele se abaixou de novo pra me puxar pelo braço, e eu gritei, instintivamente, fechando os olhos. Quando abri, o Lobo tinha dado um passo pra dentro da sala. Só um. Mas foi um passo que ecoou mais que todos os berros do Tito. A mão dele não tava na arma, mas estava fechada ao lado do corpo, os nós dos dedos brancos de tão apertados. Ele ia pular. Eu sabia. Ele ia cruzar a sala em dois segundos e eu não sabia o que ele faria com o Tito, mas seria algo que não tinha volta. Algo que ia acabar com todos nós. O Tito ia matar ele, ia matar o Evandro por desprezo, e eu... bem, eu já tô morta por dentro mesmo. E aí, no meio da dor, do sangue e do desespero, aconteceu uma coisa que nem eu entendo. Eu, caída no chão, consegui levantar a mão. Um gesto mínimo, quase imperceptível. A palma da minha mão virada pra ele, os dedos tremendo. Um gesto claro: Para. Não vem. Nosso olhares se prenderam. Na escuridão, foi como se a gente tivesse gritado um com o outro sem falar palavra. Ele vai te matar, meus olhos diziam, cheios de lágrima. Eu não me importo,os olhos dele respondiam, cheios de fogo. Pelo Evandro,eu supliquei, sem um som. Pelo Evandro,ele entendeu. Eu vi a guerra dentro dele. Vi o instinto de proteção, a raiva pura, brigando com a razão, com a missão dele, seja lá qual for. Vi o homem querendo explodir, e o segurança segurando a barra. Foi um segundo que durou uma hora. E então, ele cedeu. Não com um recuo, mas com uma imobilidade ainda mais tensa. Ele não saiu, não fugiu. Continuou ali, na porta, como uma estátua de ódio contido. Um aviso silencioso. O Tito finalmente percebeu a presença. Ele soltou meu braço e se virou, irritado. — O que foi, Lobo? Tá com pena? — ele zombou, com um sorriso torto. Lobo não falou nada. Só manteve o olhar fixo. E não era um olhar de medo. Era um olhar de... avaliação. Como se estivesse recalculando uma trajetória. — Tô cuidando da minha mulher, problema? — Tito desafiou, dando mais um passo na direção dele. — Não tem problema, chefe — a voz do Lobo saiu rouca, mas controlada. — Só vim ver se tava tudo sob controle. Ouvi barulhos. — Tá tudo sob controle, sim. Pode voltar pro seu posto. Lobo não se moveu imediatamente. Ele desviou o olhar do Tito e olhou para mim, no chão. E foi só uma fração de segundo, mas foi o suficiente. Naquele olhar rápido, eu não vi pena. Eu vi dor. Eu vi empatia. Eu vi humanidade. Coisas que nenhum homem ali possuía. Ele então fez um aceno de cabeça quase imperceptível e se virou, saindo da sala. Mas a energia dele ficou. A ameaça silenciosa ficou pairando no ar. O Tito cuspiu no chão, perto de mim. — Sortuda. O cachorro veio te defender. — Ele deu mais um chute de leve no meu quadril, mais por hábito do que por raiva agora, e foi embora, subindo as escadas, reclamando sozinho. Eu fiquei deitada no tapete, sentindo as dores latejarem no corpo. O lábio inchado, as costas ardendo. Mas a mente... a mente estava mais clara do que nunca. O Lobo é diferente. Ele não é um deles. Seja quem ele for, o que ele quer, ele sente. E isso torna ele a pessoa mais perigosa dessa casa inteira. Porque homem que sente, homem que tem algo a perder ou algo a proteger, é capaz de tudo. Ele conhece o Evandro. Eu não sei como, nem porquê, mas ele conhece. E ele ia matar o Tito por minha causa hoje. Ou por causa do menino. Ele ia matar, e ia ser morto, e ia acabar com a frágil paz podre que a gente tem aqui. Eu me arrastei até o sofá, me encolhi nele. O medo era uma âncora me puxando para o fundo. Mas, pela primeira vez, não era um medo sozinho. Era um medo que dividia espaço com um fio de esperança. Uma esperança perigosa, doida, que pode custar a vida da gente toda. Mas é a única que eu tenho. O Lobo é perigoso. E eu vou ficar de olho. Porque se ele é a ameaça, ou se é a salvação, eu preciso descobrir antes que essa bomba-relógio que é essa casa exploda e leve a gente tudo junto. ADICIONE NA BIBLIOTECA COMENTE VOTE NO BILHETE LUNAR INSTA: @crisfer_autora
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