Evandro Júnior?

1151 Words
Soraia Me chamo Soraia, tenho dezenove anos, mas me “casei” aos dezessete. Sim, entre aspas mesmo — porque casamento de verdade tem escolha, né? No meu caso, foi mais um “você é minha mulher agora” e pronto. Tito decidiu, e quem sou eu pra contrariar o dono do morro? No começo eu até tentei me enganar… fingir que tava tudo bem, que ele me dava as coisas que eu nunca tive: casa boa, roupas caras, perfume importado, comida farta. Mas quando você dorme com medo do homem que divide a cama contigo, essas coisas perdem o valor rapidinho. A gente não tem filho, não por falta de tentativa, mas talvez Deus saiba o que faz. E naquela noite — a noite que mudou minha vida — eu entendi que Ele tava me preparando pra algo que eu nunca ia imaginar. Tava deitada, assistindo novela no volume baixinho, quando a porta abriu de repente com aquele estrondo que só o Tito sabia fazer. O coração veio na boca. Ele entrou com o rosto fechado, os olhos vermelhos de raiva e uma criança no colo. — Cuida desse moleque. Ele é teu filho a partir de agora. O nome dele é Evandro Júnior, tá ligado? — disse, jogando o menino em cima de mim e dando aquele sorriso estranho. Eu m*l consegui entender. A criança caiu de lado, encolhida, olhando pra mim assustada. Devia ter uns cinco anos, seis no máximo. — Tito, é teu filho? — perguntei, ainda sem entender nada. Ele me lançou um olhar que congelou meu sangue. Um olhar que dizia “não pergunta mais nada se quiser continuar respirando”. — Já disse, é teu filho e se chama Evandro Júnior. — repetiu, e saiu trancando a porta por fora. Fiquei ali, com o barulho do trinco ecoando na cabeça e o coração acelerado. O menino tava imóvel, deitado na cama, todo encolhido. A cabeça ainda em cima da minha perna, como se tivesse medo até de respirar. — Oi, como você se chama? — perguntei baixinho, tentando não assustar. Ele ergueu os olhos marejados e respondeu com a voz tremida: — Evando Junho. Falou tudo embolado, nervoso. Mas aquele nome bateu estranho. Evandro é o nome do Tito. — Esse não é o seu nome de verdade, né? Pode me contar o seu nome? Prometo que não vou contar pra ninguém. — pedi com calma. Ele hesitou, olhou pra porta, olhou pra mim e sussurrou: — Não posso… o homem m*l disse que agora eu sou Evando Junho pra sempre. “O homem mal.” Foi o que ele disse. E naquele momento eu entendi que Tito não só tinha trazido o menino, mas também tinha botado medo nele. — Tá bom, tudo bem. Então, Evandro Júnior, quer um leite fermentado? — perguntei tentando mudar de assunto. Peguei um do frigobar e entreguei pra ele. Ele sentou, me devolveu pra abrir, como quem ainda não sabe se pode confiar. Abri a tampinha e devolvi. O menino virou de uma vez só, como se não bebesse nada há horas. — Tá com fome? — perguntei. Ele assentiu com a cabeça. — Não tenho comida aqui, só besteira… gosta de biscoito recheado? — Minha mãe diz que faz m*l. — respondeu, e logo em seguida pareceu se arrepender de ter falado. — Realmente, sua mãe tem razão. Mas aqui no quarto é tudo o que a gente tem. Se eu pudesse, ia lá na cozinha fazer uma comida de verdade pra nós dois — arroz, feijão, carne e batata. Mas eu também não tô podendo sair daqui. Falei quase num desabafo, e ele me olhou com aqueles olhinhos tristes, cheios de lágrima, mas que não deixavam nenhuma cair. Eu conhecia aquele olhar. Era o mesmo que eu via no espelho. O olhar de quem aprendeu a esconder o medo. — Você gosta de brincar de quê? — perguntei, tentando deixar o clima mais leve. — De carrinho. Mas o homem m*l quebrou o meu. Meu peito apertou. Me levantei, abri uma gaveta e peguei um carrinho velho que tinha sobrado de uma cesta de Natal que deram aqui no morro. Entreguei pra ele. — Toma, é seu agora. Ele pegou devagar, como quem ainda não acredita. Depois de alguns segundos, passou o dedinho nas rodas e começou a empurrar o carrinho na coberta, fazendo “vruuum” baixinho. O quarto parecia outro. Fiquei observando ele brincar, tentando entender o que Tito tinha feito. De onde ele tirou esse menino? De quem ele arrancou? Eu conheço o Tito, sei do que ele é capaz… mas pegar uma criança? Isso era diferente. Isso era pesado até pra ele. O menino brincava e eu via pequenos machucados no braço, uns roxos na perna. Meu estômago virou. — Evandro… — comecei, e parei. — Você lembra de onde veio? Tipo, sua casa, sua escola, sua mãe? Ele balançou a cabeça, mas o olhar denunciava que lembrava sim. Só não podia falar. — Ele vai me buscar. — disse baixinho. — Quem? Seu pai? Ele assentiu. — Mas o homem m*l disse que se ele subir o morro, vai dormir pra sempre. Meu coração quase parou. Aquela frase martelou na minha cabeça. “Dormir pra sempre.” Senti um arrepio percorrer meu corpo. Tito tinha feito alguma merda muito grande. Acariciei o cabelo do menino, tentando disfarçar o desespero. — Olha, Evandro… você tá seguro aqui comigo, tá bom? Ninguém vai te machucar enquanto eu estiver aqui. Ele me olhou com aqueles olhos lindos, enormes e perguntou: — Você tem medo do homem m*l? Engoli seco e respondi: — Tenho. Mas eu aprendi a esconder o medo. Igual você. Ele sorriu de leve, o primeiro sorriso desde que chegou. Aquele sorriso me destruiu por dentro. Naquela noite, ele adormeceu deitado no meu colo. Eu fiquei ali, fazendo carinho no cabelo dele, olhando pra parede e pensando no que diabos o Tito tinha aprontado. Porque no fundo, eu já sabia: aquele menino não era filho dele. Mas se não era, de quem era? E por que ele precisava esconder isso, a ponto de obrigar uma criança de cinco anos a mudar de nome e fingir que era outra pessoa? Não dormi. Fiquei acordada a noite toda, com o coração apertado e a mente girando em mil perguntas. O som do morro continuava o mesmo: os tiros lá longe, o funk tocando, o barulho das motos subindo e descendo. Mas dentro do quarto, só o som da respiração leve de um menino que caiu de paraquedas na minha vida. E no meio daquela bagunça toda, eu senti algo que não sentia há muito tempo: vontade de proteger alguém. Mal sabia eu que aquele menino era o início do fim da minha vida. Porque a partir daquela noite, nada mais seria igual. ADICIONE NA BIBLIOTECA COMENTE VOTE NO BILHETE LUNAR INSTA: @crisfer_autora
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