O menino

1596 Words
LOBO No dia seguinte acordei com o peso do sono ainda grudado nas pálpebras, mas a cabeça afiada como lâmina. Dormir ali em cima do morro tem esse preço: pouca paz, muita vigília. Já tava pronto pra levar o menino pra escola antes do sol esquentar de verdade. O carro onde eu ia trabalhar já estava limpo — lavagem superficial, perfume ambiente — e eu já tinha tomado café sem pressa, como quem treina paciência. O dono do morro, Tito, já tinha saído pro QG; vi a sombra dele sumir pela rua quando peguei o boné e desci as escadas devagar. Logo a Soraia apareceu no corredor reclamando baixo, brigando com o filho que enrolava pra se arrumar. — Criança é assim mesmo, eles enrolam pra ver se desistimos e assim eles ficarem em casa brincando. — Eu disse, como quem dá aula de paciência, foi automático, mantendo o personagem, a voz morna. Ela me olhou, curiosa, enquanto tomava o café. — Tem filhos? — perguntou, me encarando direto, a caneca tremendo um pouco na mão. — Tenho, mas não mora comigo. — respondi sincero no tom, e já mudei o foco. — Ele é seu único filho? — perguntava como quem não procura surpresa. Ela respondeu seca, sem desviar o olhar: — Na verdade eu não tenho filhos. — engoliu um gole do café — O Evandro é filho do Tito. Aquelas palavras bateram na minha mente como chumbo, por um instante fiquei feliz por ela não ter filhos com aquele monstro. Respirei, servindo mais café, e ouvi o menino descendo as escadas a passos lentos. A cena que me atravessou de forma instantânea: quando vi o menino, era o Miguel, o meu Miguel, quase derrubei a xícara. Quase. Meu corpo inteiro congelou e eu fiz um sinal minúsculo com o olhar — um movimento que ele já entendia porque já tinha visto o mesmo gesto mil vezes nas brincadeiras que faziamos. Nós não podia chamar atenção. Não ali, na frente da Soraia. O Miguel me olhou com os olhos arregalados, e por um segundo vi o estranhamento — o reconhecimento, de que o pai dele não o deixaria ser criado pelo inimigo. Eu apertei a mandíbula até doer. A raiva tentou escapar, as unhas queriam cavar a madeira do braço da cadeira, mas a disciplina que me manteve vivo por esses meses que pareciam anos me segurou. Eu precisava de respostas, não de sangue naquele momento. Resgatar eles com vida. Coletar as provas. O que passava pela minha cabeça era claro e objetivo: o Miguel tá bem. Meu filho tá vivo. Aquele instante foi uma explosão de alívio que queimou junto com a raiva. Queria agarrar ele, tirar a tristeza do rostinho dele, beijar a testa e nunca mais largar meu filho. Queria também acabar com a vida do Tito com as minhas próprias mãos. Mas Joana? Cadê minha mulher? Onde ela estava? A incerteza queimava igual pólvora. Não podia perder a cabeça agora. Precisava montar estratégia: observar, infiltrar, extrair. Os dois vivos. — E aí, Evandro, vamos pra escola? — mantive o personagem com voz neutra, controlada, aquela que disfarça tudo. O Miguel me olhou, ainda sem entender direito, mas entrou no personagem também. — Vamos — disse, sem tirar os olhos dos meus. Ele falou baixo, só o suficiente pra que Soraia não estranhasse. Vestiu o casaco que a Soraia deixou no cabide, ajustou o boné. A precisão das pequenas ações dizia muito: meu filho foi treinado a obedecer, a fingir, a guardar medo no bolso. Vi o joelho dele roxo — cicatrizando m*l. Pensei nos sinais: medo, ordens, silêncio. Saímos pra rua. O topo do morro dava uma vista linda pro restante da cidade; parecia um mundo encolhido, com suas regras próprias. O carro do Tito estava estacionado mais adiante, limpíssimo, blindagem e aparência. Subi, abri a porta, e o menino entrou calmo, como se aquele fosse seu trajeto comum. O outro segurança lançou uma olhada na minha cara, mediu a situação e fechou a porta. No caminho até a escola do morro — uma construção simples, cheia de bandeiras e portas de metal — fui jogando perguntas, mas com cuidado, sempre no limite do natural. — E você costuma ficar assim na hora de sair? — perguntei, observando o pé dela descalço que remetia vontade de correr. Soraia me respondeu com voz baixa: — Eu não posso sair do carro, então nem calço nada nos pés. A resposta não me surpreendeu. O jogo era claro: Soraia defendia seu mini-mundo como podia, e o Tito controlava o entorno com punho de ferro. Chegamos à escola. A entrada era vigiada por dois homens com olhares duros, mas ao ver o sorriso do menino e a presença da “dona”, relaxaram. Gente do morro tem regras: se o chefe manda proteger, proteja. Eu me mantive ereto, como quem faz parte do cenário. Entreguei o lugar do ponto de observação pra um olhar que sempre buscava brechas. Observei a rotina: chegada, conferência, olhares direcionados, dois filhos de vapô deixados na escola no mesmo horário que o Miguel. Rotina é ouro pra quem caça. Enquanto Soraia conversava de dentro do carro com uma das mães, eu dei dois passos atrás, me afastando, e comecei a mapear. Anotei mentalmente a saída de emergência, as rotas para o beco, os pontos cegos, os homens que riam demasiado e os que pareciam medir facas mais do que palavras. Um dos porteiros, velho e de cara marcada, falou com o menino, e eu ouvi o nome de um moleque que frequentava a mesma turma, filho de um rapaz da contenção. Esses nomes formavam uma teia que eu já começava a costurar. Voltei a me aproximar quando Soraia falou: — Logo estamos de volta, Evandro, se comporta — disse, num tom que misturava afeto e ansiedade. — Tá, mamãe — respondeu o meu menino, sem descolar os olhos de mim por um segundo que durou uma eternidade. No caminho de volta, meu cérebro não parava. Observava Soraia com olhar cirúrgico: o jeito de falar baixo, a tentativa de esconder a pulsação da mão. Mas ao chegar em casa, reparei o modo como seus olhos buscavam qualquer desculpa pra não encarar a porta onde Tito poderia entrar. Ela era uma peça que poderia me dar informações se confiasse em mim. Ou poderia me trair se descobrisse meu passado. Eu precisava de confiança sem revelar quem eu era. Decidido, mantive a máscara: a voz seca, a boca calada, a face neutra. No fim da tarde em casa, com o Miguel já de volta a Soraia preparou um pequeno pratinho pro menino e coçou a cabeça como quem resiste ao cansaço. Eu me sentei na sala, olhando a janela, calculando os riscos. Cada detalhe era pista: relógio que não marcava hora, fotos cortadas, armários vazios. A casa linda na verdade era prisão por dentro. Enquanto o menino comia, eu me dirigia a Soraia com cuidado medido: — Eu vou precisar sair por uns instantes hoje, ver umas coisas no mercado. Posso deixar o menino com você? O Jacaré me disse que eu posso sair ao menos duas vezes... — perguntei, soando casual. — Tá — respondeu, como quem aceita um pedido simples. Mas vi a tensão nos ombros. — Vou ficar por perto. — Completei. Precisava ganhar passe livre nos minutos onde ela me vigiaria com menos atenção. Quando fechei a porta e caminhei pro beco, senti a adrenalina subir. O morro respirava, e eu o escutava. Procurei um ponto alto, sentei num degrau de concreto e puxei do bolso uma foto pequena, amassada — da Joana com o Miguel. Olhei pro rosto do meu filho, pro sorriso que ele não sabia que iluminava mundos. Respirei fundo e voltei a camuflar. O jogo só começava. Eu tinha Miguel sob meus olhos. Agora precisava encontrar a Joana. E pra isso, o morro inteiro era pista e armadilha. Quando voltei, Soraia me olhou diferente. Havia um pedido nos olhos dela, ou talvez fosse só a minha leitura errada de um olhar. De qualquer forma, baixei a cabeça, escondi a urgência, e me aproximei do menino. Ele me estendeu a mão com o carrinho de plástico. Peguei e empurrei pela manta, fazendo "vruuum", exatamente como havia feito tantas vezes antes disso tudo acontecer. Enquanto o carrinho corria, meu plano se desenhava mais claro: ganhar migalhas de confiança, ouvir nomes, mapear rotas e entender onde o Tito colocava as pessoas que ninguém devia encontrar. A próxima etapa seria mais delicada — conseguir mais uma saída pra poder ir no QG durante a madrugada, vasculhar documentos, checar registros de carros, falar com olheiros bêbados que sempre sabem demais depois de uns goles. Cada movimento precisava ser pensado como um disparo: exato, limpo, mortal. O menino olhou nos meus olhos por um instante e sussurrou, quase inaudível: — Você tá diferente. Aquela frase me atravessou. Diferente. De todos os outros? De quem o aprisionou? Não questionei. — Continua assim campeão, logo sairemos dessa prisão. Ele voltou a brincar, e eu respirei. O jogo continuava. E eu, Lobo, estava dentro da toca. Quando a porta fechou atrás de Soraia e do menino, fiquei de pé, olhando o rastro que eles deixaram. A casa, por ora, era fachada. Por dentro, eu já sabia: ia precisar ser mais rato do que lobo, mais sombra do que mordida. Segurança do garoto, guarda do segredo — e caçador da verdade. A noite chegaria com mais perguntas. E eu estava pronto pra todas. ADICIONE NA BIBLIOTECA COMENTE VOTE NO BILHETE LUNAR INSTA: @crisfer_autora
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