Lobo
Porra, esses últimos dois meses foram um inferno. Um inferno organizado, metódico, planejado pelo Tito só pra fuder comigo. O filho da p**a me botou pra fazer um monte de trampo longe do morro. Fico o dia inteiro resolvendo pepino em boca de fumo de aliado, fazendo escolta de mercadoria, cobrando dívida de Zé ruela...
Qualquer coisa que me mantenha longe daquela casa. Longe do Miguel. Longe dela.
Cada dia que passa, a agulha da ansiedade cava mais fundo no meu peito. A Joana tá em algum lugar, e eu tô aqui, fazendo hora, sendo cão de guarda de um império de merda enquanto a mulher da minha vida pode tá sofrendo, morrendo... ou pior. E eu não consigo avançar p***a nenhuma na investigação. Desde aquele papel, aquela palavra "aborto", ainda tá queimando na minha mente, não achei mais nada.
Nada!
É como se o Tito tivesse virado uma fortaleza, e eu tô do lado de fora, andando em círculos.
Quando finalmente volto pra casa, exausto, com o corpo suado e a alma cheia de frustração, tento agir naturalmente. Cumprimento o Evandro com um aceno, um "e aí, campeão?" que soa falso até pros meus próprios ouvidos. O menino me olha com aqueles olhos que pedem socorro, mas o Tito tá sempre por perto, ou um dos vapô, vigiando. E o pior: o Tito tá levando e buscando o Miguel da escola pessoalmente.
Todo santo dia.
É claro.
Ele não quer que eu chegue perto.
Não quer que eu tenha nenhuma chance de falar sozinho com o menino, de extrair alguma informação, de planejar alguma coisa. Parece até que ele sabe mais do que demonstra.
A Soraia... bom, a Soraia é um capítulo à parte. A gente se evita como se fosse uma praga. Nos cruzamos no corredor e é um baile de desvio de olhar. Eu sinto o peso do que a gente fez, da conexão doida que a gente criou, mas também sinto o gelo da revelação que fiz sobre a Joana.
É um rolo de sentimentos que eu não posso ter, não agora. Mas ver ela, mesmo de longe, me dá uma pontada no peito. Ela tá mais pálida, parece mais frágil. Será que o Tito tá batendo ainda mais nela? A culpa por não poder fazer p***a nenhuma é um peso a mais nas minhas costas.
A pressão tá me esmagando.
Eu não tô conseguindo investigar, não tô conseguindo proteger ninguém, não tô conseguindo encontrar minha mulher. Tô sendo um fantoche, um boneco nas mãos do Tito, e ele sabe.
Ele deve estar rindo da minha cara.
Hoje, de noite, depois de mais um dia perdido, sentado na cama dura do meu quarto, eu me dei um prazo. Olhei no espelho para aquele cara com olheiras e o rosto tenso e falei baixo:
— Um mês. — a voz saiu rouca, mas firme. — Se eu não achar a Joana em um mês, eu vou embora com o Miguel sem olhar pra trás.
Falar em voz alta deu um peso de realidade. É um plano de merda? É. Significa desistir da Joana? Talvez.
Mas eu não posso deixar meu filho aqui. Não por mais tempo. Se em trinta dias eu não tiver nenhum pingo de esperança, eu arranco o Miguel daqui na marra, mesmo que seja no tiro e porrada. É a promessa mais difícil que eu já fiz, mas é necessária.
E pra cumprir essa promessa, eu preciso de informação. Preciso daquela pasta. A que eu vi no escritório dele. Se tem algo que vai me dar uma pista, tá ali.
Espero a casa toda dormir.
O silêncio é absoluto, quebrado só pelo latido distante de algum cachorro no morro. Me movo como uma sombra, deslizando pelo corredor escuro. A porta do escritório do Tito tá trancada, como sempre. Mas dois meses atrás, depois do susto com o Jacaré, eu criei um plano B. Peguei um molde da chave num pedaço de sabão e consegui uma cópia com um ferreiro fora do morro, num dia desses meus "serviços externos".
Minhas mãos suam enquanto enfio a chave na fechadura. Ela gira com um clique baixo, suave. Por um instante, eu quase não acredito que funcionou. Abro a porta devagar, entro e fecho atrás de mim.
O escritório tá igual, aquele cheiro de couro caro e charuto. A mesa imponente no centro. E é aí que meu coração dá um pulo e quase para.
Em cima da mesa, bem no meio, sob a luz fraca da lua que entra pela janela, tem um envelope de laboratório médico.
Aberto.
Não tá guardado.
Não tá escondido.
Tá ali, como se tivesse sido esquecido, ou como uma isca, não sei. A adrenalina dispara no meu sangue, um alerta vermelho gritando na minha cabeça. É armadilha? Por que ele deixaria isso à vista? Mas também ninguém além dele entra aqui.
Não importa.
Não agora.
O instinto de investigação fala mais alto. Chego perto, minhas mãos tremem levemente ao pegar o envelope.
É do Laboratório São Lucas. O nome do paciente tá lá, em letras de forma: Evandro Silva (Tito).
Meu olho corre pelo texto, procurando a informação, o veredito.
O barulho de um carro se aproximando, o ronco inconfundível do carro do Tito, me arranca do transe.
— p***a! Ele voltou. Mais cedo.
Não deu tempo de ler p***a nenhuma.
Só o nome dele e o do laboratório.
Enfio o envelope no bolso, atrás da calça. Saio do escritório num pulo, trancando a porta atrás de mim. Corro silenciosamente de volta pro meu quarto, o coração batendo a mil.
Fecho a porta e encosto as costas nela, ofegante. O envelope tá me queimando a pele. Por que um exame médico do Tito, largado ali? O que tem nessa p***a que é tão importante? Será que tem a ver com a Joana? Com o Miguel?
O prazo de um mês agora parece uma eternidade e um piscar de olhos ao mesmo tempo.
Tudo mudou.
Esse envelope pode ser a chave. Ou pode ser a minha sentença. O perigo pra todos nós acabou de subir a um patamar estratosférico.