Soraia
Os dias viraram uma névoa pesada desde que o Tito voltou da viagem. Ele não só voltou, como voltou pior. Mais violento, mais desconfiado, com um olho sempre em mim e outro em tudo que se mexe. E o pior: ele afastou o Lobo de mim.
Designou um monte de trabalho pro lado de fora do morro, coisas de "confiança", ele diz. Mas eu sei o que é. É pra tirar ele de perto de casa. De perto de mim. E funcionou.
Dois meses.
Dois meses desde aquela noite na cozinha. Dois meses desde que a gente se tocou, se devorou, se perdeu um no outro. E desde então... nada.
O Lobo virou um fantasma.
Quando aparece aqui em casa, é rápido, cumpre o serviço e some. Ele não me olha, não fala comigo, não fica por perto. É como se a gente tivesse sonhado aquilo tudo.
Mas eu sei que não foi sonho. A memória do corpo dele contra o meu, do gosto dele, dos gemidos... tá tudo aqui, marcado em mim, queimando. E a descoberta que ele fez, aquela palavra no papel da gaveta do Tito... "Joana — aborto".
Isso mudou tudo.
Ele tá diferente.
Mais fechado, mais tenso, como se carregasse um peso ainda maior. Tentei me aproximar umas vezes, nos raros momentos em que a gente se cruzou aqui em casa. Um "tudo bem?", um "precisa de algo?".
Mas ele só balançava a cabeça, os olhos evitando os meus, e seguia caminho. É um gelo que dói, que congela tudo por dentro.
O Miguel sente o clima.
Ele é esperto, meu anjinho.
Ontem, no quarto, ele me puxou pelo braço e perguntou, com aquela vozinha cheia de medo.
— Soraia... o papai vai embora de vez sem mim?
Quase morri ali.
O coração parou.
— Cala a boca, Evandro! — gritei, num susto, segurando ele com força. — Não fala isso! Alguém pode ouvir!
Ele ficou assustado, os olhos encheram d'água, e eu me senti a pior pessoa do mundo.
Mas o medo é maior. Se o Tito ouvir... não quero nem pensar.
E aí veio hoje. O Tito levou o Miguel pra escola, e eu fiquei sozinha em casa. A quietude é um alívio e uma tortura. Fui fazer o meu café da manhã, e do nada, uma onda de náusea subiu da barriga.
Uma forte tontura me invadiu.
O mundo girou.
Segurei na pia, fechei os olhos, tentando me equilibrar. O enjoo veio forte, amargo na garganta. É um sentimento que eu não quero reconhecer.
Não quero admitir.
Desci devagar até o chão da cozinha, as pernas tremendo. A mão, quase por vontade própria, foi até o meu ventre, ainda plano, quieto. E o pânico... o pânico veio como um tsunami, me engoliu inteira.
Não.
Não pode ser.
Não agora.
Meu ciclo... quando foi a última vez? Passei os meses na cabeça, tentando me lembrar através da névoa de estresse e medo. E a conta não fechou.
Faz tempo.
Faz mais tempo do que devia.
Os pensamentos voam, descontrolados.
O Tito. Ele me forçou algumas vezes, antes de viajar e desde que voltou tem feito quase diariamente. Sempre brutal, rápido, sem camisinha, claro. Ele quer um filho há tanto tempo... mas nunca aconteceu. Será que...?
E o Lobo. Aquela noite. A gente não usou nada pra se proteger. Era puro desespero, desejo, uma conexão que falava mais alto que o bom senso.
Ele gozou dentro de mim.
Meu Deus. Meu Deus.
Será do Tito, depois de todos esses anos? Ou será do Lobo, justo agora, quando ele tá mais distante do que nunca, obcecado em encontrar a mulher que perdeu?
A mão no ventre parece que queima.
Um calor de pavor sobe por mim.
Fechei os olhos com força, as lágrimas escorrendo quentes pelo rosto. O sussurro saiu dos meus lábios antes que eu pudesse segurar, um terror tão profundo que nem parece minha voz:
— Se eu estiver grávida do Lobo... o Tito vai matar a gente.
A frase ecoa na cozinha vazia, um veredito de morte. Ele não vai perdoar. Uma traição dessas... com o segurança dele... dentro da casa dele... ele vai matar o Lobo.
Vai me matar.
E vai matar essa criança, esse bebê que nem sei de quem é, mas que já tá cercado pelo perigo mais absoluto antes mesmo de existir.
Fico ali, encolhida no chão frio da cozinha, tremendo, o enjoo e o medo lutando dentro de mim. O que eu faço? Pra quem eu falo? Como eu escondo isso? Cada segundo que passa, a possibilidade fica mais real, mais pesada.
A vida que eu carrego dentro de mim, se é que ela está mesmo aí, pode ser a sentença de morte de todos nós. E a única pessoa que eu queria correr e contar, o único homem que me faria sentir segura nesse momento... é justamente o que tá mais longe. E o que, muito provavelmente, não vai querer nada comigo, ou com esse bebê, quando descobrir que a Joana, a verdadeira mulher dele, pode ter sido obrigada a abortar o filho dele pelo mesmo homem que agora pode ser o pai dessa criança.
É uma bagunça.
Uma bagunça sem saída.
E eu tô sozinha no meio dela, com o meu ventre como uma bomba-relógio.