Meu pequeno Miguel

1165 Words
BERNARDO Eu sempre digo que um sniper precisa de duas coisas: paciência e precisão. Mas, quando se trata de ser pai, aprendi que nenhuma dessas qualidades é suficiente. Criança não espera. Criança não sabe o que é disciplina militar, nem horário, nem protocolo. Criança vive. E viver é bagunçado. O sábado começou assim: com Miguel subindo na cama antes das sete da manhã, pulando por cima de mim e da Joana como se fosse um alarme humano. — Acorda, papai! Vamos andar de bicicleta! — ele gritava, enquanto eu tentava fingir que ainda dormia. Abri um olho, depois o outro, e vi aquele rosto sorridente, os olhos verdes iguais aos da mãe brilhando de ansiedade. Não teve como resistir. Segurei ele pelo braço e o puxei para deitar no meu peito. — Filho, um sniper precisa dormir — falei, meio sonolento, arrancando risadas da Joana. — Um sniper precisa brincar com o filho! — ele retrucou, e eu percebi que estava perdido. Joana ria, os cabelos bagunçados caindo no rosto. Ela ajeitou o travesseiro e falou: — Melhor você se render, Bernardo. Esse inimigo aqui não vai recuar. Eu suspirei alto, fingindo derrota. — Tá bom, Miguel, vamos andar de bicicleta. Mas só se sua mãe fizer café. — Fechado! — ele gritou, levantando as mãos como se tivesse vencido uma guerra. A verdade é que, por mais cansado que eu estivesse depois de uma semana de treinos intensos, nada me dava mais energia do que aqueles dois. Descemos juntos, e logo o cheiro de café fresco invadiu a cozinha. Joana cantarolava baixinho enquanto passava manteiga no pão. Miguel corria pela sala com o capacete maior que a cabeça, já pronto para pedalar. — Você vai cair se não esperar a gente, moleque — eu disse, prendendo a risada. — Eu não vou cair, papai. Eu sou rápido igual você! Olhei para Joana, e ela sorriu. Era nesses pequenos momentos que eu entendia o verdadeiro significado da palavra “missão”. Minha missão não era só proteger o país. Era proteger aquilo ali: meu lar, minha família. --- Saímos para o parque perto de casa. O sol já estava quente, mas uma brisa leve deixava o clima agradável. Miguel subia na bicicleta com rodinhas, mas insistia que não precisava delas. — Papai, tira as rodinhas, eu já sei andar! — ele pediu, cheio de confiança. — Calma, guerreiro. Cada coisa no seu tempo. — Mas você não disse que eu tenho que ser corajoso? Sorri com a ousadia dele. — Ser corajoso não é pular no perigo sem pensar, Miguel. É enfrentar o medo com calma. Ele fez uma careta, claramente sem entender muito bem. Joana se aproximou e colocou a mão no ombro dele. — Escuta o papai, filho. Você ainda vai ter tempo de sobra pra mostrar sua coragem. Apoiei a bicicleta dele e começamos. Miguel pedalava, a língua entre os dentes de tanta concentração. Caiu duas vezes, ralou o joelho, mas se levantou sem chorar. E eu, que já tinha visto homens tombarem em combate sem reclamar, senti o peito se encher de orgulho daquele garotinho. — Você é incrível, filho. Um verdadeiro Lobo. Ele abriu um sorriso enorme. — Igual a você? — Igual a mim. Joana nos observava de longe, o cabelo balançando com o vento, o vestido leve colado ao corpo. Eu podia jurar que ela brilhava. E naquele instante eu pensei: “Se existe paraíso, deve ser algo parecido com isso”. --- De tarde, voltamos para casa exaustos. Miguel adormeceu no sofá, ainda de capacete. Joana riu ao ver a cena e tirou devagar o objeto da cabeça dele. — Ele é a sua cópia — disse, ajeitando a manta sobre o menino. — Tomara que não seja em tudo. Ela me olhou curiosa. — Como assim? — Tomara que ele não precise carregar nas costas o peso que eu carrego. O mundo já é pesado demais. Joana se aproximou, segurando minhas mãos. — Bernardo, você não percebe? Ele não carrega peso nenhum. O Miguel carrega a sua luz. Aquilo me desarmou. Porque Joana sempre soube enxergar o que eu não via. Eu me considerava um homem endurecido, moldado pelo exército, pelas batalhas, pela ausência do meu pai. Mas ela enxergava em mim algo mais humano. Algo que eu só conseguia acreditar quando olhava nos olhos dela. — E você? — perguntei baixinho. — O que você carrega? — Você e ele. Só isso já é mais que suficiente. Abracei ela bem forte. E, por alguns segundos, o mundo lá fora deixou de existir. --- À noite, Miguel acordou animado, como se não tivesse corrido o dia inteiro. Decidiu que queria brincar de “esconder e procurar”. Joana riu, mas topou. Eu também entrei na brincadeira, meio contrariado, mas logo me rendi às gargalhadas. — Papai nunca vai me achar! — Miguel corria pelos cômodos, deixando o barulho das risadas denunciar cada esconderijo. Fiz de conta que procurava, andando devagar, exagerando na atuação. — Onde será que está o meu pequeno soldado? Será que foi capturado pelos inimigos? Ele não aguentou de rir e saiu de trás da cortina, tropeçando. Corri, segurei antes da queda e o levantei no ar. — Peguei! Ele ria sem parar, os olhos brilhando. Joana, encostada na porta, observava a cena com aquele sorriso calmo que só ela tinha. Foi nesse momento que percebi: eu não precisava de medalhas, títulos ou reconhecimento. Tudo que eu precisava estava ali, naquela sala, naquela noite comum. --- Quando Miguel finalmente dormiu de novo, fui para a varanda com Joana. O silêncio da noite era quebrado apenas por sons distantes da cidade. Eu a abracei por trás, apoiando o queixo em seu ombro. — Sabe, eu sempre achei que meu pai tinha me dado a maior lição da vida quando dizia que a mira precisa de calma. — E não deu? — ela perguntou, virando o rosto para me encarar. — Deu. Mas hoje eu percebo que você me deu outra. — Qual? — Que o coração também precisa de calma. Ela sorriu, encostou a testa na minha e disse: — Então estamos quites. Eu ensinei o coração, seu pai ensinou a mira, e você ensina o Miguel a ser corajoso. Eu a beijei devagar, sentindo o sabor doce daquele momento. E pensei: se pudesse congelar o tempo, congelaria exatamente ali. --- Naquela noite, antes de dormir, deitei na cama com Joana do meu lado e Miguel entre nós, respirando pesado no sono infantil se movendo com os sonhos. Olhei para o teto e agradeci em silêncio. Não por ser o melhor sniper, não por estar prestes a competir pelo título nacional. Mas por ter o que realmente importa. Porque, no fundo, toda a minha vida, toda a disciplina, toda a precisão... sempre me levaram até aqui. O problema é que a gente nunca sabe quando o destino resolve mudar a mira. ADICIONE NA BIBLIOTECA COMENTE VOTE NO BILHETE LUNAR INSTA: @crisfer_autora
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