Quando abri a porta da casa dos meus pais naquela manhã, o cheiro familiar de café fresco e pão assado me atingiu como um soco nostálgico no estômago. Fazia anos que eu não pisava ali. O mesmo tapete velho na entrada, as cortinas floridas na janela da cozinha, e o som da chaleira apitando suavemente. Tudo parecia congelado no tempo, exceto eu. Eu era um estranho naquele cenário.
— Logan! — a voz da minha mãe soou antes mesmo que eu pudesse fechar a porta. Ela veio em minha direção com os braços abertos, e pela primeira vez em muito tempo, senti o que era ser abraçado sem desconfiança.
— Mãe...
Ela me apertou como se eu fosse fugir de novo. E talvez fugisse, se pudesse. Se o mundo lá fora não estivesse girando em torno da mulher que agora dividia a casa com a minha família.
— Você está magro — ela disse, recuando um pouco e me examinando com o olhar crítico de sempre.
Sorri de canto.
— Ou você é que está exagerando como sempre.
Ela riu, me dando um tapa leve no peito, e se virou para a cozinha. Eu a segui, com o peito apertado e os olhos atentos a cada detalhe da casa. Quase não notei a presença na sala até ouvir a risada suave vinda do sofá.
Letícia.
Ela estava sentada com os pés descalços sobre o tapete, vestindo uma camiseta simples e um short jeans, o cabelo preso em um coque alto. Tinha uma xícara nas mãos e ria de algo que Daniel dizia. Ele, ao lado dela, a olhava como se o mundo inteiro coubesse naquele sofá. E naquele momento, pela primeira vez, vi que ela realmente o amava.
Havia doçura no jeito como ela tocava a mão dele, carinho genuíno quando ele ajeitou uma mecha solta de seu cabelo atrás da orelha. Ela se aninhou ao corpo dele como quem pertence. E ele — meu irmão, Daniel — a envolveu com um cuidado que eu nunca vi em ninguém.
O coração pesou. Pesou de um jeito que parecia arrancar o ar dos meus pulmões. E ainda assim, ali parado, como um estranho, eu continuei observando. Um voyeur do que deveria ser uma simples manhã em família.
Daniel me viu primeiro.
— Olha só quem resolveu acordar cedo!
Me forcei a sorrir e caminhei até eles. Letícia se levantou com um sorriso contido, sem me encarar de verdade. Estendeu a mão como se fosse uma amiga qualquer, uma conhecida distante.
— Bom dia, Logan.
Toquei sua mão por um segundo. Rápido demais para sentir. Longo demais para esquecer.
— Bom dia, Letícia.
Daniel se levantou logo depois, me dando um abraço caloroso e sincero. Meu irmão mais novo, que agora era um homem. E um homem apaixonado.
— A mãe tá radiante com sua chegada — ele disse. — Não para de falar sobre como a família tá completa de novo.
"Completa." A palavra reverberou dentro de mim com ironia.
— É bom estar aqui — menti.
Letícia se afastou para a cozinha, e os olhos de Daniel a seguiram por um instante, cheios de admiração. Quando ela desapareceu atrás da porta, ele voltou a me encarar, sorrindo como um garoto apaixonado.
— Cara... eu tô tão feliz.
Assenti, sentando no sofá onde ela estivera minutos antes.
— Dá pra ver.
Ele se sentou ao meu lado e apoiou os cotovelos nos joelhos, olhando para as próprias mãos por um instante, antes de continuar.
— A Letícia é... ela é tudo que eu sempre quis. Ela me entende, Logan. Me ouve. Me apoia. Nunca me senti tão... inteiro com alguém.
Mordi a parte interna da bochecha, tentando conter as palavras que queriam sair. Mas ele continuou, como se precisasse compartilhar aquele sentimento com o mundo.
— Quando ela aceitou casar comigo, eu senti que tudo fazia sentido, sabe? Ela é meu lar agora. Eu faria qualquer coisa por ela.
— E ela por você — murmurei, sem conseguir evitar.
Daniel riu, feliz.
— Sim. A gente se cuida. Ela é mais do que noiva, é minha melhor amiga.
Pisquei algumas vezes para não perder o controle. Letícia tinha feito uma escolha. E pela forma como olhava para Daniel, pela maneira como o tocava, como sorria para ele... era claro que havia amor. Não era fingimento. Não era um plano ou conveniência. Era real.
E mesmo assim, havia algo nos olhos dela quando me viu. Algo que ela tentou esconder, mas eu vi.
Depois do café, Daniel saiu com meu pai para resolver algo sobre a decoração do casamento. Fiquei na varanda, deitado na rede, o sol filtrando-se pelas folhas da mangueira. Letícia apareceu minutos depois, uma garrafinha de água na mão, os olhos buscando por mim com hesitação.
— Posso?
Assenti e ela se sentou na cadeira ao lado. Ficamos em silêncio por alguns minutos. O tipo de silêncio que pesa mais do que mil palavras.
— Você viu, né? — ela perguntou, sem me olhar.
— O quê?
— O jeito como eu e o Daniel somos. — Ela girava a tampa da garrafa entre os dedos, nervosa. — Eu amo ele, Logan.
Assenti. Queria dizer que sabia, mas a garganta parecia feita de pedra.
— Ele me salvou em um momento r**m. Foi paciente comigo. Me fez acreditar que eu merecia ser feliz de novo. E... eu quero fazer dar certo com ele.
— Parece que já deu — falei, e minha voz saiu mais amarga do que eu gostaria.
Ela se calou. Os olhos fixos em algum ponto além do jardim. Depois de um tempo, virou-se para mim.
— O que aconteceu entre a gente... foi importante. Mas ficou no passado.
— E se eu disser que nunca passou?
Ela apertou os olhos, ferida. E quando respondeu, sua voz era um sussurro.
— A gente não tem mais o direito de sentir isso.
Nos encaramos por um segundo que pareceu uma vida inteira. E naquele momento, percebi que o problema não era o que sentíamos, mas o que fazíamos com esse sentimento.
Letícia era a noiva do meu irmão.
E eu era o irmão que nunca devia ter voltado.