Retorno
O céu de São Paulo parecia mais cinza do que eu lembrava. Ou talvez fosse eu — porque tudo dentro de mim também parecia nublado.
Desembarquei no Aeroporto de Guarulhos com minha mala em uma mão e um passado inteiro na outra. Fazia exatos seis anos desde a última vez que coloquei os pés nesse país. Seis longos anos desde que saí com uma mochila nas costas, uma passagem só de ida e uma dor no peito que eu jurava que ia passar com o tempo.
Não passou.
— Senhor Montenegro, seu carro já está à espera — informou o motorista que segurava uma plaquinha com meu nome.
Agradeci com um aceno e segui até a SUV preta estacionada na área VIP. Tudo perfeitamente calculado, do jeito que eu vivia nos Estados Unidos. Ordens, números, controle. A vida me ensinou a não confiar em ninguém e, por isso, me tornei o homem que todos respeitam — e muitos temem.
Mas naquela manhã, mesmo cercado de luxo e conforto, eu me sentia vulnerável. Porque dentro de dois dias, eu veria meu irmão mais novo, Daniel, subir ao altar com uma mulher que eu ainda não conhecia.
Ou pelo menos era o que eu pensava.
Cheguei ao hotel cinco estrelas que reservei para mim mesmo, recusando o quarto que minha mãe havia preparado na casa de infância. Eu não tinha forças para encarar aquelas paredes novamente. A casa onde meu pai gritou pela última vez comigo. Onde eu fui chamado de ingrato, arrogante e egoísta por sonhar alto demais.
Deitei na cama e encarei o teto. Era para ser uma simples visita de família. Comparecer ao casamento, tirar algumas fotos, sorrir para parentes que fingiriam gostar de mim e voltar para a minha vida em Manhattan.
Simples.
Até que Daniel me enviou uma mensagem.
"Ela quer te conhecer antes do casamento."
Estranhei.
"Quem é ela?", perguntei.
"A Letícia, minha noiva."
Letícia. O nome bateu no meu peito como uma lembrança proibida.
Não podia ser.
No dia seguinte, fui ao restaurante onde ela queria me encontrar. Era um lugar charmoso, com janelas amplas e decoração rústica. Ela já estava lá.
Sentada sozinha, com um vestido verde-esmeralda que destacava os olhos. Os mesmos olhos que eu conheci há oito anos, numa festa da faculdade. Os mesmos olhos que me fizeram perder o juízo uma vez... e só uma vez.
Mas era o suficiente para nunca tê-la esquecido.
Ela levantou o rosto quando me viu. Um leve sorriso curvou seus lábios — que eu também lembrava bem demais.
— Logan? — perguntou, mesmo sabendo a resposta.
— Letícia — respondi, com a voz firme, mas por dentro em pedaços.
O tempo foi c***l. Não porque a mudou, mas porque a tornou ainda mais bonita. Mais mulher. Mais inalcançável.
— Que surpresa — ela disse, sorrindo. — Você não mudou nada.
Eu queria dizer o mesmo. Mas o que pensei mesmo foi: Você mudou tudo.
Sentei à sua frente, tentando fingir que aquele reencontro era casual. Que minha respiração não estava falhando. Que meu coração não havia acabado de declarar guerra.
— Você vai casar com meu irmão? — perguntei, direto.
Ela mordeu o lábio inferior e assentiu lentamente.
— E você vai estar lá, né?
Meu estômago virou. O nó na garganta apertou.
— Eu não perdi um evento importante na vida dele até hoje. Não seria agora.
Ela me olhou como quem procura algo — talvez arrependimento, talvez raiva. Mas tudo que ela encontraria ali seria confusão.
Porque, naquele momento, eu sabia.
Nada seria simples.
Nada seria certo.
E ainda assim…
Tudo dentro de mim queria ela.
Mesmo que fosse a noiva do meu irmão
O silêncio entre nós era denso. As pessoas ao redor conversavam, riam, brindavam suas taças de vinho, mas à nossa mesa havia apenas duas presenças: eu e ela. Um passado m*l resolvido e um futuro perigosamente entrelaçado.
Letícia cruzou as pernas devagar, repousando as mãos sobre o colo. Os dedos finos, que eu lembrava perfeitamente, brincavam com a borda do guardanapo de linho. Ela parecia nervosa, o que não combinava com a segurança com que havia me olhado quando cheguei. Talvez fosse a minha presença. Talvez fosse algo mais.
— Logan, eu... — ela começou, mas interrompeu a si mesma, desviando o olhar para a janela ao nosso lado. — Eu não sabia que você viria.
— Não sabia que eu viria... ou não queria que eu viesse?
Ela suspirou fundo. Sua expressão oscilava entre constrangimento e algo que eu não conseguia decifrar — não ainda. Mas havia uma tensão ali, escondida sob o verniz da maturidade que ela parecia ter construído com o tempo.
— Eu não sabia que você era o irmão dele.
A frase veio como uma explosão silenciosa. Um sussurro que me atingiu como um grito. Eu arregalei os olhos, inclinando o corpo para frente, tentando entender se eu tinha ouvido direito.
— Como assim?
Ela me encarou. E dessa vez, seus olhos não desviaram.
— Quando conheci o Daniel, ele nunca mencionou você. Falava dos pais, das viagens, da infância no interior, mas você... você nunca apareceu nas conversas. Nem uma foto. Nem uma lembrança. Como se você não existisse.
A cada palavra dela, uma parte de mim se enrijecia. Daniel havia me apagado. Me omitido da própria história. Como se eu fosse um erro, uma sombra inconveniente no passado dele.
— E você também nunca falou dele — ela completou, a voz mais baixa. — Na época em que... em que nos conhecemos. Você nunca me disse que tinha um irmão.
O peso da verdade caiu sobre a mesa como uma taça de cristal trincada: linda por fora, mas prestes a se despedaçar.
— Isso foi há oito anos, Letícia. Eu era outro cara.
— Eu também.
Houve um momento em que nos calamos. Olhávamos um para o outro como dois cúmplices de um crime que não sabiam que estavam cometendo juntos.
Eu me recostei na cadeira, tentando absorver aquilo. Ela não sabia. Isso mudava tudo. E ao mesmo tempo... não mudava nada.
Letícia respirou fundo e bebeu um gole da água à sua frente. As mãos ainda tremiam. Quando pousou o copo sobre a mesa, ela me olhou com uma expressão estranha — mistura de arrependimento, surpresa e algo próximo da dor.
— Quando o Daniel me pediu em casamento, eu me senti segura com ele. Ele é... estável. Carinhoso. Faz planos. Me trata como uma prioridade.
Engoli seco.
— E você o ama?
Ela hesitou. Um segundo. Dois. Tempo suficiente para um homem atento perceber a hesitação atrás da máscara.
— Sim... — disse, mas a voz não tinha firmeza. Era quase como se ela quisesse acreditar no que dizia.
Desviei o olhar por um instante, observando o movimento da rua lá fora. Carros passando, pessoas indo e vindo sem saber o caos que aquele reencontro estava criando dentro de mim.
Quando tornei a encará-la, falei mais baixo:
— Você vai mesmo se casar com ele?
Ela não respondeu de imediato. Passou a língua pelos lábios, abaixou o olhar e apertou levemente o guardanapo entre os dedos.
— Eu preciso — disse, quase como um sussurro.
Aquilo me atravessou. Como se casar com alguém fosse uma necessidade, não uma escolha. Uma obrigação. Uma fuga, talvez.
— Você não deve nada a ninguém, Letícia.
Ela me olhou com força agora, e havia raiva contida naquele olhar.
— Não? Depois de tudo o que vivi, depois de tudo o que enfrentei sozinha... você realmente acha que é tão simples assim?
Aquela mulher não era mais a menina da faculdade que sorria sem medo e me provocava com palavras inteligentes e beijos atrevidos. Ela era outra agora. Mais forte. Mais ferida.
— Eu não estou aqui pra te julgar. Só não consigo fingir que tudo isso é normal — murmurei, passando a mão pelo rosto. — Você vai casar com meu irmão, Letícia. E você foi... você foi a única mulher que eu nunca consegui esquecer.
O silêncio voltou. Um silêncio diferente, agora carregado de tudo o que não era dito.
Ela abaixou os olhos, e pela primeira vez desde que cheguei, vi sua força se dissolver.
— Você não devia ter vindo — sussurrou.
— Mas eu vim. E agora... agora não tem mais volta.
Ela se levantou, ajeitando o vestido com as mãos. A pele clara corou nas bochechas, e seus olhos brilharam. Havia lágrimas ali, mesmo que ela tentasse esconder.
— Eu preciso ir. Tenho... tenho uma prova do vestido em uma hora.
Assenti, sentindo meu corpo inteiro endurecer com aquela despedida.
— A gente vai se ver de novo. No casamento.
Ela assentiu levemente, desviando o olhar.
— E até lá, Logan... por favor, não diga nada ao Daniel.
— Você quer que eu minta?
— Quero que você me deixe fingir que posso viver essa mentira.
E então ela se virou e foi embora. Deixando para trás não apenas a mesa vazia, mas um passado que acabara de ser reaberto. Uma ferida que nunca cicatrizou. E um desejo perigoso que — agora — tinha nome, data e véu branco.
Letícia.
A mulher que deveria ser apenas uma lembrança.
A mulher que estava prestes a se tornar minha cunhada.
E o pior de tudo?
A mulher que ainda era minh paixão.