Na manhã seguinte, acordei mais cedo que todos. A casa ainda estava mergulhada em silêncio, com os primeiros raios de sol invadindo pelas frestas da cortina. Levantei devagar, tentando organizar meus pensamentos, mas eles vinham bagunçados, confusos, como se cada lembrança minha com Letícia tivesse acordado junto comigo.
Desci para a cozinha, esperando encontrar algum respiro na solidão do ambiente, mas dei de cara com Letícia de costas, com os cabelos presos em um coque desarrumado e usando uma das camisetas antigas do Daniel — larga demais, cobrindo as coxas, revelando só o suficiente pra despertar uma onda desconfortável dentro de mim. Ela estava de pés descalços, preparando café, cantarolando baixo uma música qualquer.
Ela se virou quando ouviu meus passos. O sorriso que surgiu foi quase automático, mas hesitou quando percebeu minha expressão. A verdade é que eu não conseguia desviar o olhar dela. Parecia surreal tê-la ali, tão familiar e ao mesmo tempo tão distante.
— Bom dia — ela disse, com a voz ainda rouca de sono.
— Bom dia… — respondi, desviando o olhar, tentando me concentrar em qualquer coisa que não fosse o jeito como a camiseta caía em seu corpo.
Letícia percebeu. Claro que percebeu. Ela me conhecia demais pra não perceber. E talvez, por isso mesmo, tenha feito questão de caminhar até o armário bem devagar, esticando-se na ponta dos pés para pegar uma caneca, fazendo com que a barra da camiseta subisse e revelasse um pedaço da pele que eu conhecia tão bem.
Engoli em seco. Meu corpo reagia de um jeito que me envergonhava.
— Dormiu bem? — ela perguntou, virando-se com a caneca nas mãos.
— Tentei — murmurei, puxando uma cadeira e me sentando à mesa. — Você?
— Mais ou menos. A cama é grande demais. Não estou acostumada com tanto espaço. — Ela riu. — Daniel tem dormido no sofá. Diz que prefere esperar o casamento pra “fazer tudo certinho”.
Soltei um riso nervoso, baixo, forçado.
— Que cavalheiro.
— Você está bem? — Letícia se aproximou, deixando o café na minha frente. — Ontem à noite... achei que você fosse dizer alguma coisa.
— E o que você acha que eu deveria ter dito?
Ela hesitou. A expressão dela ficou séria. Os olhos grandes e castanhos me encararam com uma mistura de curiosidade e culpa.
— Eu não sabia que Daniel era seu irmão — disse, baixinho. — Juro por tudo que é mais sagrado. Quando o conheci, ele só dizia que tinha um irmão que morava fora, mas nunca falou seu nome. E você... você nunca me contou que tinha um irmão chamado Daniel. Quando descobri, já era tarde. Eu já estava apaixonada por ele.
As palavras me atingiram como um soco no estômago.
— Paixão é volátil, Letícia — retruquei. — Você já disse isso pra mim uma vez, lembra?
Ela se sentou à minha frente, os dedos enrolando-se uns nos outros.
— Eu sei que parece estranho, injusto... mas, por favor, não pensa que eu fiz isso por m*l. Não foi planejado.
— Eu não sei o que pensar. Tudo isso... é surreal demais.
— Eu também estou confusa. Mas estou tentando fazer a coisa certa.
Olhei para ela por longos segundos, tentando decifrar aquele olhar que tantas vezes me tranquilizou, que tantas vezes foi meu porto seguro. Agora, ele só me deixava mais perdido.
Foi nesse exato momento que Daniel entrou na cozinha, ainda sonolento, vestindo uma calça de moletom e uma camiseta branca. Sorriu ao ver Letícia e veio até ela, beijando-lhe o topo da cabeça como se fosse a coisa mais natural do mundo. E ela sorriu de volta, com um carinho que me revirou por dentro.
— Bom dia, irmão! — disse Daniel, animado. — Dormiu bem?
— O suficiente — respondi, tentando controlar a amargura na voz.
Ele puxou uma cadeira ao lado de Letícia e se sentou, passando o braço por trás dela com familiaridade. E ali, vendo os dois juntos, eu me senti como um intruso na minha própria vida.
— A gente estava falando de ontem — Letícia comentou, encarando Daniel. — Achei lindo o jeito que você organizou tudo pro jantar, mesmo com a confusão toda.
— Tudo por você, amor — ele respondeu, sorrindo. — Quero que esses dias até o casamento sejam inesquecíveis.
Inesquecíveis. Sim, certamente seriam.
— E você, irmão? Vai ficar conosco até quando? — perguntou Daniel, inocente, tomando um gole do café.
— Ainda não decidi — falei, olhando fixamente para Letícia. — Mas acho que não vou conseguir ir embora tão cedo.
Letícia desviou o olhar. E Daniel apenas sorriu, achando que minhas palavras tinham sido um gesto de carinho fraternal.
Mas só eu e ela sabíamos o que realmente estava sendo dito ali.
E eu sentia, com uma certeza absurda, que aquele era apenas o começo do embaraço, da tensão, dos encontros de olhares silenciosos e das palavras não ditas que gritariam entre nós todos os dias.
No final daquela tarde, o calor parecia se arrastar pelas ruas da cidade com a mesma lentidão desconfortável que pairava no ar da casa. Por dentro, tudo era silêncio e contenção. Eu tentava me concentrar em um livro velho que nem lembrava por que havia trazido na mala, mas minha mente não estava ali. Desde que cheguei, minha presença parecia incomodar Letícia mais do que deveria. E, por mais que ela tentasse manter uma postura calma, seus olhos me entregavam — havia algo não resolvido entre nós, algo que nem o tempo, nem o noivado com meu irmão Daniel, haviam conseguido apagar.
Daniel, por outro lado, estava radiante. Entre detalhes da decoração do casamento e ligações para fornecedores, ele parecia um adolescente apaixonado. Cheio de energia, andando de um lado para o outro, m*l conseguia esperar pela chegada de uma convidada especial: a madrinha escolhida por Letícia. Uma amiga que viria dos Estados Unidos.
— A Claire vai chegar hoje — ele comentou no café da manhã, enquanto mexia distraidamente o açúcar na xícara. — Letícia e ela são muito próximas. Ela vai ser sua dupla como madrinha e padrinho.
Levantei os olhos do jornal. — Claire?
— Claire Deveraux. Japonesa, mas viveu um bom tempo na Europa e mora nos Estados Unidos. Milionária, daquelas que organizam bailes de gala no sul da França. Letícia a conheceu durante o intercâmbio ou algo assim, sei lá. Ela é incrível, você vai gostar.
Assenti, sem muita empolgação. Madrinha rica, chique. Eu já imaginava alguém esnobe, entediada e cheia de exigências. Não estava com paciência para gente assim.
Por volta das cinco da tarde, a campainha tocou. Daniel foi atender com o mesmo entusiasmo de quem abre a porta para uma celebridade. Do outro lado, ouvi uma voz feminina e um sotaque estrangeiro que era como uma melodia firme, segura. Me levantei, curioso, indo até a porta da sala.
E então a vi.
Claire Deveraux não era nada do que eu havia imaginado. Era muito mais.
Ela era o tipo de mulher que parecia ter saído de uma campanha de alta-costura. Usava um vestido de linho bege claro, ajustado com perfeição ao corpo esguio. O salto alto realçava sua postura impecável. Tinha os cabelos pretos presos em um coque baixo, clássico, e olhos escuros e expressivos, que examinavam o ambiente com elegância contida. Trazia um perfume sutil, sofisticado, algo floral com notas cítricas que flutuava ao seu redor como uma aura.
Ela estendeu a mão na minha direção, os olhos fixos nos meus com naturalidade. — Claire Deveraux — disse, com um sorriso leve, mas firme.
— Logan — respondi, apertando sua mão. — Irmão do noivo.
— E meu par no altar — ela completou, como se o destino já tivesse selado aquele pequeno detalhe.
Havia uma confiança silenciosa nela, algo que me provocou no mesmo instante. Claire não era escandalosa nem atrapalhada. Era o tipo de mulher que se destacava pelo simples fato de estar ali. E ao contrário do que eu esperava, ela não parecia esnobe, apenas segura de si.
Letícia apareceu logo atrás, abraçando a amiga com carinho. — Eu estava morrendo de saudades — disse, tocando o rosto de Claire com ternura.
— Também senti sua falta, meu bem. E como você está linda. Vou ter que brigar com o Daniel se ele te fizer chorar — Claire disse com um sorriso malicioso, piscando para mim em seguida, como se me incluísse na brincadeira.
Aquela mulher era magnética.
Durante o jantar, Claire parecia estar perfeitamente à vontade. Bebia vinho com delicadeza, mas ria com intensidade. Contava histórias sobre festas em Veneza, sobre uma viagem de iate na Grécia, e em nenhum momento soava pretensiosa. Era como se o mundo tivesse sido o playground dela, e ela simplesmente soubesse contá-lo.
— E você, Logan? — ela perguntou, após um brinde descontraído. — Mora em Nova Iorque, certo?
— Sim. Trabalho com investimentos. Acabei ficando por lá depois da universidade.
— E por que voltou agora? — ela perguntou, virando um pouco o rosto, analisando minhas reações.
Antes que eu pudesse responder, Letícia interveio, mudando de assunto com rapidez. Claire percebeu, e um sorrisinho curioso surgiu em seus lábios. Ela era perspicaz. Muito.
Depois do jantar, Daniel precisou sair para resolver um imprevisto com o fornecedor do buffet. Letícia foi ao quarto tomar um banho, e eu fiquei na varanda com Claire, observando o céu escurecer em silêncio. Ela se aproximou, segurando uma taça de vinho branco.
— Acho que tem mais coisas nessa casa do que estão me contando — ela disse, erguendo uma sobrancelha. — Mas não se preocupe, Logan. Tenho olho clínico pra coisas m*l resolvidas. E você... bom, você tem esse jeito de quem carrega histórias nas entrelinhas.
Dei uma risada baixa.
— E você tem esse jeito de quem vai cavar até encontrar.
Ela tocou de leve minha mão com a ponta dos dedos. — Talvez. Mas só se o que eu encontrar valer a pena.
Claire era um problema. Um problema envolto em seda, elegância e olhar azul como gelo derretendo ao sol. E pela primeira vez desde que pisei de volta nessa cidade, senti que as coisas estavam prestes a sair completamente do controle.