Vila dos Andrajos

1514 Words
O Sol deslizava célere no céu de verão, irradiando uma luminosidade quente e prazerosa. Mas um silêncio de morte pesava sobre a Vila dos Andrajos. Os homens não saíram para trabalhar o campo, onde as vinhas se encrespavam, mas se reuniram no antro mais desolado, na taberna mais obscura, para conspirar. As mulheres e seus filhos, rígidos e sombrios, murmuravam choros e preces no átrio da igreja de Santo Iago, o Menor, sob o olhar inquieto do pároco revelho e encardido, que em breve os deixaria sob os cuidados de um jovem palafreneiro, que fazia às vezes de sacristão, e se retiraria, furtivo, para por um basta no conciliábulo. A Natureza parecia tudo entender. Porque não se ouvia o murmúrio abafado do vento, que buscara o espraiar indolente em outrossítios; nem se escutava o gorgolejar monótono do rio das Sebes, que descia melancólico, sem pujança alguma, da colina batida de sol; nem se percebia o chilrar das aves do estio, agora recolhidas em seus ninhos, no cimo dos abetos e nos escaninhos das choças. O velho padre, que antes maldissera aquela furna de pândegos e malfeitores, fizera do balcão gorduroso, tisnado de nódoas de vinho, o púlpito. E, sem bíblia alguma nas mãos nodosas, exortava os homens, repreendia-os, clamava com a voz trêmula, pedia comovido, ameaçava com as chamas eternas do inferno e insistia feroz na obediência a Deus e à Sua divina vontade. Os homens, porém, não lhe davam ouvidos. Não mais temiam as profundezas abissais. Tinham os olhos mais ardentes que as chamas dos infernos, mais assustadiços que os olhos de um demônio em presença do Senhor. Gritavam entre si. Praguejavam. Mergulhavam a aguardente nas goelas. Depois caíam num silêncio difícil de sustentar, porque o silêncio parecia precipitar tudo de irremediável que estava por acontecer. Há dois dias o velho pároco não conciliava o sono. A notícia chegara com maior vigor e se espalhara com maior velocidade que o fizera a peste. O séquito papal se aproximava da Vila dos Andrajos, o recanto mais desolado dos torrões de Dona Isabel, a rainha santa, o último refúgio do anticristo, ser bestial, difícil de se por as mãos. Naqueles dias de grande devassidão entre os homens, naqueles tempos de corrupção e licenciosidade, um santo homem sonhara algo de terrível. Frei Alberto da Jutlândia, que desafiara o rei Valdemar, e buscara refúgio junto ao Papa, de quem era agora secreto confessor, sonhara mais uma profecia inexorável. Vira, em sonhos, que, na Terra dos Lusos, nascera a b***a, e lá vivia entre os homens, há doze anos, não menos. E a b***a, soube o Papa, era já um ser crescido, sabe lá se nascido de mulher, e que não tardaria a encetar seus hediondos prodígios. Debelara b***a, a todo custo, passou a ser o objetivo, senão a única missão, de Sua Santidade e de todos os que professavam a fé verdadeira .Desde então, o reino de D. Dinis, o Trovador, entrou em polvorosa. Não havia uma choupanaque não fosse invadida, não havia uma casa que não fosse esmiuçada, um palácio que não fosse espiolhado, por ordem de Sua Santidade, Martinho IV. E, por onde seguia a comitiva papal, encabeçada por um delegado clerical devoto e inclemente, por onde serpenteava o séquito pomposo, ágil e infatigável como um rastilho, formava-se um mar de sangue, tão profundo e tão denso, que nele se podia navegar. As confissões, nesses dias difíceis, se tornaram pródigas; e as denunciações, que levaram muitos homens e mulheres à purificação pelo fogo, se multiplicavam como crias de ratazanas. Nunca se vira um terror tão pio e tão desalmado em toda a cristandade. Fecharam-se as fronteiras. Os suspeitos morriam pela adaga dos Oficiais de Justiça Eclesiástica e nenhuma criatura, entre doze e dezesseis anos, se homem, escapava à prova infalível, concebida pelo beato Frei Alberto da Jutlândia. A prova consistia em submeter o pescoço dos rapazotes ao fio dos punhais dos beleguins, até que a cabeça tombasse ao chão. Se o jovem sobrevivesse, se o sangue fervente não derramasse, se a cabeça se mantivesse firme sobre o pescoço, seria induvidosamente a temida b***a, anunciada há mais de um milênio pelo Apóstolo Amado, em suas santas Revelações. Os jovens encontravam, para a glória do Senhor, uma morte certa, dolorosa, mas nem sempre rápida. Mas a b***a profana não se dava a encontrar, por mais que a terra batida das choças, os ladrilhos das casas e o mármore dos palácios se empapassem do sangue quente e viscoso que vertia dos pescoços dos jovens inocentes. Luz alguma cintilava naquela escuridão. E como o demônio tem as suas artes, decretou-se, mesmo sem ouvir-se o Papa, ou consultar-se o fiel e incorruptível conselheiro, que as raparigas também deveriam ser submetidas à divina prova .E, nas cidades e nos campos, elevavam-se os prantos. Cada mulher era o espírito de Raquel ressurgido, chorando por seus filhos, rejeitando consolo, porque eles já não mais existiam. Nuno Joanes, gentil-homem, era, dentre os Oficiais de Justiça Eclesiástica, o mais temente a Deus e, portanto, o mais feroz. Executava o seu mister com tanta devoção de espírito e tanta habilidade nas mãos que, não fora a santidade de sua missão, dir-se-ia que se tratava de um possesso. Mas, à medida que a Santa Comitiva rumava, de vila em vila, para o Norte, mais ainda a sua face entenebrecia. Seus olhos perdiam, pouco a pouco, aquela atmosfera de transe; as suas mãos, ágeis como as de um prestidigitador, decaíam em destreza e vigor. Nas cercanias dos Andrajos, um frêmito tomou-lhe o corpo e muito a custo sustentou-se no lombo da montaria. Entre os homens, entocados na Vila dos Andrajos, o último reduto de Satanás, não havia consenso. Alguns preferiam ver seus filhos e filhas mortos de maneira menos dolorosa, antes que a Santa Comitiva rebentasse no horizonte; outros preferiam escondê-los de alguma forma, dentro de suas possibilidades, que eram quase nenhuma; outros ainda, tementes a Deus, preferiam que a Justiça Divina fosse feita. Só em um ponto todos estavam acordes: o que fosse decidido, estaria decidido. Havia óbvios prós e contras, qualquer que fosse a escolha. Se matassem os próprios filhos, cairiam em pecado mortal e certamente teriam morte dolorosa nas mãos dos Oficiais de Justiça Eclesiástica. Se os escondessem, não seria por muito tempo, e a pena lhes seria seriamente recrudescida. Se entregassem os filhos às mãos da Justiça inflexível, certamente agradariam ao Papa, e provavelmente a Deus, mas destruiriam a própria consciência, já que todos sabiam inocentes os seus filhos rotos e as suas filhas famintas. Após o escrutínio, os homens retornaram, silenciosos, para suas casas. Depois, cingindo, cada um, um punhal, ganharam o átrio da igreja. Não é preciso dizer que as mulheres, ensandecidas, gritaram de pavor, ao ver seus homens tão circunspectos e tão resolutos. Muitas avançaram contra os homens, outras desfaleceram e umas poucas, as que não tinham punhal para cravarem nos s***s, atearam fogo às próprias vestes. O pároco recolheu-se ao confessionário para chorar. Talvez, também, pela morte dos jovens, rapazes e raparigas, caídos uns sobre os outros, com os corações e os ventres traspassados pelos punhais piedosos de seus pais. Quando as figuras sinistras dos beleguins assomaram na colina, quando o enviado papal, devestes vermelhas, contornou o vale do rio das Sebes, e, finalmente, quando postaram-se todos, superior e subalternos, diante da igreja de Santo Iago, o Menor, o último dos raios de sol, ainda sufocado pelos gritos de mulheres e crianças, desvaneceu no horizonte belo e terrível. De tocha em riste, tendo Nuno Joanes à frente, adentraram os homens de Deus o átrio escuro daquele templo miserável, em nada digno aos olhos grandiosos do Senhor. Mas saíram logo em seguida, porque, tendo degolado, por precaução, os cadáveres, não mais muito tinham a realizar naqueles torrões. Nuno Joanes foi o último a sair. Na mesma igreja onde fora batizado, e à qual retornou para cumprir o seu destino, viu, pela última vez, Pero Nunes, seu filho. O garoto vivia ainda. Talvez sequer agonizasse. Nuno Joanes deu-se a conhecer e recebeu um sorriso débil. Mas, antes que o demônio o tentasse, extraiu o punhal do ventre do menino, e, com o mesmo punhal, o degolou, com golpes destros e ágeis. E agradeceu a Deus por não haver gerado o corpo onde habitava Satanás. Varrido todo Portugal, os homens de Deus fracassaram. Apenas uma certeza, a única certeza possível, que se não podia verter em palavras, vinculava aqueles homens boquiabertos: contido pelo mar, o anticristo fugira por terra. Certamente para a Galiza. Teriam, decerto, muito trabalho pela frente. Porque, se muito santo era o Frei Alberto da Jutlândia, muito mais astuto era Satanás. ------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- “O, Kerstnacht schoner dan de dagen Hoe kan Herodes het licht verdragen Dat in uw duisternisse blinkt En wordt gevierd en aangebeden Zijn hoogmoed luistert naar geen reden Hoe schel die in zijn oren klinkt Hij tracht d’onnozelen te vernielen Door het doden van onnozele zielen En wekt een stad en landgeschrei In Bethlehem en op den akker En maakt den geest van Rachel wakker Die waren gaat door beemd en wei.” Joost van den Vondel.
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