O Demônio

2158 Words
Não lembro muito bem quando foi que tudo aconteceu – se é que aconteceu de fato. Tenho tido pesadelos horrendos nas últimas noites, e, além disso, uma vontade incoercível de dar cabo de minha própria existência. Tenho me sentido muito estranho ultimamente. Vertigens, náuseas, dores de cabeça horríveis. Confundo os acontecimentos passados gravados na minha memória com os fatos concretos da realidade cotidiana. São sonhos grotescos, sonhos alucinantes em que o horror perambula com suas múltiplas faces pelas regiões aterrorizantes além do sono e da morte. Sou um homem condenado, já perceberam. A morte se aproxima de mim, eu posso sentir. Acho que era o “Tid-Aunwule”, a data em que o horror começou. O “Tid-Aunwule”, que na bizarra língua da exótica e extinta tribo dos índios que tinham sido os primeiros habitantes de meu torrão natal, queria dizer literalmente “Festa dos Mortos”, ou seja, o equivalente ao nosso “Dia de Finados”. Eu e meu amigo sabíamos disso. Sim, era o “Tid-Aunwule”, e os terrores noturnos e espectrais, inacreditáveis demais para a prosaica e hodierna ortodoxia científica, estavam prestes a atingir o zênite em nossas frágeis e perturbadas mentes, conduzindo-nos aos turbilhões insólitos do medo, do terror sobrenatural. Antes de morrer, quero contar tudo. Sabe, hoje em dia sou um sujeito nervoso, neurótico. A paranóia me domina. Restou-me, pois, o derradeiro fio de esperança: quero desabafar. Quero contar minha história, e depois cantar, cantar até a morte uma n***a canção de horror e loucura, embora eu tenha a certeza de que não sou e nunca serei louco de fato. Era um tipo enigmático e estranho, aquele ancião. O tipo de velho que provoca calafrios só emolhar. De fato um gênio provecto com ares de demônio louco. Na verdade, tão absurdamente solitário quanto um deus ou um d***o. Nunca o tinha visto na cidade, embora meu querido avô Antônio Laurindo tivesse me contado algumas histórias horríveis sobre esse velho e estranho habitante da antiga cidade de Barbatana do Sul, onde moro até hoje, prisioneiro de mim mesmo, de minhas lembranças terríveis e de meus sonhos horrendos e fantasmagóricos. Sim, a antiga, misteriosa e corrupta Barbatana do Sul, pequena cidade litorânea, um pequeno inferno onde prevalece a politicagem, a maldade e a falta de caráter dos governantes e autoridades locais. Sabe, dizem que eu enlouqueci depois de tudo o que aconteceu, se é que aconteceu, repito mais uma vez, porque até hoje não sei se tudo aconteceu de fato ou se foi apenas um terrível e horrendo sonho, um delírio onírico ou alucinação pesadelar, uma peça macabra pregada pela minha mente perturbada. Mas não ligo para esses espíritos ignorantes que fazem pilhéria como que aconteceu comigo. Não ligo para esses ineptos e fofoqueiros inúteis da corrupta Barbatana do Sul. Um dia a verdade virá à tona, e então veremos quem é o louco nessa história toda. Sim, um dia a verdade cintilará ante nossos olhos estúpidos como uma gema preciosa, e fará com que nossos preconceitos e opiniões acerca do sobrenatural e das coisas terríveis que não são visíveis para os olhos físicos comuns fiquem bem claros como a luz do sol do meio-dia. Então, ou enlouqueceremos de vez, retornando a barbárie dos tempos primevos, ou nos tornaremos verdadeiramente eternos e oniscientes como os deuses antigos do céu, da terra e dos espaços tenebrosos dos recônditos do inferno. Aquele velho estranho dava-me calafrios, digo e repito. Seus olhos eram como duas luas negras cintilando num céu sombrio e infernal, dois abismos negros cintilando de variados e estranhos conhecimentos ocultos acumulados durante eras e eras, num ciclo quase interminável de estranhas reencarnações. Duas estrelas sinistras de mistérios na palidez cadavérica de seu rosto, um cenho vincado por rugas horrendas que traçavam mapas de ciências e experiências místicas inimagináveis. Havia realmente algo de muito macabro naquele ancião vestido com roupas antigas e negras, moreno, magro e alto, e sempre com velhos e ensebados livros de Ocultismo e Astronomia na mão. Não tinha amigos, aquele velho. Amigos humanos e normais, eu quero dizer. Presumo que uma solidão quase perpétua era sua única companheira. Seus verdadeiros amigos eram invisíveis para os olhos normais e fracos do resto da tola humanidade, assegurou-me o velho estranho, num tanto sarcástico. Além disso, o velho não costumava conversar ou fazer amizade com facilidade. Ele precisava e queria ser arredio. Fazia parte do estranho processo de armazenamento secreto de energias místicas incompreensíveis demais para o resto desprezível dos habitantes da cidade, ele me disse. Era um misantropo e asceta, eu logo pude perceber. Só nos conheceu porque eu e Otávio, meu amigo, tínhamos ido até o sombrio pântano da Coruja Corcunda, nos limites de Barbatana do Sul (na fronteira que a separa de Maremontes), uma região coberta de névoas e tida como m*l-assombrada pelos mais supersticiosos; fôramos caçar alguns lagartos para dissecar na aula de Biologia do dia seguinte, atendendo ao pedido da tola e coquete professora Zelda Evans, filha do delegado Mathias Leôncio, certo salafrário que conseguira o cargo de autoridade na cidade mediante artimanhas políticas e manobras sórdidas que o próprio Satanás, em seu trono de brasas no inferno, duvidaria. A mãe de Zelda era juíza da cidade, e também arranjara este cargo através de práticas ilícitas em concursos públicos fraudulentos, além de ser uma matrona depravada, amante dos poderosos e ricos da cidade e também do satânico e lascivo padre de Barbatanado Sul, certo efebo abjurante de nome Jairo Jeremias, metido em seitas secretas de magia n***a e rituais malditos em pequenos templos subterrâneos. O nosso país, a corrupta República Pindorama, não tinha jeito mesmo, de modo que a pequena Barbatana do Sul era apenas reflexo da podridão da pátria. Quando o encontramos, lá no sinistro pântano da Coruja Corcunda, ele, o velho, entabulou conversa conosco, talvez meio sem jeito por o encontrarmos ali, com os livros e aquele estranho instrumento azul e feito de um material que se assemelhava vagamente com cristal, mas que, curiosa e estranhamente, emanava certo odor fétido de carniça. “Atualmente me chamo Zugdulhulglos, como vocês já devem ter ouvido em conversas de fofoqueiros locais. Estou neste brejo amaldiçoado fazendo, digamos, algumas experiências. A ciência, aliada a magia, sempre exerceu sobre mim o seu fascínio...”, disse o velho esquisito. E eu e Otávio, procurando demonstrar simpatia, dissemos qual o nosso objetivo ali, no brejo fedorento. Estudo, trabalho escolar. “Magnífico! O estudo enobrece o homem. E os animais e seres inferiores devem servir de cobaia e sacrifício para o conhecimento das raças superiores!”, concluiu o velho sinistro, uma espécie de loucura ímpia cintilando nos seus olhos terríveis e lunáticos. Depois de uma pausa, ele subitamente ergueu os olhos para o céu. Estrelas no escuro cintilavam aziagas, como olhos de legiões de demônios aracnídeos na imensidão infinita do universo profundo e amedrontador. “Lá, estão vendo aquela estrela?”, e apontou para Aldebarã, vista por entre as folhas de um grande salgueiro, numa nesga de céu escuro onde reinava soberana a lua cheia que se espelhava vaidosa, nas águas rasas e fedorentas do pântano da Coruja Corcunda, como sefosse uma rameira libidinosa do Cosmo. “Os homens chamam-na Aldebarã, mas seu nome verdadeiro é Aklythyachysya. Foi para um mundo próximo a Aklythyachysya, chamado Sv’ruathx que meus antepassados, os índios que habitavam Barbatana do Sul em seus primórdios, foram levados, numa noite. Sim, o xamã da tribo estabelecera contato mental com eles por meio de estranhos e antigos rituais... eles, os deuses celícolas... e aprendera segredos cósmicos arcaicos. Compreendam que hoje é o dia da a******a do grande portal dimensional, o túnel do hiperespaço que se forma entre as galáxias, unindo as humanidades estelares e osplanos físico e astral. Compreendam. É um dia raro e magnífico. Acontece a cada milênio. Já disse que me chamo Zugdulhulglos. Não é um nome comum, vocês já devem ter desconfiado. Na verdade, trata-se de um nome, digamos, inumano. Mas isso pouco importa porque eu já tive e ainda terei vários nomes no decurso das minhas inúmeras reencarnações!” Ele apontou o estranho objeto que tinha na mão, em direção a Aldebarã. A extremidade da “Chave transespiritual materializante e híper espacial”, como ele chamava o tal aparelho ou objeto de cristal fedorento, que emitia um brilho estranho em sua extremidade. E antes de expelir uma gargalhada que retumbou no silêncio sepulcral do pântano como um hino tétrico de insensatez e heresia, ele falou: “Não sei se devo amaldiçoá-los ou agradecê-los, mas vocês terão que vir comigo, meus jovens. Felizmente ou infelizmente, não sei. Espero que consigam manter suas mentes calmas para o que vão presenciar e ver. No entanto, admito que isto não seja tarefa fácil, sendo quase impossível. Trata-se de um conjunto de experiências fantásticas que jamais se apagará de suas frágeis memórias e tampouco de suas almas”. Então eu e meu amigo olhamos para o céu outra vez e vimos o que parecia ser uma nuvem escura brilhante, seguida de uma luz azulada em vários tons, muito forte, que cegou-nos momentaneamente como um relâmpago do inferno, e então desmaiamos nas covas da inconsciência profunda. Recordo vagamente dos terríveis sonhos que tive durante a minha síncope. Até hoje desconfio que não fossem exatamente sonhos, mas ultra-sonhos! Sonhos fantásticos e horrendos em que me vi, junto com meu amigo Otávio e com aquele necromante ou ufólogo endiabrado. Visitei mundos inimagináveis, terríveis, terras desconhecidas de esferas enlouquecedoras ,templos malditos de adoração satânica em mundos muito além da matéria, nas vastidões entre as estrelas do Cosmo infinito, em buracos negros de universos muito além das loucuras do Bem e do m*l. Quando acordei, estava no hospital de Barbatana do Sul. Meu amigo Otávio enlouquecera pouco antes de morrer para este mundo horroroso de violência e força (no leito de morte ele soltara gritos horripilantes mesclados com gargalhadas de medo e loucura durante a agonia).Os pedantes médicos e a estúpida Polícia da cidade acabaram concluindo que fôram os atingidos por um raio nascido de uma tempestade súbita em nossa visita aquele pântano sinistro. Tínhamos sido encontrados por meu velho e bom tio Lauro, que fora de jipe atrás de nós, devido a nossa demora. Quanto a Zugdulhulglos, os pífios policiais riram de mim, pois Zugdulhulglos não passava de uma espécie de lenda local. Um antigo e quase esquecido ente folclórico, digamos assim. Ele era uma espécie de bicho-papão ali, naquela região praiana. Depois, consultando a biblioteca pública e o arquivo histórico da cidade, descobri que houvera de fato tal Zugdullhulglos, em tempos muito antigos, na fundação da cidade. Houvera realmente, no passado da cidade, um morador com esse nome, um morador estranho, mas aparentemente não tão diabólico quanto o Zugdulhulglos que eu vira, lá, no tétrico Pântano da Coruja Corcunda. Este homem, pelo que li e estudei, era descendente da antiga e estranha tribo que fundara Barbatana do Sul, um mestiço, na verdade. Ele passava noites e noites em claro, no topo de uma grande colina, olhando para o céu. Para as estrelas misteriosas nos confins do Universo, como que possuído por uma estranha nostalgia de seus selvagens ancestrais, que segundo lendas, não teriam sido extintos pelo progresso e pela civilização, mas sim levados por um estranho e cintilante raio azul brotado de uma nuvem de ferro que os levara da Terra para juntos dos deuses celícolas que eles tanto adoravam. Era uma espécie de astrônomo amador ou lunático, esse tal Zugdulhulglos?... Acabou enlouquecendo e morrendo por seu passatempo ou mania, pelo que li em velhos manuscritos e jornais da época. Pouca coisa se sabe sobre isso... Desde então tenho sofrido com os horrores noturnos de meus pesadelos. Rezo para que a morte chegue como uma benção. Uma espécie de paranóia me domina como um demônio torturador, tornando minha existência insuportável. Não sei explicar muito bem o que se passa comigo. Quase não saio mais de casa. Tornei-me muito mais que um psicótico. O medo alastrou-se em meu ser, tornando-se uma mortalha em mim. E o que mais me assusta é achegada das sombras da noite, com seus mistérios sobrenaturais e inimagináveis. Estou na miséria, e pouco dinheiro que arrecado sabe Deus como, uso-o para comprar drogas e bebidas. Mas hoje, em especial, a coisa mudará; faz uns cinco minutos que ingeri o veneno. Decidi-me a acabar com tudo. Minha mão começa a tremer, meu estômago principia a doer e minha vista vai ficando cada vez mais turva, impossibilitando-me de continuar a escrever esta mensagem que deixarei em especial para todos os céticos. Deixarei este manuscrito à vista de todos, para que tentem entender o porquê de meu suicídio. Acho que o que eu e meu amigo falecido havíamos visto naquele dia maldito era uma espécie de entidade espectral, uma casca espiritual ou cascão vitalizado ou lado n***o deste estranho e lendário homem, Zugdulhulglos, que tenho certeza, não era humano, oh! Santo Deus, não era humano!...
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