01
Narrado por Dona Marta
A vida nunca me deu escolhas fáceis. Desde menina, aprendi que se eu quisesse alguma coisa, teria que arrancar da terra com as próprias mãos. Fui criada no morro, onde o asfalto não chega e a vida pesa. Minha mãe lavava roupa para fora, meu pai bebia mais do que trabalhava. Cresci vendo minha mãe chorar de cansaço enquanto esfregava pano na pedra, mas nunca reclamando. “Mulher forte não lamenta, Marta. Mulher forte aguenta”, ela dizia.
E eu aguentei.
Quando virei moça, já sabia que meu destino não ia ser diferente. Trabalhava em casa de família desde os doze anos. Passava pano, lavava chão, engolia sapo. Gente que me olhava de cima, como se meu suor fosse menos digno que o deles. Mas eu aguentava. Guardava cada humilhação no peito, porque precisava do dinheiro.
Foi nessa vida de luta que conheci o pai do Caio. Amor? Não sei se posso chamar assim. Foi uma paixão rápida, intensa e, no final, dolorosa. Ele era bonito, esperto, falava bonito. Me prometeu o mundo, mas só me deu abandono. Quando descobriu que eu tava grávida, sumiu. Não olhou para trás, não quis saber.
E então, éramos só eu e meu menino.
Caio nasceu no meio da tempestade, e talvez por isso tenha se tornado furacão. Desde pequeno, ele tinha um brilho no olhar que misturava raiva e esperteza. Cresceu vendo a mãe se matar de trabalhar, ouvindo as fofocas do morro sobre o pai que nunca voltou. Aprendeu cedo que, para sobreviver aqui, precisava ser mais forte que os outros.
Eu tentei. Meu Deus, como eu tentei! Fiz de tudo para manter ele longe dessa vida. Mas o morro puxa, e quando vi, meu menino já era dono de tudo. Primeiro, vendia as coisinhas, depois foi subindo, até virar o homem mais temido daqui. Hoje, chamam ele de Cobra. Mas para mim, ele ainda é o Caio, o menino que dormia agarrado na minha saia, o filho que me prometeu que eu nunca mais ia passar necessidade.
E ele cumpriu.
Me deu casa boa, me tirou da limpeza, me encheu de conforto. Mas também me encheu de medo. Porque toda mãe sabe: quando um filho escolhe esse caminho, a vida dele nunca mais é garantida.
E agora, estou aqui, olhando para o espelho e vendo o tempo me cobrar. O corpo que já aguentou tanto agora fraqueja. O peito arde, o cansaço pesa. Fui ao médico sozinha sabe? Fazer exames de rotina, sem contar nada para Caio. Não queria preocupar meu menino. Mas o que ouvi ali mudou tudo: câncer.
O chão fugiu dos meus pés.
Pensei em esconder, em fingir que nada estava acontecendo. Mas como esconder algo que consome a gente por dentro?
Quando Caio soube, o morro inteiro tremeu. Ele ficou louco. Proibiu tudo. Trabalho, esforço, qualquer coisa que me fizesse cansar. “A senhora só vai viver, mãe. Eu cuido do resto”, ele disse, como se pudesse mandar na vida. Como se pudesse controlar a morte. E no fim, ele me abraçou e chorou como se fosse meu pretinho pequeno ainda.
Mas eu sei que ele tem medo. Medo de me perder, medo de ficar sozinho. Ele não diz, mas eu vejo. No jeito que me olha, na forma como aperta os punhos quando falo que ainda estou viva, que não sou de vidro.
Agora, ele quer encher essa casa de gente para fazer tudo por mim. Acha que contratar enfermeira, cozinheira e até alguém para dobrar minha roupa vai impedir o que está por vir. Mas eu sou a Marta. Fui criada na dureza, sobrevivi ao abandono, ao cansaço e ao tempo.
E se tem algo que aprendi, é que a gente não morre antes da hora. Enquanto meu coração bater, eu sou quem decide como vou viver.
O dia nem clareou direito e eu já estou acordada. O corpo pesa, mas a mente corre, inquieta. Eu nunca fui de ficar parada, e agora, parece que meu próprio filho quer me amarrar dentro de casa.
Mal viro na cama e já escuto um barulho baixinho no quarto. Olho pro lado e vejo a menina da enfermagem, sentada na poltrona, discreta, mas de olho em mim.
— Bom dia, Dona Marta — ela fala baixinho, como se eu fosse de vidro.
Solto um suspiro e me sento devagar, sentindo os músculos reclamarem.
— Menina, o que você tá fazendo aqui tão cedo? — pergunto, já sabendo a resposta.
Ela sorri, ajeitando a blusa do uniforme.
— Cuidando da senhora, ué.
Reviro os olhos.
— Cuidando do quê? Tô doente, não aleijada. Eu ainda sei levantar sozinha.
Ela ri, balançando a cabeça.
— Sei disso, mas tenta explicar isso pro seu filho, porque ele acha que a senhora não pode nem respirar sem ajuda.
Balanço a cabeça, irritada.
— Esse menino tá me tratando como se eu fosse inválida. Só porque tô com câncer, acha que minha vida acabou. Tem tanta gente por aí que vive com essa doença e continua trabalhando, fazendo as coisas, e ele quer que eu fique aqui, parada, esperando o quê? A morte?
A técnica de enfermagem cruza os braços e me olha com um sorriso no canto da boca.
— Dona Marta, a senhora não é mole, viu?
Dou um meio sorriso.
— Nunca fui, minha filha.
Ela dá um passo à frente e me estende a mão.
— Vamo tomar café?
Concordo com a cabeça e levanto sem aceitar a ajuda dela. Se tem uma coisa que eu ainda consigo fazer sozinha, é andar até a cozinha.
Seguimos pelo corredor e, quando entramos na cozinha, o cheiro de café fresco já invade o ambiente. A mesa está posta, como sempre, cheia de comida como se tivesse uma festa. Tem pão, bolo, fruta, tapioca, suco, tudo que Caio manda comprar. Ele acha que me enchendo de comida eu vou melhorar.
Me sento na cadeira devagar e dou uma olhada ao redor.
— Isso tudo é exagero — murmuro, pegando uma xícara de café.
A técnica de enfermagem ri, servindo um pouco de suco pra ela.
— Se reclamar, ele manda dobrar a mesa amanhã.
Abro a boca pra responder, mas, antes que eu diga qualquer coisa, escuto passos firmes ecoando pelo corredor.
Caio.
Ele entra na cozinha com aquela presença que impõe respeito. Alto, forte, expressão fechada. O morro inteiro o chama de Cobra, mas, pra mim, ele ainda é o meu menino.
Ele para ao meu lado, cruza os braços e me encara.
— A senhora já levantou? — pergunta, como se fosse um absurdo eu estar acordada.
Dou um gole no café, sem pressa, antes de responder.
— Claro que levantei. Ou queria que eu ficasse o dia todo na cama?
Ele estreita os olhos, desconfiado, e olha pra técnica de enfermagem.
— Você deixou ela andar sozinha?
Ela dá de ombros, sem se intimidar.
— Dona Marta não aceita ajuda, Seu Cobra.
Caio solta um suspiro pesado e passa a mão no rosto, frustrado.
— Mãe, a senhora tem que se poupar.
Bato a xícara na mesa, impaciente.
— Me poupar do quê, Caio? De viver? Porque é isso que você tá tentando fazer. Quer me trancar aqui e me tratar como uma moribunda.
Ele cerra os punhos, mas se controla.
— Eu só quero cuidar da senhora.
Meu coração aperta porque eu sei que ele fala sério. Mas eu também sei que, do jeito dele, ele tá mais desesperado do que eu.
A técnica de enfermagem observa a gente em silêncio, enquanto eu e meu filho trocamos olhares.
Respiro fundo, tentando manter a paciência.
— Então me deixa viver, Caio. Enquanto eu tiver forças, eu vou levantar, andar e fazer o que eu quiser.
Ele não responde de imediato. Apenas senta na cadeira ao meu lado e solta um suspiro pesado.
— Pelo menos come direito.
Sorrio de canto e pego um pedaço de bolo.
— Isso eu posso fazer.
A técnica ri baixinho e continua tomando o suco. O silêncio cai sobre a cozinha, mas não é pesado. É o silêncio de quem entende, mesmo sem precisar falar.