Dona Marta Narrando
Apesar de tudo que a vida me jogou, continuo de pé, firme e forte. Hoje, de novo, tô usando meu lenço na cabeça – já faz tempo que aprendi a não me envergonhar do que a doença me tirou. Meu cabelo? Pois é, já não é o mesmo, mas o lenço virou parte de mim, um acessório que me lembra que, mesmo com esse tremendo tratamento pro câncer, eu sigo viva, e posso – e vou – viver do meu jeito.
Nem sempre é fácil, confesso. Tem dias que o cansaço bate forte, e a gente quer só se esconder debaixo das cobertas. Mas eu não aceito que a doença me defina. Eu me levanto, me arrumo e faço o que sempre fiz: vivo a vida do jeito que eu gosto. E, olha, eu entendo o Caio, meu filho, com essa mania de querer cuidar de mim como se eu fosse uma frágil bonequinha. Ele se preocupa, e isso eu respeito, mas eu também tenho o direito de me sentir normal, de sair, de ir à feira, de escolher meus legumes e frutas com a mesma vontade de sempre.
Hoje, decidi que não ia ficar presa na casa. Chamei a Lili, a moça que faz a comida na nossa residência, e combinei de ir à feira. “Vamo que vamo, Lili, hoje eu tô querendo escolher tudo eu mesma”, falei pra ela com aquele tom animado, que eu não consigo esconder mesmo quando tô cansada. Ela riu e respondeu:
— Dona Marta, cê é braba demais, sabia? Vamo nessa, que hoje a feira é nossa!
Saímos juntas, com a Lili carregando uma sacola velha, mas que a gente sabe que aguenta o tranco. O caminho até a feira é sempre uma aventura. A rua é reta, repleta de barracas coloridas, cada uma com seu cheiro e seu jeito único de chamar atenção. Chegando lá, já era como se eu entrasse num salão de festa: todo mundo me conhece, e não perde a chance de me cumprimentar com aquele “Oi, Dona Marta!” cheio de respeito e carinho.
— Oi, Dona Marta! Como cê tá hoje? — gritou a Maricota, dona da barraca de peixe, com aquele sorriso largo que só as mina do Santa Marta sabem ter.
— Tô bem, Maricota, num ânimo daqueles! Hoje eu tô querendo os melhores peixes, camarão, e também umas verdurinhas fresquinhas, viu? — respondi, ajeitando o lenço com orgulho.
Caminhei devagar pela feira, sempre atenta às cores, aos cheiros e à disposição dos produtos. A Lili ia logo atrás, ajudando a pegar as melhores frutas e legumes. Em cada barraca, sempre rolava um papo animado.
— Dona Marta, olha esses camarões, são dos melhores que já vi! — disse o Zé, que vende frutos do mar, apontando pra uma bandeja cheia de camarões reluzentes.
— Rapaz, esses camarões tão bão demais, hein? Leva aí uns quilo, que hoje o almoço vai ser de responsa, como diz meu filho — respondi, rindo e fazendo questão de pegar a quantidade certa, sem deixar barato.
Enquanto isso, a Lili se embrenhava entre as barracas de verduras, escolhendo alface, couve, rúcula e outros vegetais. Ela sempre fala com a gente como se fosse a mãe de todos.
— Dona Marta, essa couve aqui tá fresquinha, é a mesma de sempre! — falou ela, com o sotaque arrastado e aquele jeito meigo de cuidar das coisas.
— Ó, Lili, cê sabe que eu só quero o melhor, né? Tem que ser tudo do bom mesmo, porque a vida é curta e a gente merece se alimentar bem! — respondi, com um brilho nos olhos, como se cada escolha ali fosse uma vitória.
A feira tava animada, e a galera não parava de me cumprimentar.
Enquanto a gente caminhava pela feira, eu lembrava dos tempos em que era mais jovem, quando o cabelo era longo e eu não precisava do lenço. Mas hoje, esse lenço é parte de mim, é minha marca registrada. Ele me lembra que, apesar das dificuldades, eu continuo batalhando, continuo vivendo. E, mais que tudo, me lembra que a vida é feita de escolhas e que eu, Dona Marta, tenho o direito de escolher viver plenamente, mesmo que com cansaço ou com a dor de um tratamento.
— Lili, cê acredita que o Caio tá gastando uma grana absurda com meu tratamento? — comentei num tom meio resignado, mas sem perder a leveza da conversa.
Lili parou por um momento, olhou pra mim com aquele olhar de quem entende tudo sem precisar dizer nada.
— Dona Marta, o menino é assim, né? Se preocupa, mas às vezes exagera. Mas cê sabe: o importante é que cê tá aqui, firme e forte. Deixa o menino se acabar com esse dinheiro, que a gente tem que aproveitar cada dia como se fosse o último!
— É verdade, Lili. Eu entendo que ele quer me ver bem, mas às vezes, eu queria que ele deixasse de lado esse exagero. Se tiver que gastar demais, que gaste, mas sem me prender em um monte de regras e gastos que nem fazem diferença, sabe? — falei, meio que rindo da própria frustração.
A Lili só riu e balançou a cabeça, como sempre fazendo piada da situação. Enquanto a gente seguia, o sol ia se elevando no céu, e eu sentia que a feira era o lugar onde eu podia ser eu mesma, sem amarras. Ali, entre as barracas e as conversas, eu encontrava a liberdade que o tratamento e os cuidados excessivos do Caio não conseguiam tirar de mim.
Mas, veja só, quando tava andando pelo meio da feira, num daqueles momentos de curtição, me deparei com um segurança do Caio me olhando torto, como se quisesse ficar de olho em mim, quisesse não, ele esta me vigiando. Eu, que já tenho vivido muito e não deixo ninguém me controlar a esse ponto, fiquei com o sangue fervendo.
— Ei, vem aqui! foi o meu filho que te mandou me ficar de olho? — eu falei, sem cerimônia, quando ele chegou perto com uma arma enorme pendurada no ombro
— Dona Marta, num briga comigo, não. Com todo respeito, eu só sigo as ordens do Cobra, a senhora sabe como é.
Eu bufei, que nem sabia se ria ou se mandava ele embora de vez. Mas, ó, eu não tinha paciência pra essas besteiras:
— Vai logo pro teu trabalho, meu filho! — eu disse, com a voz firme e um olhar que não deixava espaço pra conversa. — Eu não sou teu brinquedo pra ficar de olho, entendeu? Volta lá pro teu patrão e diz pra ele que, se ele continuar com palhaçada, vai se ver comigo mais tarde!
Ele hesitou, mas logo assentiu, e saiu pelo meio da multidão, indo pra longe, onde eu não conseguia mais ver o rosto dele. Eu dei de ombros, como se a vida fosse sempre essa mesma confusão, e continuei meu caminho pela feira com a Lili.
Depois desse episódio, encontrei um espacinho pra dar uma pausa. Vi uma barraca de pastel ali, com aquele cheiro inconfundível de pastel quentinho e caldo de cana geladíssimo. Resolvi que era a hora de me mimar um pouco. Sentei na mesinha improvisada, e a Lili sentou do meu lado. A gente riu um pouco, falando das besteiras que acontecem.
Eu comi tanto pastel, e bebi tanto caldo de cana que to me sentindo muito cheia. Logo eu paguei e voltamos pra casa. A gente conversava e ria, como se o mundo lá fora não tivesse pressa. Enquanto a Lili ajudava a carregar as bolsas, eu escolhia com cuidado cada item. Nunca me deixo carregar peso demais – a Lili sempre cuida disso, me ajudando a não me sobrecarregar. Peguei uma sacola que, felizmente, estava levinha, e segui meu caminho de volta.
— Sabe, eu não gostei muito dessa enfermeira não. Ela só fica no celular, sentada e quieta. Eu prefiro ficar com você na cozinha do que no quarto com ela. Esses cuidados do Caio com meu tratamento tão custando uma fortuna, e eu já tô ficando saturada dessa palhaçada. É um dinheirão jogado fora, tudo pra tentar segurar a morte, que, se vier, vem, né?
A Lili, que tava do meu lado, olhou pra mim e comentou, num tom de zoeira:
— Dona Marta, cê sabe que o Caio é do jeito dele, né? Mas, ó, tem muita gente por aí que não faz nada pra ajudar. Minha filha, que é técnica de enfermagem, sempre fala dess povo que vão trabalhar e não fazem nada, acho que nessa profissão é assim mesmo.
— Ah, Lili, num gostei nada dessa menina. Parece que ela só tá ali pra encher linguiça. Fica tão calada, mexendo no telefone, sem nem dar a mínima pra mim. Eu queria alguém que passasse mais tempo, sabe? Que conversasse, que me fizesse companhia de verdade. Mas, por enquanto, não dá pra trocar, então eu fico aqui, na minha, fazendo o que posso.
— Quem dera se a minha filha pudesse vir cuidar da senhora, mas ela não larga aquele hospital por nada.
— Ah, seria uma benção na minha vida, sabia? Eu odeio ficar com gente do lado onde me sinto sozinha.
Quando chegamos em casa, descarreguei as sacolas e sentei um pouco, recostada na porta da varanda, olhando o movimento lá fora. O Caio, sempre metido nos seus negócios, nem imaginava o tanto que eu curtia esses momentos de liberdade e autonomia. Eu sabia que ele gastava demais com meus tratamentos e com as besteiras que ele achava que eram cuidados, mas ali, naquele instante, eu só queria sentir a vida pulsando em cada detalhe.
Mas, por enquanto, o que me satisfaz é a certeza de que, mesmo com todas as dificuldades e com os exageros do meu filho, eu ainda posso escolher a minha vida. Escolho ir à feira, escolher os melhores produtos, comer meu pastel quentinho com caldo de cana e, principalmente, sentir que a vida é minha, que eu não deixo que ninguém – nem mesmo o Caio ou aquela enfermeira desinteressada – tire de mim a vontade de viver.
Hoje foi mais um dia de batalha vencida, de momentos que me lembram que, apesar de tudo, eu continuo reinando no meu espaço.