capítulo 2

894 Words
O Preço da Farra ​O clarão do sol matinal era uma punhalada nos olhos de Adrian Santiago. Ele despertou com o ruído agudo de uma sirene distante e uma dor de cabeça latejante, vestígio direto da dose tripla de uísque e música alta da madrugada. Virou-se na cama, ignorando o emaranhado de lençóis e os dois corpos femininos adormecidos ao seu lado. ​Adrian se levantou de fininho, com a desenvoltura de quem já fizera aquilo centenas de vezes. Chutou as próprias roupas do chão, ignorou as alheias e rumou para seu próprio apartamento, deixando o luxo do hotel para trás sem um adeus. ​Em seu flat minimalista, ele se despiu e entrou no box, deixando a água fria chicotear o rosto na esperança de expulsar a névoa da noite. Um rápido banho, duas aspirinas, e ele estava na varanda, tentando focar na cidade cinzenta lá embaixo. Pegou o celular, que vibrava incessantemente. Eram mensagens de seu pai. ​Ele abriu o chat. Não eram pedidos; eram ordens. Curtas, diretas e irrefutáveis: Volte. Agora. A fazenda precisa de você. ​Adrian rosnou, jogando o celular no sofá de couro. Voltar para a fazenda? Para o cheiro de esterco e a monotonia? Ele, um advogado formado, com um escritório em ascensão, reduzido a capataz de gado? A ideia era um insulto. Mas sabia que desobedecer ao patriarca era assinar sua própria sentença de exílio financeiro e moral. ​A desobediência não era uma opção viável. ​Com um suspiro pesado, ele aceitou a realidade. Se teria de ir, faria do jeito dele. Precisava de tempo para organizar tudo. Tinha reuniões para cancelar, processos para delegar, e um sócio que precisaria assumir a linha de frente. Adrian decidiu tirar um cochilo rápido para recompor o cérebro antes de mergulhar na logística da vida remota. Ele faria a sua parte, à distância, mantendo a fazenda sob controle. Pelo menos era isso que ele esperava. ​A Brisa da Manhã no Dakota ​No Rancho Dakota, a vida seguia um ritmo diferente, regido pela natureza e pelo dever. Ramires, de volta do campo, sentia o corpo vibrar de satisfação. Desde antes do nascer do sol, ela já havia montado, ajudado a apertar o gado e, nos fundos do celeiro, garantido que as ordenhas estivessem a todo vapor. ​Ela amava o ar fresco da manhã, a brisa que balançava o capim alto e o espetáculo do sol nascendo sobre as colinas. Era uma sensação de paz que a vida dupla não conseguia estragar. ​Entrou na casa, onde o cheiro de café coado e pão fresco pairava no ar. ​"Bom dia, pai," ela saudou, passando a mão na cabeça do Sr. Rodrigues. ​"Bom dia, filha," ele respondeu, comendo devagar. "E aí, como é que foi lá? Todo mundo já tá na lida?" ​"Nem todo mundo, pai, mas já tem gente trabalhando. Você sabe como é que é. Tão te esperando o senhor para ir por a ordem." ​O Sr. Rodrigues sorriu, confiante. "Daqui a pouco eu vou. Ponho todo mundo no eixo, você sabe como é que é." ​O momento foi interrompido pela voz firme de Dona Alice, a mãe, que já a esperava. ​"Bom dia, filha. Pode tirar essas botas aqui dentro, não pode?" ​Lúcia deu um salto, voltando à realidade da casa. ​"Me desculpe, mãe, esqueci! Vou tirar sim, já limpo já." ​Ela correu para a porta, retirando as botas enlameadas. Ali, dentro de casa, ela era Lúcia, a filha obediente, a estudante. As botas ficavam na varanda; o "Ramires" ficava do lado de fora. ​Poder e Conhecimento ​A tarde era reservada para o intelecto. Graças aos arranjos do pai, Lúcia frequentava a escola apenas para as provas essenciais e atividades obrigatórias, concluindo o Ensino Médio de forma acelerada. Enquanto o sol estava alto, ela devorava livros, estudando em silêncio. ​Quando terminava os estudos e as tarefas domésticas (era uma questão de honra ajudar a mãe com a faxina e a comida), Lúcia se transformava novamente. Não apenas em Ramires, o peão, mas em Ramires, o braço-direito do patrão. ​No pequeno escritório do rancho, Lúcia usava toda a sua inteligência afiada. Ela lidava com a papelada, calculava salários, pagava vales e tomava decisões administrativas complexas. Era nesta hora que as habilidades linguísticas secretas—o inglês, o espanhol, e o recém-iniciado japonês—podiam ser discretamente usadas em telefonemas de negócios com o padrinho. ​E com os peões, Ramires tinha pulso firme. Quando um dos vaqueiros tentava discutir sobre o vale ou a quantidade de horas extras, Ramires não abaixava a cabeça. Ela encarava o homem de frente, com a mesma autoridade e o mesmo tom direto que qualquer capataz teria. ​Para eles, não havia dúvida: Ramires era um homem duro, justo, e totalmente à altura do cargo. O cowboy eficiente que estava aprendendo até japonês para tocar os negócios do rancho. A ideia de que aquela figura era, na verdade, Lúcia – a garota de dezessete anos que fazia a lição de casa e ajudava a lavar a louça – era totalmente inconcebível. ​Ramires/Lúcia estava preparada. Preparada para o rancho, para a família, para o mundo dos negócios, e, sem saber, preparada para a tempestade chamada Adrian Santiago que estava prestes a cair sobre o Rancho Dakota.
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