Superfície
Um dia comum se inicia em minha vida: Eu saio de casa, tranquila, um pouco mais tarde do que o comum pois faltei na faculdade onde estudo para conseguir ir a uma consulta. Como não gosto das aulas de estatística, não foi sacrifício nenhum perder as aulas do dia: Elas eram compostas, basicamente, pelo mesmo professor. Cálculo e estatística. Não que eu não seja boa nisso, muito pelo contrário, é o professor que é altamente chato e desestimulante, por isso, prefiro estudar sozinha. Saí de casa com um pouco de pressa e sem comer ou beber nada.
Me conhecendo do jeito que conheço, sei que vou me arrepender de tomar essa água tônica. Minha bexiga com certeza vai encher em minutos e isso vai ser um transtorno. Mas eu sou teimosa, não sou? E é claro que eu também adoro a sensação de urgência que a minha bexiga baixa me causa, procurar banheiros sempre foi uma aventura agradável. Oh, a quem eu estou tentando enganar? No meio dos meus pensamentos, acabei percebendo que realmente preciso fazer xixi. d***a.
Meu nome é Andy Williams, sou estudante de biologia da Universidade Atlan, que pra falar a verdade não é nem a melhor nem a pior universidade do meu país. Acho que a Atlan tá bem no meio, sabe? Uma universidade pra pessoas que não são super inteligentes nem o oposto. É pra gente comum que precisa trabalhar a tarde, pra pagar as contas e a passagem de ônibus.
Se eu tivesse que descrever minhas características mais marcantes, com certeza falaria do meu cabelo grande e castanho, que vive um pouco desalinhado... E dos meus olhos, também castanhos. Eles são bem grandes, então chamam a atenção.
Mas, agora, eu realmente preciso de um banheiro. E é claro que esse estádio parece perfeito.
Quando eu entrei no estádio, nem me dei conta de que entrei pela área dos funcionários. Algumas pessoas me olharam estranho, mas como já estou acostumada a isso pela forma como me visto, nem dei importância. Não que eu seja estranha, eu só gosto de usar camisetas largas, e calças bem rasgadas. Talvez a combinação pareça um pouco diferente, mas eu tenho meus motivos. Esse visual e minhas tatuagens formam uma espécie de p******o bastante visível e isso repele uma boa quantidade de gente ignorante. Eu parecia muito frágil sem isso. Depois de alguns olhares maldosos, você se acostuma a ignorar. Junta isso ao fato de ter 176cm de altura em um país onde a média para mulheres é de 160cm, e magicamente eu apareço.
Fui ao banheiro, fiz xixi, agora ótimo, vou embora.
Quando eu olhei pra quadra, vi aquele homem. Ele parecia ter sido desenhado por algum grande artista. Braços definidos, ombros largos, cabelos loiros perfeitamente bagunçados. Eu não sou o tipo de garota que fica olhando pra homem na rua e admirando, mas esse foi bem difícil não olhar. E na verdade, ele nem faz parte do meu padrão: Gosto de caras feios. Meu último namorado tinha a cabeça tão grande que nenhum boné servia, e o namorado anterior a esse, era tão magro que eu tinha medo de quebrar abraçando. Mas os dois eram bem interessantes. O cabeçudo era estudante de TI, a gente compartilhava alguns papos interessantes sobre como a tecnologia vai tomar conta da nossa vida. E o outro, era músico. Eu gostava de como ele dava vida aos meus poemas com suas melodias.
Tudo bem, tudo que eu pensei até agora foi que eu não faço ideia de porque estou sentada em uma arquibancada, vendo um jogo aleatório sendo que eu só entrei nesse estádio pra fazer xixi. Peguei meu celular e abri a câmera, fotografando o cara e enviando direto pra Sil, minha amiga. Recebi rapidamente a mensagem em retorno à foto que mandei.
Sil: Jesus, ele é real?
Andy: Amiga, eu não sei. Quero desenhar esse cara, escrever sobre ele e talvez ter um filho. Rsrs.
Eu continuei assistindo o jogo e vibrava só pra me encaixar no meio das poucas pessoas que assistiam. Na real, eu não entendi nada, até o momento que vi aquele braço enorme afundar com ignorância a bola no outro lado da rede. E aí, o senhor magnífico apontou pra mim. Ele fez um ponto, e apontou pra mim. Aquilo me fez sentir como uma criança que ganhou autógrafo do ídolo, mas me contive.
Eu fiquei ouvindo a conversa na arquibancada. Algumas garotas conversavam sobre ele, sobre o quanto ele era difícil e misterioso. Ouvi também o nome dele: Blake Cross. Enquanto eu tentava ouvir informações, nem percebi que o jogo havia acabado. Os jogadores se cumprimentaram e saíram da quadra.
Peguei rapidamente o celular e procurei o nome dele. Quase 5 mil seguidores no Instagram... Epa, deve ter alguma coisa errada. Esse cara me segue no i********:???
— Olá. — Ele disse, parecendo um pouco tímido. Deu tempo de esconder o celular, mas quase fui pega bisbilhotando. — Posso tomar um pouco do seu tempo, Andy? — Gelei. Como ele sabe meu nome? Será que ele é algum tipo de psicopata? Agora isso tá ficando interessante.
— Claro, em que posso ajudar? — Meu Deus, eu pareço uma atendente de loja. Quer fazer o cartão da Riachuelo, meu bem?
— Eu não conheço ninguém dessa cidade, mas olha que legal, quando você entrou pela porta dos funcionários eu te reconheci. Eu te sigo no i********:. Espero que você não ache isso estranho... — Ele disse enquanto se sentava ao meu lado. Parecia até que ele estava tão nervoso quanto eu. — Na verdade, eu segui algumas pessoas da Atlan e você estava lá, te achei legal... Eu acho que eu estou parecendo mais estranho a cada palavra que eu falo, eu devia ficar quieto. — Sim, amor, você parece um psicopata obcecado que fez uma amarração do amor pra me encontrar. Não se preocupe, eu gosto de gente estranha.
— Olha, você tá com fome? Eu vou comer alguma coisa. Já que você me segue no i********:, porque não me segue pra cafeteria? — Não acredito que eu disse isso em voz alta.
— Er, claro, mas eu preciso estar no estádio em duas horas. — Ele olhou pro relógio. Um cara de dois metros, lindo e tímido? Não faz o menor sentido.
— Você consegue me dizer o que quer de mim em duas horas? — Eu falei, dando uma risada. Ele riu também. Por algum motivo, imaginei que duas horas não seriam suficientes para o que eu queria fazer com ele. Mas, mais uma vez, me contive.
Fomos andando e conversando pelo caminho. Ele acabou explicando que se lembrava de mim porque de todas as pessoas que ele seguiu da Atlan, eu era a única que sempre postava sobre uma banda que ele também gostava: Avenged Sevenfold. Isso acabou fazendo ele gravar meu rosto e quando ele me viu, sentiu um alívio porque sentiu como se me conhecesse, e não conhecia nada na cidade de Atlan. Outra coisa que o fez sentir alívio ao me ver, foi o fato dele querer se afastar do time porque o clima entre alguns ali estava bastante tenso. Resumindo, eu estava no lugar certo na hora certa.
— Poxa, a história é bem menos emocionante do que eu imaginei. Já achei que você era um psicopata e que iríamos esquartejar pedófilos juntos... — Ele riu.
— A gente pode botar isso na agenda. Quarta a noite parece perfeito. — Eu não entendi, você quer sair comigo ou isso é só uma brincadeira mesmo, Blake?
— Na verdade, eu preferia fazer algo menos interessante nesse dia. Se não, não vou conseguir prestar atenção em você! — Isso, garota, joga teu charme. Ele encolheu os ombros, e um sorriso tímido surgiu nos lábios finos e expressivos.
— Você é ainda mais legal que na internet. Acho que vamos nos dar bem, Andy, seremos bons amigos.
Quando ele disse sobre amizade, eu quase acreditei. Mas ele colocou a mão no meu braço e eu senti aquela coisa que as meninas sentem quando um cara está extremamente interessado em você. Eu não sei exatamente o porque, mas ele parecia fissurado em mim. Os grandes olhos azuis pareciam tão focados e ao mesmo tempo tão perdidos... Era como se ele estivesse imaginando nosso futuro juntos, ou coisa do tipo. Tive que me controlar para não fazer o mesmo, não que eu fosse do tipo iludida, mas com um cara desse, fica difícil manter a sanidade.
Continuamos o nosso encontro aleatório, e fomos ao Jardim ao lado do estádio poliesportivo de Atlan aonde ele estava cumprindo suas atividades. Blake me disse que era o capitão do time da faculdade Rivial, uma faculdade mais ou menos como a minha, mas na cidade vizinha. Eu não reconheci o uniforme porque nunca realmente liguei para isso. E aí ele comentou que, na verdade, estava pensando em mudar para a faculdade de Atlan porque tinha recebido um convite de um professor, que arrumaria uma bolsa vinculada a participação dele no time de vôlei. Ele gostou da cidade, mas ainda não sabia se era o que queria. A conversa continuou tranquila, falamos sobre as duas faculdades, sobre os prós e contras e ele aparentemente decidiu que seria bem melhor continuar na Rivial, mas ainda não tinha batido o martelo.
— Por que você não vai visitar a Atlan comigo? Posso te mostrar alguns lugares legais. Talvez isso te ajude a tomar a decisão. Como você disse que curte estudar na biblioteca, eu te levo até lá com meu passe. Você não pode entrar lá sem carteirinha, mas o Joel é meu amigo... Se a gente entrar no turno dele, ele te deixa passar. — Ele sorriu, parecia satisfeito. Concordou com a cabeça. Nós dois checamos o relógio juntos.
— Andy, já está na hora de eu ir. Preciso assistir o jogo do time rival hoje e fazer algumas anotações. — Balancei a cabeça. Ele pegou o celular e entregou aberto pra mim. — Me passa seu número... — Assenti com a cabeça e digitei, salvando meu nome com um emoji sorridente ao lado. Ele agradeceu. Para nos despedirmos, surgiu um pouco de constrangimento. Não sabíamos se usávamos um beijo no rosto, aperto de mão ou abraço. No final das contas, o aperto de mão venceu e nós dois rimos um do outro.
Saí do encontro repentino com muitas dúvidas, mas a principal delas envolvia o que tinha acabado de acontecer. Nunca, na minha vida, havia acontecido algo parecido. Encontrar um estranho na rua, sair com ele e trocar números não é algo que eu faço. Nem espiar e tirar fotos de alguém que m*l conheço. Sim, estou atordoada, mas de um jeito bom.
Quando me dei conta, lembrei do porque havia feito aquele caminho. Perdi a consulta com o terapeuta. Parabéns, Andy, você oficialmente jogou 80 dólares no lixo porque conheceu um cara gostoso.
Mandei mensagem pro terapeuta e por sorte, uma paciente havia desmarcado. Eu corri até a garganta secar para chegar no horário, mas consegui. A terapia foi ótima, mas eu não quis falar de Blake... Os assuntos que eu trouxe pareciam mais importantes no momento: Meus pesadelos frequentes.
— Então, eu entrei naquela casa que era bem arrumada, e tinha uma sala bonita. Acontece que eu vi que tinha uma infiltração na sala de visitas. E aquela casa era minha no sonho. Eu cheguei em uma sala que estava alagada até a metade da minha perna. Atravessei várias portas até chegar a um porão nojento, também alagado, cheio de musgos crescendo pelas paredes. A água já estava quase até meu peito, e eu vi uma porta pequena, como de Alice no país das maravilhas. Eu abri a pequena porta mas... Meu próprio rosto apareceu e eu disse pra mim mesma que não estava pronta para atravessar a porta. — Mario, meu terapeuta, assentiu com a cabeça e fez algumas anotações antes de voltar o olhar pra mim.
— Andy, acho que estamos lidando com algo do passado. Algo que talvez você ainda não esteja pronta pra lidar. Isso faz sentido pra você? — Ele perguntou com expectativa. Busquei respostas em mim mesma mas não achei nada.
— Talvez. Eu ainda não sei. — Suspirei. Vi que a consulta já havia chegado ao fim, e decidi não estendê-la.
— Vamos encerrar por hoje. Mas, Andy, não force a entrada em lugares que você não está preparada pra conhecer. Você não tem lembrança dos seus sete anos, e pode ser que não esteja preparada para recuperar. Você entende isso?
Assenti com a cabeça. Dr. Mario se levantou da cadeira e me deu um abraço amistoso, como ao final de todas as sessões. Já faço terapia com ele há dois anos e esse senhor bem mais baixinho que eu e elegante sempre me ajudou muito. Ele era um tipo de mago da mente, pois pegava o novelo embolado de lã que meu cérebro formava, desfazia cada nó e transformava em uma linda manta.
— Até semana que vem, Dr. Mario.
Após um dia muito intenso emocionalmente, cheguei em casa exausta. Eu só queria um banho e minha cama. Ao deitar, uma bola peluda, cinza e branca pulou em cima de mim, como se soubesse que eu precisava tirar o estresse do dia. Os miados de Pipoca me fizeram rir. Logo, meu gatinho se aninhou a mim e dormimos juntas. Pipoca é minha gata de estimação desde os quinze anos, quando minha depressão piorou, e ela sempre soube como cuidar de mim com seus afagos de gato.
No dia seguinte, me arrumando para a aula, peguei o celular e vi algumas mensagens na tela inicial. Alguns amigos, mensagens de grupo e no meio delas, uma mensagem de Blake. Eu realmente achei que ele não enviaria mais mensagens, achei que nosso pseudo-encontro ficaria no esquecimento, mas eu estava enganada... Muito enganada.
— Oi. Tem tempo livre hoje a tarde? Estou na cidade até sexta. Queria te ver novamente.
Meu coração deu um pulo ao ler a mensagem. Será que eu respondo ou faço um charme? Afinal, por que me importo?
— Talvez depois das 15h. Estou terminando uma coisa da minha iniciação científica hoje.
Respirei. Enviei.
— Uma coisa? — A resposta veio pronta. Eu tomava meu café e comia alguns biscoitos antes de sair.
— Estou cultivando algumas algas pra uma pesquisa. Preciso cuidar delas e medir o pH, fazer a base... Na verdade são várias coisas.
— Que interessante. Me manda foto das suas algas. Da pra comer? — Ri ao ver a mensagem.
— Elas não são comestíveis. Mas também não são tóxicas. Elas moram na represa daqui de perto, na verdade. A qualidade da água depende delas. — Respondi.
Liguei uma música qualquer nos fones de ouvido e sai andando, com o celular no bolso e mochila nas costas. Logo mais eu estava na faculdade, aguardando uma aula chata de probabilidade que se esticava além do normal terminar, e pela falta de paciência, peguei o celular novamente. Só as mensagens de Blake me interessavam. Mas quem havia me mandado mensagem dessa vez era minha mãe.
— Filha, tudo bem? Uma professora vai precisar sair da escola na hora do intervalo, eles vão dividir os alunos nas salas aqui... O Samuel está terrível hoje! — Ao ler o nome de um aluno bastante inconveniente, suspirei fundo e continuei lendo a mensagem. — Vem me ajudar, por favor. Hoje tá difícil!
— Só consigo depois das 15h. Ajuda? — Enviei.
— Qualquer tempinho ajuda. — A resposta foi instantânea. E lá se vai meu passeio com o Blake. Eu poderia ter recusado, mas minha mãe geralmente não pede favores. E não custa nada ajudar um pouco...
— Qual a resposta, senhorita Andy? — O professor insuportável de probabilidade me olhava com aquela cara de deboche típica dele. Eu sorri.
— Não faço a menor ideia. — Falei, enquanto tentava esconder o celular. Ele balançou a cabeça negativamente enquanto os alunos riam.
— Depois vocês vão m*l na prova e me culpam e me chamam de chato! — O professor disse, voltando o corpo novamente pro quadro enquanto terminava o exercício.
Uma colega minha, Lana, olhou pra mim e fez um sinal de nojo se referindo ao professor. Nós duas rimos baixo. Realmente, nós falávamos dele, mas não por falta de atenção e sim por sua didática arcaica e h******l. Acabando a aula, eu e Lana fomos almoçar no restaurante da faculdade. Decidi mostrar uma foto de Blake. Um sorriso malicioso surgiu nos lábios dela e nós duas rimos.
— Ele é um gato. E parece estar na sua! — Ela disse, sorrindo.
— Nada disso parece real, Lana. É uma coisa muito do nada... — Eu abaixei a cabeça. Pra mim, nada disso fazia sentido porque caras como ele só se apaixonam por garotas incríveis, e que definitivamente não usam tênis e camisa de banda todos os dias.
— Para de julgar esse cara só porque ele é um gato. Já pensou que ele pode não ser um cabeça de vento como a maioria dos caras? E você é super gatinha. Para de pensar demais, se joga amiga. — Lana terminou e voltou a mexer no próprio prato. Eu fiquei em silêncio. Talvez a garota tenha razão.
Uma passada rápida no laboratório e tudo estava perfeitamente resolvido. O serviço terminou quase duas e meia da tarde, e eu fui correndo pra escola ajudar a minha mãe. Esqueci completamente de avisar Blake que não conseguiria encontrá-lo. Perto das quatro, recebi uma mensagem dele.
— E aí? — d***a. Logo no primeiro encontro oficial, eu me esqueci dele. Bastante inteligente da minha parte.
— Desculpa, precisei ajudar minha mãe com uma coisa. — Digitei apressadamente. — Termino as seis. Se você ainda quiser fazer algo, podemos nos encontrar.
— Sua mãe também cuida de algas? — Não pude deixar de rir ao receber a resposta. Acho que ele associou a palavra "coisa" à algas.
— Na verdade, o negócio dela é outro. Ela cuida de crianças.
Desliguei o celular. m*l podia esperar para dar seis da tarde. A hora se arrastou mas passou. Combinamos de nos encontrar em uma praça pública e quando cheguei, lá estava ele ainda com o uniforme do time, sentado em um dos bancos. Sentei ao lado dele e falei oi. Ele sorriu e deitou no meu colo. Isso me pegou de surpresa, mas aceitei.
— Você seria amigo de alguém que tem um pacto com o d***o, Andy? — Eu apenas ri.
— Minha galeria de amigos não tem nenhum. Acho que seria uma boa figurinha. — Ele suspirou e se encolheu no banco. Eu percebi a seriedade do momento e meu sorriso foi se dissipando. — Você tá falando sério, Blake?
— Sim. Não vai embora com medo, por favor. — Eu soltei um palavrão.
— O que foi que você fez, Blake?
Foi aí que tudo desmoronou.