Capítulo 1 – Elisa
PASSADO
— Papai... tô com fome.
A voz saiu baixinha, mas o estômago roncando fez minha presença impossível de ignorar.
Meu pai forçou um sorriso, daqueles que doem só de ver, e desviou o rosto quando uma lágrima escapou dos seus olhos.
— Tenha calma, Elisa. A comida já vai chegar.
Segurei sua mão por baixo da mesa, tentando dar o mesmo tipo de conforto que ele sempre me dava quando eu chorava.
— Por que você tá triste?
— Não tô, querida. Só entrou um cisco aqui — respondeu, enxugando o rosto depressa. Nesse momento, a garçonete apareceu com um prato.
Bolo de chocolate.
Meu favorito.
Esqueci qualquer preocupação assim que a primeira garfada derreteu na minha boca. Fechei os olhos, suspirando. A felicidade às vezes era simples, e cabia inteira num pedaço de bolo.
— Tem certeza de que não quer um pedaço, papai?
Ele negou com a cabeça. Disse que não estava com fome. Mas eu sabia que não era bem isso.
Comíamos fora uma vez por mês, quando íamos visitar a mamãe no hospital da cidade vizinha. Cada centavo era contado. Meu pai era pintor, e o dinheiro m*l dava para o básico. Tivemos que nos mudar do Marrocos para a Itália no ano passado. Ele dizia que aqui a mamãe teria mais chances de se curar.
Quando terminei o bolo, a garçonete voltou com a conta. Vi meu pai contar moedinhas, uma por uma. Quando entregou a quantia, a moça franziu o cenho.
— Senhor… os preços subiram essa semana. O bolo agora é mais caro.
Ele arqueou as sobrancelhas. Abriu a carteira de novo e, antes de tirar as últimas notas, cochichou:
— Tem certeza que aumentou mesmo? Se eu pagar isso, não teremos para o ônibus de volta.
— Sinto muito, senhor. Não damos desconto.
Ele suspirou fundo e entregou o restante. Saímos da lanchonete em silêncio. Meu pai limpou discretamente outra lágrima.
— Papai… por que você tá chorando? Não tá feliz? A gente vai ver a mamãe hoje!
Ele parou, ajoelhou na minha frente e me olhou com um sorriso amargo.
— Elisa, minha menina linda… sabia que seu nome significa princesa?
Assenti, sorrindo.
— A mamãe sempre diz que eu tenho olhos de princesa.
— E tem mesmo. Olhos violeta são raros. Os mais lindos que já vi.
Toquei seu rosto. Outra lágrima caiu.
— Preciso te contar uma coisa, filhinha… Só não sei como dizer.
— Pode contar. Eu sou sua melhor amiga.
Ele respirou fundo, a voz embargada:
— Hoje vamos nos despedir da mamãe. Ela virou uma estrelinha… voltou pro céu.
Fiquei sem entender.
— Mas ela disse que voltaria pra casa…
— E voltou. Pros braços de Deus.
Fiquei em silêncio. Meu peito doía, e os olhos ardiam. Mas lembrei de como a mamãe parecia fraca nas últimas visitas. Sempre com dor. Quase não falava.
— Ela… parou de sentir dor?
— Sim. Agora ela está em paz.
— Então… eu tô feliz por ela. Porque ninguém merece sentir dor todo dia.
Meu pai desabou em lágrimas, me puxou para um abraço apertado. E eu, mesmo triste, fiz carinho no seu cabelo. Porque ele também precisava de consolo.
— Eu queria tanto que ela visse você crescer. Queria que ela te ensinasse sobre a vida…
— Mas você vai me ensinar. E ela vai continuar falando comigo pelas estrelas.
Ele sorriu, ainda chorando.
— Como alguém com sete anos pode ser tão forte?
— Porque você me ensinou. E princesas são corajosas, lembra?
Ele beijou minha testa.
— Tá pronta pra uma aventura, princesa?
— Sempre!
— Hoje vamos visitar a mamãe a pé. Você se importa?
Balancei a cabeça. Não queria deixá-lo mais triste.
Andamos por horas. O sol castigava. Eu usava meu vestido mais bonito, e meus sapatos apertavam os pés. Mas não reclamei. Não podia.
Faltando poucas quadras para o hospital, três homens de terno saíram de uma cafeteria e esbarraram na gente. Um deles, com olhar frio como gelo, derramou café quente no meu vestido.
Meu vestido novo.
O tecido me protegeu da queimadura, mas não do desgosto. Fiquei imóvel, esperando um pedido de desculpas. Ele não veio.
Os olhos dele… negros, intensos, vazios. Cruéis.
Um de seus seguranças partiu pra cima do meu pai. Sem explicação, começaram a agredi-lo.
— Parem! — gritei. — Foi ele quem esbarrou!
O homem olhou para mim, curioso.
— Temos uma garotinha corajosa aqui.
— Senhor Salvatori, me perdoe! Fui eu que esbarrei! — meu pai implorava, no chão.
— Pare de pedir desculpas, papai! Ele é quem devia pedir!
O homem abaixou até ficar da minha altura. Sorriu, mas não era um sorriso bom. Era o tipo que te dá calafrios.
— Quantos anos você tem, pequena?
— Sete. E você?
— Vinte e três.
— Princesas são corajosas. E meu nome significa princesa.
Ele soltou uma risada. Tinha cheiro bom, como perfume caro. Era bonito. Quase como um ator.
— Qual a cor dos seus olhos?
— Violeta. São raros.
— Lindos.
— Por favor, deixe-a — meu pai implorava.
O homem se virou para ele, sério.
— Jamais tocaria numa criança. Mas posso te matar, se continuar irritando.
— Não mata meu pai… mamãe já virou estrela hoje. Eu preciso dele.
Os olhos frios dele vacilaram por um segundo. Quase como se sentisse… pena.
— Sua mãe morreu?
Assenti.
— Mas eu vou ficar bem. Tenho meu pai.
— Dereck, vamos! — um dos amigos o chamou.
Antes de ir, o homem tirou uma pilha de dinheiro da carteira e colocou na minha mão.
— Compre um vestido novo. E dê um velório digno pra sua mãe.
— Quero um pedido de desculpas — insisti.
Ele gargalhou.
— Eu não peço desculpas a ninguém.
— E quando eu fizer vinte anos… pra que vou te procurar?
Ele sorriu. Um sorriso perigoso.
— Porque nunca conheci uma mulher com olhos como os seus.
Ele entrou no carro preto, desaparecendo da minha vista.
Fiquei parada, com o coração batendo rápido. E uma certeza silenciosa ecoando dentro de mim:
Essa foi a primeira vez que vi Dereck Salvatori.
E, no fundo, eu sabia...
Seria também a primeira vez que eu quebraria uma promessa ao meu pai.