6. Luna

1271 Words
O sol m*l tinha nascido direito quando eu acordei. O corpo inteiro doía. Os quadris, as coxas, o pescoço, tudo com marcas invisíveis e outras nem tanto. Mas o dinheiro, o dinheiro estava ali. Espalhado na mesa da cozinha, ainda do jeito que deixei na noite passada. As notas abertas, algumas amassadas, outras sujas, mas todas com o mesmo peso. Suspirei fundo. Passei a mão pelos cabelos bagunçados e me forcei a levantar. Clara ainda dormia, abraçada no ursinho. O cabelo dela todo bagunçado, a franja caindo nos olhos, o cobertor fino m*l cobrindo as pernas. Fiquei ali, olhando, e por um instante tudo pareceu valer a pena. Antes das dez, já estávamos descendo a ladeira. — Pra onde a gente vai, mana? – Clara perguntou, pulando ao meu lado, animada, com a mãozinha agarrada na minha. — No mercado, e depois, na loja de roupa – respondi, dando um sorriso. – Tá na hora de você ter um casaco de verdade pra esse frio que tá vindo aí. Os olhinhos dela brilharam. — Sério? Um casaco só meu? – ela perguntou, como se eu tivesse prometido o mundo. Assenti, apertando mais a mão dela. Fomos direto pro mercado. Dessa vez, sem olhar preço de tudo. Peguei arroz, feijão, macarrão, molho de tomate, carne moída. Comprei uma garrafa de óleo nova, margarina, leite em pó, bolacha recheada, iogurte, até um pacote de biscoito de chocolate que ela sempre pede e que eu sempre digo que não dá. Clara ia colocando as coisas no carrinho com um sorriso tão grande que o rosto dela parecia iluminado. — E pode levar esse também? – ela perguntou, apontando pra um achocolatado. — Pode – respondi, com o peito apertado de um jeito estranho, entre orgulho e vergonha. O caixa deu quase três vezes o que eu costumava gastar. Paguei à vista. Com dinheiro limpo? Não. Mas o suficiente pra encher nossa dispensa. Depois do mercado, fomos direto pra lojinha de roupa. A dona me olhou de cima a baixo, como sempre. Mas não me importei. Escolhi um casaco vermelho, quentinho, com capuz de pelinho na borda. Comprei uma meia-calça grossa pra ela usar por baixo da calça nos dias de frio. Peguei também um moleton rosa com um desenho de coelhinho. Quando Clara viu, ficou de boca aberta. — É tudo pra mim? — Tudo seu, pequena. Ela me abraçou na hora. Apertado, do jeito que ela sempre faz quando tá feliz demais pra falar. Antes de sair da loja, passei na sessão de brinquedos. Olhei praquelas bonecas caras, que eu sempre fingia não ver. E dessa vez, peguei a mais bonita. Cabelos longos, vestido rodado, sapatinhos de plástico rosa. Quando entreguei pra Clara, os olhos dela encheram de lágrima. — Mana, é a boneca mais linda que eu já vi... Meu peito doeu de um jeito bom e r**m ao mesmo tempo. — Você merece – sussurrei, bagunçando o cabelo dela. – Vamos pra casa antes que o tempo feche. Saímos da loja com as sacolas pesadas nas mãos, mas com o coração um pouco mais leve. Pelo menos hoje, a vida parecia menos c***l. Enquanto subíamos a ladeira de volta, com Clara abraçada com força na boneca nova, minha cabeça latejava com uma única certeza: por ela, eu faria tudo de novo. Mesmo que custasse cada pedaço de mim. (…) A tarde passou rápido. Entre arrumar o armário com as compras novas, lavar a roupa da Clara, separar os brinquedos velhos e ver o sorriso dela brincando com a boneca nova, por algumas horas, eu consegui esquecer. Esquecer da noite passada. Esquecer das mãos dele em mim. Esquecer do jeito que meu corpo ainda doía. Mas quando o sol começou a se pôr, aquela sensação voltou. O peso no peito. Aquela ansiedade esquisita, como se alguma coisa estivesse prestes a acontecer. E aconteceu. Eu estava estendendo roupa no varal dos fundos, quando ouvi a voz da vizinha gritando da rua: — Ô, Luna! Tão te chamando aqui embaixo! Meu coração gelou na hora. — Quem? – perguntei, com a garganta seca. — Um dos menino do bonde, aquele baixinho, o Magrão, disse que tem recado pra você. As pernas quase falharam. Larguei as roupas ali mesmo e desci as escadas correndo. Quando cheguei na viela, lá estava ele. O Magrão. Um dos soldados mais antigos do Dante. Encostado na moto, cigarro no canto da boca, com aquele jeito de quem não tem pressa pra nada. — E aí, Luna, suave? – falou, como se fosse uma conversa qualquer. — Que recado? – perguntei direto, já com o estômago embrulhando. Ele me olhou de cima a baixo. Deu um risinho de canto, meio debochado. — Dante mandou chamar. Disse que quer te ver, hoje. O mundo pareceu girar. Meu coração disparou. Minhas mãos começaram a suar. — Mandou me chamar, por quê? – soltei, num tom mais alto do que devia. Magrão deu de ombros. — Não sei, não. Só tô passando o papo. Mas ele quer tu, logo mais, lá na casa de cima – disse, já ligando a moto. Antes de sair, ainda jogou uma última frase por cima do ombro: — Melhor não fazer desfeita, hein, tu sabe como ele é. A moto arrancou rua abaixo, deixando a fumaça no ar, e eu, parada no meio da viela, com o peito travado. A cabeça girava. O medo veio na hora. E se ele achou que eu peguei dinheiro a mais? E se aquele bolo de grana tinha sido por engano? E se ele acha que eu roubei? Comecei a andar de um lado pro outro, mordendo o lábio, sentindo as mãos tremendo. Meu Deus, se ele quiser me cobrar, se ele achar que eu fiz alguma coisa errada, se ele resolver me dar uma lição... A respiração ficou curta. Subi de volta pro barraco como se o chão fosse desaparecer a qualquer momento. Clara veio correndo me mostrar a boneca, rindo, feliz. Eu forcei um sorriso. Mas por dentro, só tinha pavor. Peguei o dinheiro que sobrou da compra, contei tudo de novo, conferi nota por nota como se isso fosse mudar alguma coisa. Mas sabia que não adiantava. Se ele me quer lá, eu vou ter que ir e pela primeira vez, o medo de morrer foi maior do que o medo de continuar vivendo assim. (…) Meu corpo inteiro tremia. A cada passo que eu dava subindo a ladeira, parecia que o chão ia abrir debaixo dos meus pés. As pernas bambas. O estômago embrulhado. A boca seca. Segurei a bolsa contra o peito como se fosse um escudo. As vozes na minha cabeça não paravam. "Vai ver ele descobriu alguma coisa." "Vai me cobrar, vai me bater, vai fazer pior." "Não devia ter pego aquele dinheiro todo..." Na frente da casa, um dos soldados dele estava na porta. Me olhou de cima a baixo, com aquele olhar de quem sabe exatamente o motivo de eu estar ali. Sem dizer nada, abriu a porta e fez um gesto com a cabeça, mandando eu entrar. Meu coração pulou no peito. Passei pela sala devagar, cada passo como se eu estivesse entrando num campo minado. O cheiro de cigarro ainda era forte, misturado com álcool. A arma estava no mesmo lugar da noite anterior. E ele, sentado no sofá. De camiseta branca, calça de moletom, uma corrente fina no pescoço. O copo de uísque na mão. O olhar fixo na tela do celular, até perceber minha presença. Quando levantou os olhos, meu corpo inteiro gelou. Aquele olhar. Aquele maldito olhar. Como se ele enxergasse cada parte podre dentro de mim.
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