32. Luna

1397 Words
Dante riu baixinho. Um riso curto, rouco, cheio de deboche, como se estivesse se divertindo com a minha tentativa miserável de impor alguma regra dentro da minha própria casa. — Se for por causa da moto, eu levo de carro. — Ele disse com aquela calma perigosa que me dava mais medo que um grito. — Você tem carro? — Tenho o que eu quiser. E olhou direto para mim depois de dizer isso, como se cada palavra fosse proposital. Eu fiquei ali, com os dedos ainda molhados da pia, tentando manter a postura, mesmo sabendo que o controle já tinha escapado da minha mão fazia tempo. — Eu disse que não. — Minha voz saiu firme, mas por dentro eu tremia inteira. Ele me encarou por alguns segundos, como se estivesse medindo até a forma como meu peito subia e descia. — Relaxa. Não vou arrancar tua filha de você. — Ele disse, mas daquele jeito que sempre deixava a sensação de que havia outra coisa escondida por trás. Dante nunca dizia nada de verdade. Ele sempre deixava uma sombra, um mistério, uma ameaça quieta no canto da frase. Clara, meio chateada, saiu pulando para o quarto para pegar a mochila. Assim que ela virou o corredor, o silêncio caiu pesado na sala. Um silêncio que sempre anunciava alguma coisa. Eu fiquei parada, de frente para ele, com o coração batendo forte. — Por que tá fazendo isso? — Perguntei baixo, cansada de fingir que não estava sendo engolida por ele. Ele levantou devagar, apoiou as mãos no bolso da calça e caminhou até mim. Quando parou tão perto que eu senti o cheiro dele, meu corpo inteiro ficou em alerta. — Fazendo o quê? — A voz dele vinha baixa, arrastada. O tipo de voz que mexia comigo contra a minha vontade. — Agindo como se fosse parte daqui. Como se fosse pai dela. — Eu soltei a frase de uma vez, mesmo sabendo que estava cutucando um perigo. Ele me olhou por longos segundos, tão intensamente que parecia enxergar mais do que deveria. Depois, deu aquele sorriso de canto. Um sorriso que dessa vez não veio cheio de cinismo. — E se eu quiser ser? — Ele perguntou. Eu senti o chão sumir. Não soube se o que cortou meu ar foi medo ou outra coisa que eu me recuso a admitir. Meu corpo deu um pulso estranho, como se tivesse entendido antes da minha cabeça. — Dante, não se coloca nesse lugar. Não é assim. Não funciona assim. — Minha voz saiu mais fraca do que eu gostaria. Ele inclinou o corpo um pouco mais, só para me deixar desconfortável. — Quem disse? — Ele rebateu. — Eu faço funcionar do meu jeito. Meu coração disparou. Minha cabeça gritava para eu não respirar fundo. Para não demonstrar nada. Para não cair de novo na armadilha dele. Mas era tarde. Ele passou por mim devagar, encostando propositalmente o ombro no meu braço, como se fosse marcar território. Pegou a chave da moto no bolso e foi até a porta. Parou ali, com a mão na maçaneta. Olhou por cima do ombro e me prendeu com o olhar. — Vou esperar vocês lá fora. — Disse. E saiu. A porta fechou atrás dele com um peso que ficou preso dentro da minha garganta. Eu fiquei parada no meio da cozinha, segurando o pano de prato com força demais, tentando respirar, tentando não sentir nada. Mas eu sentia. Sentia ele ocupando todos os espaços, até os que eu não queria. E sentia, acima de tudo, o meu peito ficando cada vez mais desarmado para o homem que era justamente quem eu deveria temer. (…) Depois de deixar a Clara no portão, fiquei parada alguns segundos vendo ela entrar, a mochilinha balançando, o cabelo preso do jeito torto que ela gostava. Meu peito apertou de um jeito estranho, parecia alívio... e parecia culpa. Dante ficou parado ao meu lado, com as mãos nos bolsos, observando do mesmo jeito silencioso de sempre. Só que tinha algo diferente ali. Ele olhava ela como se fosse mais do que só uma criança qualquer do morro. Quando ela desapareceu atrás do muro, ele virou e começou a andar em direção ao carro. — Vem. — Ele disse sem olhar pra trás. Eu respirei fundo e fui, mesmo sabendo que nenhum destino com ele era seguro. Assim que entrei no carro, fechei a porta devagar, com medo do silêncio que vinha depois. Ele ligou o motor, colocou o cinto e ficou alguns segundos sem mexer, só respirando fundo, encarando a rua pela frente. — Você não devia ter falado aquilo. — disse, sem rodeio. — Falado o quê? — Perguntei, mesmo sabendo exatamente o que ele queria dizer. — "Por isso mesmo"... quando ela perguntou da moto. Pareceu que você tava dizendo que eu sou um perigo pra tua irmã. — E não é? — A resposta saiu mais rápida do que eu esperava. Ele respirou fundo de novo, ligou o carro e saiu dirigindo pela rua estreita. Ficamos alguns minutos em silêncio, só ouvindo o barulho do motor e os rádios dos vapores passando lá fora. Quando chegamos no fim da descida, ele virou a esquina numa calma que não combinava com o humor dele. — Não quero ela com medo de mim. — disse finalmente. — E não quero você botando isso na cabeça dela. — Eu não botei nada. — Falei, cruzando os braços. — Eu só protegi a minha filha. O que você queria? Que eu colocasse ela atrás de você numa moto? Você acha que isso é normal? — Se eu falo que é seguro, é porque é. — Você acha que tudo é seguro porque nada acontece com você. Mas eu não sou você, Dante. A Clara não é você. Ela não tem que viver no meio da sua realidade. Ele me olhou de lado, demoradamente. Não com raiva. Com algo mais... atento. — A minha realidade agora envolve vocês. — Ele disse. — Goste você ou não. Dante virou numa rua secundária, estacionou perto de uma praça pequena e desligou o carro. Ele não falou nada no começo. Só ficou ali, com uma das mãos pendurada no volante, olhando pra frente como se estivesse tentando organizar os próprios pensamentos. Quando finalmente falou, a voz veio mais baixa que antes. — A Clara gosta de mim. Meu peito se apertou. — Ela gosta de qualquer um que trate ela com carinho. Ela é uma criança. — Ela gosta de mim. — Ele insistiu. — E isso... importa. Eu senti a garganta travar. Fiquei quieta, porque não sabia como responder sem machucar alguém, principalmente a mim mesma. Dante virou o rosto pra me olhar. E dessa vez não tinha arrogância. Não tinha ordem. Não tinha ameaça. Tinha só... verdade. — Eu não sei o que eu tô fazendo. — Ele admitiu. — Não sei como lidar com você. Não sei como lidar com ela. Mas eu tô tentando. — Dante... — Sussurrei, tentando falar alguma coisa. Qualquer coisa. Ele estendeu a mão devagar, como se estivesse com medo de eu me afastar, e tocou meu joelho. — Não precisa gostar de mim. — continuou, com a voz embargada de raiva contida ou de alguma outra coisa. — Mas para de me tratar como se eu fosse um monstro pra Clara. — E pra mim? — Perguntei. — Você quer que eu te veja como o quê? Ele demorou alguns segundos antes de responder. Olhou meus olhos, depois minha boca, depois meus olhos de novo. — Como alguém que não vai embora. O impacto daquilo bateu no meu peito tão forte que eu tive que desviar o olhar.bAntes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ele ligou o carro de novo. — Vamos pra casa. — Disse, mas o tom era diferente. Menos duro. Menos áspero. Eu só assenti. O caminho de volta foi silencioso... mas não era o silêncio pesado do começo. Quando chegamos na porta da casa, ele desligou o carro, olhou pra mim por alguns segundos e disse: — Mais tarde eu volto. Não tranca a porta. Ele saiu sem olhar pra trás. E eu fiquei ali sentada, com a mão no peito, tentando entender por que droga nenhuma aquilo doía tanto... e ao mesmo tempo... aquecia um lugar que eu nem sabia que ainda existia.
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