33. Luna

958 Words
Clara segurava minha mão com a força inocente de quem ainda não entende o peso dos segredos. A tarde estava quente, e o sol forte batia nas lajes, refletindo um brilho que quase machucava os olhos. Caminhávamos rápido, eu e ela, desviando das senhoras nas portas e dos grupos de adolescentes que riam alto, até que, ao virar a esquina que levava para nossa rua, uma figura conhecida, porém desgastada, destacou-se contra o muro descascado. Era Nathalia. Jeans rasgado, blusa curta, maquiagem já manchada pelo suor e pelo tempo. Ela fumava com pressa, como se cada tragada a ajudasse a esquecer algo. Tentei desviar o olhar, seguir em frente sem parar, mas ela me viu antes que eu pudesse fingir. — Luna? — chamou, voz rouca, carregada de curiosidade maldosa. Parei, sem soltar a mão da minha irmã. — Oi, Nathalia. Ela jogou a bituca no chão, esmagou com a sola do tênis e aproximou com um sorriso que não chegava aos olhos. — Sumiu, hein. Achei que você tinha caído do mundo. Ou será que caiu nas graças de alguém importante? Apertei os dedos de Clara, mantendo a voz firme: — Só mudei de rotina. — Tá bonita — insistiu ela, o olhar percorrendo meu rosto, meu cabelo, minha roupa simples, mas limpa. — Dá pra ver que tá sendo bem cuidada. O povo fala que o Dante é quem tá por trás disso. É verdade? O estômago embrulhou-se, mas mantive a postura. — Minha vida não é da conta de ninguém. Ela riu, baixo, provocante. — Relaxa, só comentei o que todo mundo já fala. Mas sério... Se eu soubesse que ele curtia esse tipo, teria me jogado nele antes. O rosto ardeu. Antes que eu respondesse, porém, um carro escuro e familiar aproximou devagar, parando a poucos metros de nós. O vidro desceu. E lá estava ele, Dante, os olhos escuros fixos em mim, ignorando completamente a presença de Nathalia. — Entra — disse ele, sem levantar a voz. Era uma ordem, mas suave, como se já esperasse minha obediência. Nathalia ficou em silêncio, observando, com os olhos arregalados. — Preciso levar a Clara para casa — tentei argumentar, mas ele já abria a porta traseira. — Ela vem também. Vamos tomar um café. Clara me olhou, assustada e confusa. Hesitei por um instante, sentindo o julgamento mudo de Nathalia queimando minha nuca. Mas algo na expressão de Dante: cansada, quase humana, me fez ceder. Entramos. O carro cheirava a limpeza e cigarro, um mistura que já me era familiar. Ele não cumprimentou, nem explicou. Apenas engatou a marcha e partiu. No retrovisor, Nathalia ainda estava parada, observando o carro desaparecer na curva, e eu sabia, as fofocas já estavam sendo plantadas. A viagem foi curta, em silêncio. Em cinco minutos, ele estacionou em frente a uma padaria aconchegante, com mesas na calçada e o cheiro do pão saindo quente do forno. Desligou o motor e olhou para mim. — Vamos. Saí, segurando a mão de Clara, e seguimos até uma mesa no canto, mais reservada. Ele pediu café, pão na chapa e um suco para Clara, como se aquilo fosse parte de um hábito nosso. Enquanto a menina se distraía com o pão quente, eu encarei Dante, perplexa. — Por que está fazendo isso? Ele acendeu um cigarro, demorou a responder. — Faz quanto tempo que você para para tomar um café em paz? Que as duas comem algo fresquinho, sem pressa? Fiquei em silêncio. Ele sabia a resposta. — Pois é — continuou, baixinho. — Também não lembro. O garçom trouxe os pedidos. Ele empurrou o suco na direção de Clara e olhou para mim. — Come. — Não estou com fome. — Come mesmo assim. Peguei um pedaço de pão com as mãos trêmulas. Clara comia feliz, alheia à tensão. E, naquele momento, senti uma pontada de alívio por vê-la assim, segura, alimentada. — Não entendo o que você quer da gente — falei, quase sussurrando. Ele apagou o cigarro e suspirou. — Também estou tentando entender. Olhei para ele, verdadeiramente olhei, e pela primeira vez enxerguei não o dono do morro, não a figura imponente e temida, mas um homem confuso, carregando um fardo que nem ele mesmo compreendia. — Isto não é só desejo, Luna — disse, olhando para a rua. — Isso já teria passado. — Mas não muda o jeito que você me trata — respondi, fraca. — Eu sei. O silêncio que se seguiu não era mais de medo, mas de algo mais complexo, mais profundo. Algo que doía, mas que também acalentava. Terminamos de comer em quietude. Ele pagou a conta e, em vez de nos deixar na calçada como antes, acenou em direção ao carro. — Vou levar vocês em casa. A surpresa deve ter transparecido em meu rosto, mas ele não comentou. Durante o curto trajeto, Clara adormeceu no banco de trás, exausta. Ao chegar em frente à nossa casa, Dante parou o carro e olhou para a menina dormindo, com uma expressão que eu nunca tinha visto nele, algo entre a curiosidade e uma ponta de ternura. — Até amanhã — disse baixinho, sem olhar para mim. Saí em silêncio, carregando Clara nos braços. Quando me virei para trás, o carro ainda estava lá, parado, como se ele quisesse ter certeza de que entraríamos em segurança. Só então ouvi o motor se afastar devagar na ladeira. Deitei Clara em sua cama e cobri com o cobertor. Meu peito estava apertado, mas não de medo. Havia algo começando ali, algo que eu não controlava, não entendia, mas que, pela primeira vez, não me assustava sozinha, porque, naquele café da tarde, por alguns minutos, ele também parecera assustado. E, de algum modo, isso nos unia.
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