Nos dias seguintes, parecia que o morro inteiro tinha uma piada nova, e o tema era eu. Onde passava, sempre havia um comentário atravessado, uma risada m*l disfarçada, um olhar de deboche.
— Olha lá, a queridinha do dono — ouvi um deles dizer enquanto passava em frente ao bar.
— Agora só trabalha quando ele deixa, né? — outro gritou do alto da escadaria, rindo alto.
— Será que ele paga por hora ou por mês? — alguém completou, arrancando gargalhadas de mais três que estavam encostados no muro.
As mulheres também não perdoavam. Até as que sempre me cumprimentaram com falso respeito agora cochichavam entre si, com aquele olhar de quem se acha melhor só porque transa de graça.
A humilhação vinha em doses pequenas o dia inteiro. Nos olhares, nas frases soltas, nos risos abafados. Cada passo meu parecia carregado de vergonha. E o pior era saber que a culpa era dele.
Dante tinha feito aquilo. A cena que armou no meio da rua, o jeito como enfiou o dinheiro no meu peito na frente de todos, o recado claro que deixou: "Ela é minha." Agora eu carregava essa marca invisível, como se tivesse um carimbo na testa.
No começo, tentei me segurar. Fingir que não ouvia, que não me afetava. Continuei saindo, indo ao mercado, levando Clara para escola. Andava de cabeça erguida, mesmo que por dentro estivesse esfarelando.
Mas na tarde da quinta-feira veio o recado. Estava varrendo o quintal da frente quando Léo, um dos moleques que fazia corre para o pessoal do tráfico, apareceu no portão. Devia ter uns dezoito anos, sempre de bermuda larga e boné virado para trás.
— Ô, Luna — chamou, com aquele sorriso sem graça, coçando a nuca.
— Fala — respondi, já sabendo que coisa boa não era.
Ele olhou para os lados, abaixou o tom e soltou:
— O patrão mandou dizer que não quer mais te ver naquele lugar. No ponto.
Meu sangue gelou. Parei com a vassoura na mão, os dedos apertando o cabo com força.
— É sério isso? — perguntei, com a voz saindo baixa.
Léo só deu de ombros.
— Estou só entregando o recado. Se eu fosse você, escutava.
Ele virou as costas e foi embora como se não tivesse acabado de jogar uma bomba no meu colo. Fiquei ali parada, olhando para o chão, o coração batendo acelerado. A raiva começou a subir junto com o medo.
Que p***a era essa? Desde quando ele achava que podia mandar em tudo? Me tirar até o direito de trabalhar?
Naquela noite, depois de colocar Clara para dormir, fiquei sentada no sofá, encarando a parede da sala por horas. O orgulho martelava: "Se você se esconder agora, ele ganhou." O medo gritava: "Se você desafiar, ele pode te quebrar."
Mas mesmo assim, no dia seguinte, eu fui. Fui para o ponto. De novo. Passei a tarde toda lá, mesmo com o olhar de todos grudado em mim. Não consegui atender ninguém, claro. Quem teria coragem depois daquele recado? Mas eu fiquei. Por teimosia, por raiva, por desespero.
Quando anoiteceu, voltei para casa com o estômago embrulhado. Coloquei Clara na cama, beijei sua testa e me tranquei na sala. Fiquei ali com a luz apagada, sentada no chão, esperando o pior.
E ele veio.
Perto da meia-noite, as batidas na porta vieram. Não eram fortes como da última vez. Eram lentas, calculadas, quase provocativas. Meu corpo inteiro gelou. Fiquei de pé num pulo, o coração disparado.
Abri a porta devagar.
Ele estava ali. Dante. A sombra dele cobria metade da entrada. Camiseta escura, boné abaixado, o olhar frio como sempre.
— Eu te avisei — falou, sem levantar a voz, mas com um tom que me fez sentir as pernas moles.
— Eu tenho direito de... — comecei a dizer, mas ele ergueu a mão.
— Tu tem direito de calar a boca — o tom dele cortou o ar como uma faca.
Antes que eu respondesse qualquer coisa, ele entrou. Sem pedir, sem perguntar, sem dar espaço. Fechou a porta atrás de si e parou no meio da sala, me encarando.
— Acha que pode brincar comigo, Luna? — deu um passo na minha direção. — Que pode me desafiar na frente de todo mundo?
Minha respiração ficou curta. Meu coração parecia querer sair pela boca. Ele continuou avançando até me encurralar contra a parede. A mão dele subiu, segurou meu queixo com força, forçando meu olhar para o dele.
— Eu disse para você não ir mais lá — as palavras saíram lentas, carregadas de raiva contida.
— Eu preciso trabalhar — minha voz saiu falha, mas saiu.
Ele riu, baixo, cínico.
— Agora você trabalha para mim — a frase veio como uma sentença.
Meu estômago virou. Ele me soltou com força, me deixando sem ar. Foi até a porta, abriu e, antes de sair, virou de costas e falou sem olhar para mim:
— Se amanhã você voltar, eu te pego de um jeito que não vai gostar.
E saiu. Me deixando ali tremendo, com o coração descompassado e a certeza de que, dessa vez, ele não estava blefando.
(…)
Foram dois dias trancada dentro de casa. Dois dias sem botar o pé para fora, sem ouvir o som do portão, sem sentir o sol bater na cara. Não levei Clara para escola, não fui ao mercado, não fui ao ponto.
Passei a maior parte do tempo olhando pela janela, com o coração acelerando a cada moto que passava na rua de baixo. Mas, mesmo com o medo grudado na pele, pela primeira vez em muito tempo, a casa estava com cara de casa.
Na sala, encostado na parede, agora havia um guarda-roupa velho que comprei no topa-tudo da esquina. Não era bonito. A madeira estava gasta, tinha uns riscos de caneta nas portas, mas funcionava. Era espaço para guardar as roupas de Clara, as cobertas, os brinquedos.
No quarto dela, o colchão rasgado tinha sido trocado por uma cama de verdade. Também usada, mas com a madeira firme e uma cabeceira que ela adorou. Passei o dia anterior inteiro limpando, passando pano, colocando lençol novo.
Quando Clara viu, abriu aquele sorriso banguela de sempre e pulou em cima da cama, rindo feito boba.
— Agora eu tenho uma cama igual das princesas? — perguntou, me abraçando com força.
— Igualzinha — respondi, com o peito apertado e os olhos ardendo.