14. Luna

987 Words
A cozinha também tava cheia. Eu tinha conseguido comprar arroz, feijão, macarrão, óleo, farinha, uns pacotes de biscoito e até um leite em pó que ela gostava. O botijão de gás tava cheio. As contas de luz e água pagas. Até um casaco novo, quentinho, ela tinha ganhado. Passei a manhã fazendo um bolo simples de fubá, tentando ocupar a cabeça. Enquanto mexia a massa com a colher de p*u, repeti pra mim mesma, como um mantra: "Tá tudo bem. Eu não preciso dele. Eu não preciso de mais nada. Minha irmã tá alimentada, aquecida e feliz. Eu tô em casa. Em segurança. Eu posso continuar assim." Coloquei o bolo no forno, limpei a pia, dobrei umas roupas. Quando fui pro quarto, me peguei parada, olhando o guarda-roupa novo. Passei a mão pela madeira cheia de marcas... como se aquilo fosse meu troféu de resistência. — Eu não vou me preocupar com homem. — Falei em voz alta, só pra escutar minhas próprias palavras. — Nem com ele... nem com ninguém. Deitei ao lado da Clara na cama nova dela, sentindo o cheirinho do sabão que tinha usado pra lavar os lençóis. Ela me abraçou, enfiou o rosto no meu pescoço. Por alguns minutos, deixei o corpo relaxar. Fechei os olhos, respirando fundo. Tentando, de verdade, acreditar que por enquanto, eu tava ganhando. Mesmo que, no fundo eu soubesse que não era bem assim. (…) A noite caiu com aquele silêncio estranho que só a favela tem depois de certas horas. A Clara dormia na cama nova, com os braços jogados de lado, abraçada com a boneca que eu tinha comprado pra ela. Eu fiquei na sala, com a TV ligada num volume baixo só pra preencher o vazio. Tentava prestar atenção em qualquer coisa, mas a cabeça não parava. Meu olhar ia o tempo todo pras frestas da porta, pras cortinas da janela, como se o medo tivesse virado parte da mobília. Foi quando ouvi. Uma moto parando na frente de casa. Meu corpo travou. Meu coração disparou. As mãos começaram a suar. As batidas na porta vieram logo depois. Não foram violentas. Não foram brutas. Foram só... firmes. Duas pancadas secas, como quem não tem costume de esperar resposta. Respirei fundo. Fui até a porta com o estômago revirando. Quando abri o Dante estava lá, parado. Sem boné. O cabelo bagunçado. A camiseta amassada como se tivesse dormido com ela. O olhar... menos duro do que das outras vezes. Ele parecia cansado. Os olhos fundos, as olheiras escuras, a mandíbula marcada como se estivesse travada de tanto apertar os dentes. Mas o jeito que me olhou... foi diferente. Como se ele não soubesse se tava com raiva, com desejo ou só perdido demais pra disfarçar. — Não ia bater. — disse, logo de cara, me pegando de surpresa. — Ia só... passar direto. Mas... — Deu de ombros, respirando fundo, como se estivesse engolindo o orgulho. Fiquei muda, parada, sem saber o que dizer. Ele nunca, nunca, começava uma conversa daquele jeito. Era sempre com tom autoritário. Ele me olhou de cima a baixo, demorando mais do que devia. O olhar dele passou pela sala, viu a bagunça de brinquedos no canto, as roupas dobradas em cima do sofá, o cheiro de bolo que ainda pairava no ar. — Tá se escondendo de mim? — perguntou, a voz mais baixa do que de costume. Não era acusação. Soou quase como uma constatação. Cruzei os braços, tentando manter a postura. — Só tô ficando na minha. — Falei, sem encarar ele de frente. Mas ele riu, mas sem humor. — Na sua? — Repetiu, dando um passo pra dentro da casa. Não autorizei, mas também não consegui impedir. Ele andou até o meio da sala, parou ali... respirando fundo de novo, como se estivesse lutando com alguma coisa interna. — Sabe o que é pior? — disse, me olhando com os olhos estreitos, os ombros tensos. — Ficar tentando me convencer de que eu não ligo. De que eu posso esquecer essa p***a toda e te deixar pra lá. Meu estômago virou. Ele passou a mão pelos cabelos, nervoso, andou de um lado pro outro da sala como se não soubesse onde colocar a raiva. — Mas eu não consigo. — falou, baixo, rouco. Aquelas palavras bateram em mim como um soco. Eu, que tava pronta pra ouvir ameaça... ouvi confissão. Dante me encarou de novo. Dessa vez, com uma mistura de raiva e cansaço. Como se estivesse odiando cada segundo daquela conversa. — Tô aqui porque eu sei que se eu não viesse ia passar a noite inteira pensando nessa merda. — continuou, se aproximando, ficando perto o bastante pra eu sentir o cheiro dele. Cigarro, perfume amadeirado, talvez fumaça. O olhar dele foi pros meus lábios, depois pro meu pescoço e depois pros meus olhos. — Tu mexe comigo de um jeito que eu odeio. —sussurrou baixinho mas meu corpo inteiro gelou. Ele ergueu a mão, mas ao invés de me agarrar como sempre fazia, só encostou os dedos no meu rosto, de leve, como se estivesse testando o próprio limite. — Você me deixa doente. — completou. Fiquei sem reação. O medo ainda tava ali, mas junto veio um arrepio estranho, uma vontade maldita de me jogar naquele toque, mesmo sabendo o quanto isso era errado. Por alguns segundos ficamos só assim. Ele respirando pesado. Eu parada, sem conseguir me mover. Até que ele deu um passo pra trás. Passou a mão no rosto, como se estivesse se odiando por ter vindo. — Fica na sua. — Foi tudo o que ele disse antes de ir até a porta, abrir e sair batendo a mesma atrás dele. Me deixando ali com o corpo inteiro tremendo, o coração na garganta e a cabeça girando com tudo o que ele não disse. E com o que por dentro eu sabia que ainda ia acontecer.
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