15. Luna

922 Words
Acordei com a cabeça pesada, como se a noite inteira tivesse sido um pesadelo que eu não conseguia esquecer. A Clara dormia ainda, agarrada na boneca nova, com os pezinhos enfiados debaixo do cobertor. Levantei antes dela, fiz o café, separei a roupinha da escola e fiquei um tempo parada na porta do quarto, olhando ela respirar tranquila. Por mais fodida que minha cabeça estivesse, eu tinha uma certeza: ela não ia faltar aula de novo. Não por minha culpa. Vesti ela com carinho, ajeitei o cabelo, passei um pouquinho de hidratante pra tirar o frizz, coloquei a mochila nas costas dela e saímos de casa de cabeça erguida. O caminho até a escola foi lento, com meu coração batendo rápido toda vez que uma moto passava, mas Dante não apareceu. Nem sinal dele. Quando deixei a Clara na porta da escola, me forcei a respirar fundo. Agora era minha vez. Peguei o caminho de volta, mas dessa vez, ao invés de ir direto pra casa, virei à esquerda, subindo até a avenida. Meu plano era simples: bater de porta em porta. Qualquer coisa. Qualquer serviço. Faxina, ajudante de cozinha, caixa de mercado, o que fosse. A primeira parada foi uma padaria. Entrei com a cara mais limpa que consegui fazer, sorriso no rosto, tentando esquecer a vergonha que me queimava por dentro. — Vocês tão precisando de alguém? — Perguntei pra moça do balcão. Ela olhou de cima a baixo, com aquele olhar que eu já conhecia. — Não. — Respondeu seco, sem nem disfarçar o desdém. Antes de sair, ainda ouvi ela cochichar com a outra atendente: — Acha que eu vou botar uma dessas aqui dentro? Deus me livre... Segui pra uma mercearia pequena do bairro. — Posso lavar, limpar, o que for... — Me humilhei ali, com a voz tremendo. O dono, um homem gordo de meia idade, olhou pra mim com um sorriso nojento. — Serviço até tem, mas depende… você faz "extra"? — perguntou, com aquele tom sujo que me deu vontade de vomitar. Saí de lá com os olhos ardendo, o nariz fungando das lagrimas que subiram até a garganta mais eu não deixei rolar. Mais três portas. Três nãos. Como já era esperado, e mesmo esperando, não deixava de ser doloroso. Numa delas, a mulher nem me deixou terminar a frase. — Aqui a gente tem família, moça. Procura seu lugar. Como se eu também não tivesse família… O último foi um mercadinho. A gerente, uma mulher de uns quarenta anos, me ouviu com calma. Por um instante, eu até achei que ia dar certo. Aquele fiozinho de esperança reacendendo dentro de mim. Ela pegou um papel, anotou alguma coisa, depois perguntou meu nome e quando eu disse, o sorriso dela sumiu. Como se ela tivesse vendo uma pessoa imunda na frente dela, que não merecia nem limpar o banheiro. — Luna...? — perguntou, como se o meu nome fosse um soco no estômago. — Sim. — Respondi, já sabendo o que vinha. Ela respirou fundo, baixou o olhar pro papel e então rasgou a anotação bem na minha frente. — Desculpa, a vaga já foi preenchida. Eu tinha me esquecido completamente da menina que veio fazer a entrevista, mais cedo. Saí de lá com as pernas bambas, a cara vermelha de vergonha e o peito doendo pela humilhação. Andei mais umas quadras sem rumo, até parar numa pracinha pequena, sentando no banco com as mãos tremendo. Meus olhos começaram a arder, mas eu forcei pra não chorar ali. Eu sabia que seria difícil, mas sentir na pele aquela rejeição uma atrás da outra, foi demais. Todo mundo tinha um motivo pra me dizer não. Meu passado me seguia como uma sombra que eu nunca ia conseguir apagar. Eu levantei dali com o orgulho mastigado e o coração feito pó. Voltei pra casa, joguei a bolsa em cima da mesa e me sentei no chão da sala, abraçando os joelhos, sentindo a garganta fechar. "Não importa o quanto eu tente... ninguém vai me deixar esquecer o que eu fui." E o pior era saber que o único homem que ainda estendia a mão, era justamente o que mais me assustava. O que eu mais queria esquecer. O mesmo que, a qualquer momento, podia bater naquela porta de novo e eu já sabia que da próxima vez, ele não ia vir só pra conversar. (…) O dia tava abafado, o céu carregado de nuvens cinzas, como se fosse chover a qualquer momento. Eu já tava com a cabeça pesada desde cedo, mas ainda assim, peguei a mochila da Clara e fui buscar ela na escola. No caminho, tentei ignorar os olhares, os cochichos. Era sempre a mesma coisa agora: a vizinhança me encarando como se eu fosse um escândalo ambulante. Quando cheguei na porta da escola, a Clara veio correndo, com o sorriso de sempre. — Mamãe! — Ela gritou, me abraçando nas pernas. O abraço dela era o único lugar seguro que ainda existia no mundo. — Vamo pra casa, pequena? — Perguntei, pegando a mochila dela. Mas antes que a gente desse dois passos, ouvi aquela voz. — Ô, Luna... olha quem eu encontro por aqui... Meu estômago afundou. Virei devagar e dei de cara com o Rogério. Aquele mesmo cliente escroto que sempre achava que podia falar alto, que me chamava de "minha menina" como se fosse dono de alguma coisa. Ele tava encostado num carro dele, com o sorriso torto de sempre, o olhar sujo de quem não sabe respeitar espaço.
Free reading for new users
Scan code to download app
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Writer
  • chap_listContents
  • likeADD