Tem gente que nasce pra obedecer. Outros nascem pra mandar. Eu sempre soube de qual lado eu estava.
A vida me ensinou cedo. Ou você toma, ou é tomado. Nasci e cresci nesse morro. Vi moleque se perder antes dos quinze. Vi homem bom tomar tiro na porta de casa. Vi mãe chorando, criança passando fome, gente vendendo a alma por um prato de comida.
E no meio dessa merda toda, eu fui subindo.
Comecei fazendo o corre pequeno, levando recado, fazendo entrega. Depois veio a parte suja de verdade. Tiro, sangue, perda, cadeia.
Já fiquei preso. Já quase morri. Já enterrei amigo.
Hoje, sou eu quem manda. Quem decide quem vive e quem não vive.
O morro inteiro sabe. Meu nome é lei aqui. Quem tem medo respeita. Quem não tem morre.
Mulher? Já tive de todo tipo. As que pagam pra subir aqui só pra dizer que sentaram no meu colo. As que aparecem nas festas querendo status. As que vêm chorando, pedindo favor pro irmão, pro pai, pro namorado.
Nunca me apeguei a nenhuma. Nunca precisei.
Até ela. Luna.
Não que ela seja diferente, porque não é. É só mais uma p**a do morro. Mais uma que abre as pernas por dinheiro.
Mas tem uma coisa nela que eu ainda não sei explicar.
A primeira vez que a vi foi de longe. Ela passando com aquele andar dela, aquela saia curta, aquele jeito de quem já está cansada da vida, mas mesmo assim chama atenção.
Os caras zoam, mexem, falam merda. Ela ignora ou responde atravessado.
Gosto disso. Gosto de quem tem resposta na ponta da língua, mesmo com medo no olhar.
A primeira noite que comi ela foi pra descarregar. Raiva acumulada. Desejo entalado. Fiz o que tinha que fazer, paguei, e achei que ia esquecer.
Mas não deu.
Quando dei por mim, estava querendo ela de novo. Querendo ver o jeito que ela treme quando eu chego perto. Querendo ouvir ela gemer daquele jeito, como se odiasse cada segundo, mas o corpo dela entregasse.
Ela me provoca, mesmo sem querer. Me olha de canto, morde o lábio, tenta me enfrentar com aquelas respostas atravessadas.
Como se tivesse escolha.
Eu quero ela de novo. E de novo. E de novo.
Por isso mandei chamar.
Ela achou que era por causa de dinheiro. i****a. Dinheiro é o que eu mais tenho. O que eu quero dela é outra coisa. É ela, submissa, mole nas minhas mãos, me pedindo mais enquanto me xinga com os olhos.
Ela pode tentar fugir. Fingir que não sente.
Mas no final, ela vai entender.
Aqui no meu morro, nada e ninguém diz não pra mim.
Principalmente ela.
A manhã começou cedo. Como sempre.
O som dos tiros da madrugada ainda ecoava na memória do morro. Duas bocas de fumo tinham dado problema. Uns moleque da quebrada de baixo tentaram atravessar a linha. Vieram vender na nossa área.
Erro de principiante.
Mandei resolver.
Agora estava eu, sentado na laje da casa de vigilância, com a vista do alto, olhando o morro inteiro lá embaixo.
Daqui, eu via tudo. Quem sobe, quem desce, quem passa com pressa, quem tenta se esconder.
O rádio chiava ao meu lado.
— Já limparam a área da rua três? – perguntei, falando com um dos meus soldados.
— Já, chefia. Tá tudo controlado.
Soltei a fumaça do cigarro devagar. O gosto amargo descendo rasgando pela garganta.
Do meu lado, Magrão e g**o discutiam sobre o carregamento que chegaria à noite.
— O patrão lá de cima quer que a gente aumente a meta dessa semana – g**o disse, olhando pro caderno de anotações. – Tá vindo mais pó, mais verde, mais tudo.
— Que se f**a a meta. O que eu quero saber é de quem andou passando recado errado pro pessoal da Rocinha – cortei, sem paciência.
Silêncio.
Todo mundo ficou quieto. Só o barulho do vento batendo nas lonas das casas lá embaixo.
Levantei. Bati a cinza do cigarro na beirada da laje. Desci as escadas com passos firmes.
Passei pela área de vigilância, cumprimentei dois dos moleques que estavam na segurança, e fui direto pro barraco da contabilidade.
Lá dentro, a mulherada que sempre circula em volta de mim. Algumas fingindo que estão ali por serviço. Outras só de olho em uma chance.
E foi aí que a Bruna apareceu.
Bruna. Uma das mais atiradas do morro. Morena, corpo feito, roupa sempre justa demais, maquiagem pesada, olhar de quem sabe o que quer.
Assim que me viu entrar, ela sorriu daquele jeito forçado. Veio rebolando, como se fosse me hipnotizar.
— Bom dia, Dante – ela falou, com a voz melosa demais.
— Hm – respondi sem levantar muito o olhar, já indo até a mesa onde os meninos estavam contando o dinheiro da semana.
Ela não desistiu.
Se aproximou, passou a mão pelo meu ombro, com aqueles dedos cheios de anel barato.
— Você tá tão sumido – ela continuou, com a voz mais baixa, mais provocante. – Não tá sentindo falta de um carinho não?
A mão dela desceu pelo meu peito, tentou abrir o zíper da minha jaqueta. Se inclinou mais perto, o cheiro forte de perfume barato me invadindo.
Se fosse qualquer outro dia, qualquer outra fase da minha vida, eu teria comido ela ali mesmo, de pé, só pra descarregar.
Mas não hoje.
Hoje, o cheiro dela me deu enjoo. O toque dela me irritou.
Peguei o pulso dela com força, tirando a mão dela de cima de mim.
— Vai brincar com outro – falei, seco.
Ela congelou. O sorriso falso sumiu na hora.
— Ué, pensei que você gostasse – ela tentou ainda, com aquela voz manhosa.
Olhei bem nos olhos dela, firme, direto, sem paciência.
— Eu gosto, mas de mulher com cheiro de verdade, não de desespero.
Ela ficou vermelha. Soltou um risinho nervoso, ajeitou o cabelo, e saiu quase correndo dali, tentando fingir que não tinha se humilhado.
Os moleques riram baixinho no canto. Magrão me olhou de canto e comentou:
— Tá seletivo, hein, patrão?
Não respondi.
A verdade é que nenhuma delas tem o gosto que eu quero agora. Nenhuma delas me faz perder o controle. Nenhuma delas me deixa com o sangue fervendo do jeito que ela, aquela maldita garota, a Luna, deixou.
Fechei os olhos por um segundo.
A lembrança da pele dela, o cheiro, o gosto, a p***a da expressão no rosto dela enquanto eu metia nela com força.
Respiro fundo. Abro os olhos de novo.
— Manda reforçar a segurança na rua de baixo. E avisa o pessoal que hoje à noite, eu quero o controle da linha toda – falei, mudando de assunto, fingindo que estava tudo normal.
Mas por dentro, eu já sabia.
Ainda hoje, eu ia querer ela de novo.
E dessa vez, por mais tempo.
O resto da manhã foi assim: bronca atrás de bronca.
Teve soldado atrasando entrega, gente embolando no caixa, uma dona de casa que ficou devendo duas semanas de taxa de segurança e agora queria vir com conversa mole de que o filho estava doente.
— Problema seu – eu disse, cruzando os braços na frente dela. – Aqui ninguém fica devendo. Resolve.
Ela saiu chorando, mas eu sei que amanhã o dinheiro vai aparecer. Sempre aparece. O medo faz acontecer.