27. Luna

936 Words
O caminho até a escola parecia mais longo do que nunca. Minhas pernas pesavam, como se cada passo fosse contra a vontade do meu corpo. Eu andava olhando pro chão, com a cabeça cheia. O cheiro dele ainda grudado em mim, a sensação da pele marcada pelos toques dele... e agora aquela casa nova esperando por mim. Por nós. Respirei fundo antes de virar a última esquina. Quando cheguei no portão, a Clara já estava lá, com a mochila nas costas, pulando de um pé pro outro. Quando me viu, abriu aquele sorriso que só ela sabia dar. — Mããããe! O jeito que ela me chamava desse jeito sempre rasgava alguma coisa dentro de mim. Me agachei e ela veio correndo, me abraçando pelo pescoço, toda suada, toda agitada. — Hoje a Tia Simone deixou a gente pintar com tinta de verdade — contou, rindo, enquanto eu ajeitava a mochilinha nas costas dela. — É mesmo? — forcei um sorriso, mesmo com o peito pesado. — E você fez bagunça? — Só um pouquinho — ela riu. No caminho de volta, o coração batia mais rápido. A cada passo mais perto da nova casa, mais o nervoso aumentava. Quando a gente dobrou a última rua e ela viu o portão diferente, parou no meio da calçada. — Mãe, essa é a nossa casa? Engoli em seco. — É — foi tudo o que consegui dizer. Ela soltou minha mão e correu na frente, subindo os degraus de dois em dois. — Sério? De verdade? Eu ainda estava chegando quando ela empurrou o portão e entrou. Os olhos dela brilhavam. Parecia Natal, aniversário e Dia das Crianças ao mesmo tempo. — Mãããe, tem sofá novo — ela gritou da sala, correndo de um lado pro outro. Depois ouvi os pezinhos dela indo pelo corredor. Quando abriu a porta do quarto, o grito foi ainda mais alto. — Mãe, tem cama só minha. Tem boneca, tem coberta nova, tem guarda-roupa. Mãe, mãe, mãe, vem ver. Fui andando até lá, com as pernas bambas. Ela pulava em cima da cama, abraçando o travesseiro, olhando tudo com a pureza que só criança tem. — Eu nunca tive um quarto só meu — ela disse baixinho, com um sorriso tão grande que me cortou por dentro. Senti os olhos arderem. — Agora tem — falei, tentando manter a voz firme. Ela me puxou pela mão, quase me obrigando a sentar na beirada da cama com ela. — Mãe, quem deu tudo isso? Foi Papai Noel? Engoli em seco. O nó na garganta já era quase impossível de segurar. — Foi... — respirei fundo. — Um amigo. Ela riu, inocente. — Então diz pra ele que eu amei. Sorri de canto, por obrigação. Porque no fundo, eu sabia. A felicidade dela tinha um preço. E quem ia pagar era eu. A casa nova parecia respirar de um jeito estranho. Cada estalo da madeira, cada barulho vindo da rua, cada sombra nos cantos das paredes gritava dentro de mim que aquele lugar não era meu. Mas era. Pelo menos agora, era. Depois do jantar simples que consegui improvisar com as poucas coisas organizadas, dei banho na Clara. Ela correu pela casa, testando todos os cômodos, entrando no banheiro novo com o olhar de quem achava que aquilo era um parque de diversões. — Olha, mãe, a água esquenta mais rápido — ela gritou do chuveiro, rindo, me chamando pra ver o vapor subindo. Fingi um sorriso. — Melhor assim, né? — respondi, ajeitando uma toalha limpa na cama nova. Depois, ela escolheu a roupa mais quentinha que tinha no guarda-roupa recém-montado. Uma calça de moletom e uma blusa de lã que ainda tinha cheiro de loja. Enquanto ela se arrumava, fui até a cozinha guardar as coisas que os vapores tinham enfiado nos armários de qualquer jeito. A bagunça deles estava por toda parte. Panelas largadas de qualquer forma. Pratos amontoados. Utensílios jogados sem critério. Tudo novo, mas mexido por mãos que não eram minhas. E eu continuei fingindo que estava tudo bem. Depois, deixei ela escolher um filme na sala. Ela escolheu o mesmo desenho de sempre. E tudo bem. Deitei com ela no sofá novo, ela se enroscou no meu colo, e durante quase uma hora consegui me desligar. Só eu e ela. Minha menina. A única coisa que eu tinha de verdade. Quando o filme acabou, ela já estava com os olhos pesados. — Quer dormir na sua cama nova? — perguntei, mexendo no cabelo dela. Ela abriu um sorriso sonolento. — Quero. Levei ela no colo, ajeitei a coberta e dei um beijo demorado na testa. — Boa noite, meu amor — sussurrei, apagando a luz. — Boa noite, mãe — murmurou, já quase dormindo. Voltei pra sala. Fiquei um tempo sentada no sofá, olhando pro nada. O silêncio da casa me dava mais medo do que qualquer grito. Tudo ali parecia limpo demais, novo demais, como se aquele lugar ainda não soubesse que tipo de vida ia abrigar. Peguei uma coberta e me deitei no chão da sala. Não queria dormir no quarto. Não queria deitar em uma cama que não tinha sido escolhida por mim. Encostei a cabeça no braço do sofá, com o corpo tenso e o cheiro de tinta fresca ainda forte no ar. Fechei os olhos tentando convencer a mim mesma de que estava tudo bem. Que pelo menos a Clara estava feliz. Que pelo menos ela tinha um quarto. Que pelo menos, por uma noite, a gente estava em paz. Mesmo sabendo que essa paz era apenas o silêncio antes da próxima tempestade.
Free reading for new users
Scan code to download app
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Writer
  • chap_listContents
  • likeADD