Montei um prato pra mim também, mais pra manter a rotina e fingir que estava tudo bem. E, no meio desse fingimento, preparei outro prato. Um maior, com mais comida. Eu não perguntei se ele queria. Também não ofereci. Simplesmente levei até ele, deixei na mesinha de centro e voltei pra cozinha como se fosse normal ter um homem armado jantando na minha sala.
Ele comeu. Sem dizer uma palavra. Sem agradecer. Só comeu, como se aquilo fosse o certo, como se a comida estivesse ali pra ele, como se eu fosse obrigada a fazer aquilo.
A Clara comeu no chão da sala, de frente pra TV, com o volume mais baixo que o normal. Ela parecia menos tensa que eu, talvez porque fosse criança e porque, pra ela, Dante era só mais um adulto estranho ocupando espaço. Ela até trocou algumas palavras com ele, puxou conversa sobre o desenho, sobre o gosto do bolo, e ele respondeu do jeito dele, com frases curtas, mas respondeu.
Eu assisti tudo de longe, com o estômago embrulhado.
Depois da janta, ela largou o prato na pia e veio me pedir pra ir pro quarto assistir desenho deitada.
— Vai, meu amor. Pode ir. Daqui a pouco eu vou te cobrir.
Ela foi arrastando o travesseiro pelo corredor, com a boneca debaixo do braço. Esperei ouvir a porta do quarto dela fechar pra finalmente respirar fundo.
Fiquei de costas pra ele por alguns segundos, encarando a parede da cozinha como se aquilo fosse me dar coragem. Limpei a pia, juntei os pratos e lavei tudo com as mãos tremendo.
Quando terminei, enxuguei as mãos no pano velho pendurado no fogão e fui até a sala.
Ele continuava ali. O prato vazio na mesinha, as pernas esticadas, o olhar fixo na TV que eu nem lembrava que tinha deixado ligada.
Fiquei de pé no meio da sala, com os braços cruzados e o coração batendo tão forte que doía.
— Já deu, Dante — falei baixo, mas com toda a firmeza que consegui juntar. — Você já comeu. Já fez o que queria fazer. Agora vai embora.
Ele demorou a me olhar. Mas quando olhou, eu me arrependi de ter falado. O olhar dele tinha mudado. Não era de raiva, mas também não era de calma. Era aquele olhar dele que eu ainda não conseguia decifrar direito.
Ele respirou fundo, ajeitou o corpo no sofá como se fosse se levantar. Por um segundo, achei que ele fosse realmente fazer o que eu pedi. Mas ele só se recostou melhor, passando uma das mãos pela nuca como quem estava cansado de um dia inteiro de trabalho.
— Não vou — disse, com a voz baixa, arrastada, daquele jeito dele que sempre me deixa sem chão.
Meu corpo inteiro gelou.
— Dante... — tentei de novo.
Ele me cortou antes que eu terminasse.
— Já disse que não vou — repetiu, sem levantar o tom, mas com aquela firmeza que não deixava espaço pra discussão.
Eu não respondi. Não tinha resposta.
Fiquei ali, em pé, encarando ele, tentando encontrar uma saída, mas sabendo, no fundo, que não tinha. Ele ia ficar. Quisesse eu ou não.
Então virei de costas e fui até o quarto da Clara. Cobri ela com a coberta dela, dei um beijo na testa, segurei as lágrimas até fechar a porta.
Depois voltei pra sala e ele continuava lá. Sentado. Quieto. Me olhando. Como se aquela casa, e eu, já fossem dele.
(…)
O banho não serviu pra muita coisa. A água quente só deixou minha pele mais vermelha e a sensação de peso continuava ali, grudada em cada parte de mim. Eu sabia que, ao abrir a porta do banheiro, ele ainda estaria na sala, como uma sombra que eu não conseguia afastar.
Vesti a primeira roupa que encontrei: uma camiseta velha e larga, um short de algodão. Prendi o cabelo num coque bagunçado e respirei fundo antes de sair.
Quando voltei pra sala, ele continuava lá. Sentado no sofá, com o corpo grande ocupando mais espaço do que parecia possível. O olhar dele me acompanhou no mesmo instante, pesado e direto.
— Vou dormir com você hoje
A frase veio seca, sem espaço pra discussão.
Meu estômago virou, mas eu não disse nada. Por um segundo, pensei em tentar discutir, mas a verdade era que eu já não tinha mais forças pra brigar. A semana tinha me drenado de todas as formas possíveis.
O problema é que a casa só tinha um quarto, e a cama nem existia direito. Meu colchão de casal ficava direto no chão. Sem base, sem estrutura, só o colchão e as cobertas que eu conseguia manter limpas.
Suspirei, aceitei o inevitável e fui até o quarto. Arrastei o colchão pela casa com um esforço que deixou meus braços doendo. Empurrei até um canto da sala, perto da parede, o mais longe possível da porta da frente. Peguei as cobertas, os dois travesseiros que eu tinha e comecei a forrar tudo em silêncio.
Ele não se ofereceu pra ajudar, mas também não tirava os olhos de mim.
Quando terminei, fui até o armário e peguei mais uma coberta, a mais grossa, aquela que eu só usava nos dias de frio de verdade. Voltei pra sala e encontrei ele já deitado. Tinha tirado a camisa e estava ali, esticado no colchão, como se aquele espaço fosse dele desde sempre.
Meu coração bateu mais rápido, porque eu já imaginava o que viria depois. Deitei com o corpo tenso, preparando a cabeça pra mais uma noite de uso, pra mais uma sequência de toques, de sussurros no escuro que eu fingia não ouvir.
Mas ele só virou pro meu lado.
Sem aviso, passou o braço em volta da minha cintura e me puxou pra mais perto. O corpo dele colou nas minhas costas, quente, firme, pesado. Não houve pressa. Não houve mão indevida. Não houve o peso dele sobre mim. Só o abraço.
Fiquei congelada por alguns segundos, esperando o momento em que ele ia mudar de ideia. Que ia me virar, me empurrar, começar tudo de novo.
Mas não aconteceu.
A respiração dele foi ficando lenta, o peito subindo e descendo num ritmo constante. Em menos de quinze minutos, ele dormiu.
Eu senti. Senti o peso real do sono dele, o corpo relaxando de um jeito que ele nunca fazia quando estava acordado.
Fiquei ali, de olhos abertos, encarando o teto escuro da sala, sem saber se sentia alívio ou medo. Talvez os dois.
A cabeça dizia pra aproveitar o descanso, pra dormir enquanto dava. Mas o corpo continuava em alerta, porque, mesmo com ele dormindo, a presença dele ali ainda era uma ameaça.
Ainda assim, o sono me venceu e eu dormi nos braços dele, como se aquilo fosse normal.